COMES E BEBES
Algum tempo antes de entrar definitivamente, na vida prática, o
bacharel Sesostris, que hoje é pai de família e magistrado, teve as suas
veleidades literárias, e topava a tudo; poesia, conto, folhetim, romance e teatro.
Foi o manuscrito da sua primeira e única peça que o introduziu na
caixa de um teatro, e o aproximou de Rosalina, que das nossas atrizes era
naquele tempo a primeira em beleza e a última em talento. Essa Rosalina, que o
empresário conservava no elenco da companhia em atenção unicamente
às suas virtudes
plásticas, casara-se com
um ator por
seu turno ali conservado tão somente por ser marido
dela.
Dizer que era
uma segunda Penélope
no tocante à
fidelidade conjugal seria
faltar descaradamente à verdade que devo aos leitores das minhas
historietas; pelo menos as más línguas,
e mesmo as boas, não a poupavam: mais de um freqüentador habitual do teatro
onde ela se exibia era apontado como tendo solicitado, e obtido os seus favores
mais íntimos.
O bacharel Sesostris foi convidado pelo empresário para fazer a
leitura da peça uma tarde, no palco, depois do ensaio e a hora aprazada,
sentou-se diante de uma pequena mesa rodeado de quase toda a companhia, e abriu
um manuscrito.
Ia em meio o primeiro ato, ouvido em silêncio com um recolhimento
digno de uma tragédia, quando o comediógrafo sentiu
que do joelho de Rosalina, sentada à sua direita,
se. desprendia um calor comunicativo que o perturbava. Sabe Deus como
pôde o rapaz concluir a leitura daquele primeiro ato!
Durante o segundo,
continuaram as manifestações equivocas, ou antes, inequívocas, e o bacharel, suando
frio, tremendo, gracejando,
deixava que se
perdessem todos os
efeitos cômicos das situações e do diálogo. Os ouvintes, cada vez mais
frios e reservados, atribuíam a
indisposição do leitor
à impressão terrível
de se achar
ali submetido à
opinião e ao julgamento de tantas sumidades
artísticas.
Durante o terceiro ato, Rosalina completou com o pé - um pé
pequenino, admiravelmente calçado - a obra de sedução que principiara com o
joelho.
Terminada a leitura o empresário, que durante os dois primeiros
atos a interrompera com significativos e irreverentes bocejos, e agora dormia a
sono solto, despertou logo que ouviu as consoladoras palavras: "cai o
pano", e disse ao comediógrafo:
- Sim, senhor, é uma bonita comédia... mas não é para o meu
teatro... é muito fina, tem pouca bexigada... Entretanto, não digo que a não
represente... hei de representá-la, mas quando o teatro estiver mais
encarreirado. O doutor tem muito talento: escreva outra comédia, mas com sal
mais grosso, com sal de cozinha.
- De cozinha?!
- De cozinha, sim senhor! Isto de sal fino não traz dez réis à
bilheteria!
O bacharel Sesostris, que tinha a inestimável fortuna de contar
apenas vinte e dois anos, deixou-se iludir; mas, quando mesmo recebesse, como
dramaturgo, um desengano formal, que lhe importava, se Rosalina, a formosa
Rosalina, tão cobiçada por todos os homens, ali estava para consolá-lo das
medonhas lutas de autor incipiente?
Quando o empresário acabou de lhe recomendar o sal grosso, ele
voltou-se e procurou-a com os olhos: ela desaparecera, sem ao menos dizer-lhe
adeus...
Dali por diante, o bacharel entrou a freqüentar a caixa do teatro,
e especialmente o camarim de Rosalina; esta, porém, não renovou as
manifestações do joelho e do pé, como se resolvida estivesse a mostrar ao moço
que ele não podia subir mais alto...
Figurava na companhia um velho ator que se dizia muito amigo de
Sesostris, e lhe captara a confiança; este escolheu-o para confidente dos seus
amores, e contou-lhe as provocações da atriz.
O velho ator sorriu maliciosamente.
- Como se explica - perguntou o bacharel - que essa mulher depressa mudasse de sentimento a meu respeito?
- Explica-se perfeitamente: você ia ler uma comédia e ela queria
apanhar o primeiro papel. Desde o momento em que percebeu a peça não seria
representada, fez tanto caso de você como da primeira camisa que vestiu.
- Então se a comédia fosse aceita...?
- Se a comédia fosse aceita, a Rosalina seria sua! E só assim
poderia tê-la de graça - aquilo é mulher de dinheiro.
Passaram-se três meses, e o teatro longe de se encarreirar como
crava o empresário, entrou numa dessas crises tão comuns na vida nossos
teatros. Depois de cinco ou seis desastres, o público afastou-se e o empresário
deixou de pagar regularmente aos artistas. A situação era desesperada.
Rosalina e o marido sofreram como os demais, considerando-se
felizes quando apanhavam dez ou vinte mil-réis por conta dos vencimentos
atrasados.
Foi nestas circunstâncias que o pé e o joelho da atriz voltaram a
perturbar o sossego do bacharel Sesostris.
A opinião do velho ator não a desmerecera no espírito do moço; aos
vinte e dois anos o coração é cego para os defeitos da mulher por quem palpita,
e quando por ventura resolva analisá-los, acaba verificando que são qualidades
e não defeitos.
Uma noite, Sesostris,
ao despedir-se dela,
deixou-lhe nas mãos
bilhete pedindo-lhe uma entrevista, e dizendo-lhe que na noite
seguinte, durante o espetáculo, iria buscar a resposta ao camarim.
E foi.
A atriz deixou sair o cabeleireiro que a penteava, e disse ao
namorado:
- Seja prudente! Nem uma palavra sobre o assunto do seu bilhete.
- Mas... a resposta?
- Disfarce... Está ali sobre a janela... por baixo do pratinho da
moringa... Faça de conta que vai beber água...
Olhe que a
porta do camarim
está aberta, e
há por aí
muita gente desconfiada da sua
assiduidade.
Sesostris disfarçou, foi ao lugar da moringa, levantou o pratinho,
encontrou o bilhete, meteu-o na algibeira, conversou ainda alguns momentos, em
voz alta, sobre o calor, a falta do público, etc... e saiu, impaciente por ler
a desejada resposta.
Para fugir a
quaisquer olhares indiscretos,
meteu-se no mictório
do teatro e
foi ali, meio sufocado pelas exalações amoniacais,
que leu o seguinte:
"Doutor. - Antes de responder ao seu amável bilhete, quero
merecer-lhe um grande obséquio. Como sabe, a empresa está nos devendo três
quinzenas, o dia 15 está na porta, e é provável que ainda desta vez fiquemos a
ver navios, porque o teatro não tem feito nada. Estamos na miséria. Embora isto
muito me custe, peço-lhe que nos mande, amanhã, para a nossa casa, que o doutor
sabe onde é, os mantimentos constantes da inclusa lista, e que são para a nossa
despensa. Desculpe o incômodo e creia na amizade da sua - Rosalina."
A esta carta inverossímil, estava, efetivamente anexa, uma lista
de secos e molhados – tantos litros de feijão, tantos quilos de carne-seca,
etc. Nada faltava: azeite, macarrão, azeitonas, vinho, pacotes de velas,
lamparinas, manteiga, o diabo!
No dia seguinte
parava uma carroça
à porta de
Rosalina, levando todos
esses comes e bebes; mas o bacharel Sesostris, apesar dos
seus vinte e dois anos, entendeu que nunca mais deveria aparecer àquela
estúpida.
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Nota:
Texto-fonte: Artur de
Azevedo: Contos Cariocas, data não identificada
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