domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "O Galo"


O GALO


A cena passa-se na roça, a uma légua da estação menos importante da Estrada de Ferro Leopoldina, lugarejo sem denominação geográfica, mas que pertence ao município do Rio Bonito, e aqui o digo, para que os leitores não suponham que estou inventando uma historieta.

Havia no lugarejo em questão uma palhoça habitada por dois roceiros, marido e mulher,   que   todos   os   domingos   iam   à   povoação   mais   próxima   vender   os produtos da sua pequena roça e ouvir missa. Assim atamancavam eles a vida, pedindo  a  Deus   que   não  lhes  desse  muita  fazenda  mas  lhes   conservasse  a saúde.

Ora, um belo dia a saúde desapareceu: o marido, apesar de ter a resistência de um touro, foi para a cama atacado por umas cólicas terríveis, que o faziam ver estrelas.

A mulher, coitada!, estava sem saber o que fizesse, pois que já havia em vão experimentado todas as mesinhas caseiras, quando ali  passou por acaso,  ao trote do seu jumento, o Dr. Marcolino, que exercia a medicina ambulante numa zona de muitas  léguas. A roceira agradeceu a Providência que lhe enviava o doutor   e   pediu   a   este   que   examinasse   o   doente   e   o   pusesse   bom   o   mais baratinho que lhe fosse possível.

O Dr. Marcolino apeou-se, entrou na palhoça, examinou o enfermo, auscultou-o, martelou-lhe o corpo inteiro com o nó do dedo grande e explicou a moléstia com palavras difíceis que aquela pobre gente não entendeu. Depois, abriu o saco de viagem  que levava à garupa do animal, tirou alguns vidros, de cujo conteúdo derramou algumas gotas num copo d'água, e disse doutoralmente:

- Aqui fica esta poção para ser tomada de três em três horas.

- Ah!  seu doutor, nós aqui não  podemos contar as horas, porque não temos relógio!

-  Regulem-se  pelo   sol.  O  sol é  um  excelente   relógio  quando   não chove  e o tempo está seguro.

- Não sei disso, seu doutor, não entendo do relógio do sol...

- Nesse caso não sei como... Ah!...

Este  ah!,  com que o doutor interrompeu  o que  ia dizendo, foi produzido  pela presença de um galo que passava no terreiro, majestosamente.

- Ali está um relógio, continuou o doutor: aquele galo. Todas as vezes que ele cantar,   dê-lhe   uma   colher   do   remédio.   E   adeus!   Não   será   nada:   Depois   de amanhã voltarei para ver o doente.

Foi-se o médico, e daí a dois dias voltou ao trote do seu jumento.

Quem o recebeu foi o marido:

- Que é isto?... já de pé...

- Sim, senhor: estou completamente bom, não tenho mais nada. E não sei como agradecer...

Mas a mulher interveio com ar magoado:

- Sim, ele não tem mais nada, mas o pobre galo morreu.

- Morreu? Por quê?.

- Não sei, doutor... ele bebeu todo o remédio.

- Quem?... o galo?...

- Sim, senhor; todas as vezes que ele cantava, eu, segundo a recomendação do doutor, abria-lhe o bico, e derramava-lhe uma colher da droga pela goela abaixo! Que pena! Era um galo tão bonito!


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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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