O caso que
vou contar passou-se
há um bom
par de anos,
quando no Rio
de Janeiro o espiritismo não tinha ainda o caráter de
seriedade nem os ilustres prosélitos que hoje tem, mas começava a ocupar a
atenção e a roubar o tempo a algumas pessoas de boa fé.
Entre essas figurava o Garcia, bom homem, cujo único defeito era
ser fraco de inteligência, defeito que todos lhe perdoavam por não ser culpa
dele.
O nosso herói não se
empregava absolutamente noutra
coisa que não fosse comer, beber, dormir e trocar as pernas pela cidade.
Tinha herdado dos pais o suficiente para levar essa vida folgada e milagrosa, e
só gastava o rendimento do seu patrimônio.
Casara-se com d.
Laura que, não
sendo formosa que
o inquietasse, nem
feia que lhe repugnasse, era
mais inteligente e
instruída que ele.
Esta superioridade dava-lhe
certo ascendente, de que ela usava e abusava no lar doméstico, onde só a
sua vontade e a sua opinião prevaleciam sempre.
O Garcia não se revoltava contra a passividade a que era submetido
pela mulher: reconhecia que d. Laura tinha sobre ele grandes vantagens
intelectuais e, se era honesta e fiel aos seus deveres conjugais, que lhe importava
a ele o resto?
Sim, que d. Laura já não lembrava do Frederico...
Quem era esse
Frederico? Um elegante
guarda-livros, que a
namorava quando o
Garcia apareceu iluminado pela sua auréola de capitalista, pondo-o
imediatamente fora de combate.
Ou fosse para
melhorar de situação
ou porque realmente
o magoasse a
vitória fácil do dinheiroso rival, o guarda-livros, ainda
d. Laura não se tinha casado, mudara-se para São Paulo, e nunca mais souberam dele,
nem ela, nem o Garcia.
Num dia em
que este, ano
e meio depois
de casado, perguntou,
a gracejar, pelo
primeiro namorado de sua mulher, d. Laura, no generoso intuito de o
tranqüilizar, respondeu, simulando indiferença:
- Não sei... Parece que morreu...
- Morreu?...
- Pelo menos disseram-me que sim... em São Paulo... Não sei ao
certo, nem isso me interessa.
Por esse tempo já o Garcia tinha sido iniciado, por algum amigo,
nos mistérios do espiritismo, e fazia
parte de um grupo,
um dos primeiros
que organizaram nesta
cidade, para estudar
os fenômenos revelados nos livros de Allan-Kardec.
Os associados reuniam-se todos os sábados para consultar a mesa
giratória, evocar espíritos e conversar
com defuntos célebres.
Produziam-se, realmente, alguns
fenômenos, que impressionaram
profundamente o espírito débil de Garcia, a ponto de fazer com que ele não pensasse
mais noutra coisa a não ser em almas de outro mundo.
Tinha o nosso espírita grande curiosidade de evocar por meio de
tal mesa giratória o espírito de Frederico, apenas para verificar se estava
morto o seu antigo rival; abstinha-se, porém, de o fazer pelo receio de que os
colegas do grupo, sabendo do namoro da sua mulher, o tomassem por ciumento e
ridículo.
Mas uma noite,
em que a
sessão ainda não
começara, e estavam
presentes apenas dois companheiros, que mal o conheciam, o
Garcia pediu-lhes que o ajudassem a evocar o espírito de um amigo.
Os outros aquiesceram. Sentaram-se os três e espalmaram as mãos
sobre uma pequena mesa de três pés, que em poucos minutos começou a mexer-se
como um ser animado.
- Está presente o espírito que evoquei? - perguntou o Garcia em
voz sinistra e cavernosa. - Se está presente, dê duas pancadas!
A mesa inclinou-se duas vezes, e obedeceu.
- Faça o favor de dizer o seu nome por letras do alfabeto! -
continuou o Garcia no mesmo tom.
A mesa deu seis pancadas.
- F - disseram os dois companheiros.
- Adiante!
A mesa deu dezoito pancadas.
- R - repetiram os espíritas.
- Adiante!
A mesa deu cinco pancadas.
- E - explicou um dos três.
- F, R, E - disse o outro.
E em tom de comando, acrescentou:
- Se é Frederico, dê uma pancada forte!
A mesa deu uma pancada tão violenta, que partiu a perna.
O Garcia ergueu-se lívido e assombrado, gaguejando:
- Estou satisfeito.
- Mesmo porque é preciso consertar a mesa - concluiu um dos
companheiros.
- Com duas pernas é impossível fazê-la trabalhar.
O que preocupava o grupo já não eram os espíritos invisíveis nem
os fenômenos da mesa, que se poderiam atribuir a simples efeitos do magnetismo
animal; o que todos ali desejavam era ver um espírito materializado, e para
isso tinham empregado grandes esforços, mas sempre vãos.
Nessa ocasião estavam presentes no Rio de Janeiro não só o
espírito como o corpo, em carne e osso, do Frederico, vindo de São Paulo para
tratar de um negócio urgente, de três a quatro dias.
Apesar da pressa que trazia, o guarda-livros achou um momento disponível
para passar pela casa do Garcia, na esperança de ver - apenas ver - d. Laura.
Poupem-me os leitores explicar-lhes como não só a viu, como lhe falou; e até
entrou para a sala...
O caso ê que, naquela noite, a mesma da evocação, voltando o
Garcia para os seus penates mais cedo que de costume, pois que a sessão não se
realizara por falta de número, encontrou o Frederico no corredor, saindo para a
rua, e ficou tão estupefato que o deixou sair sem lhe dirigir a palavra.
O pobre-diabo foi direto ao quarto de sua mulher, que, ouvindo-lhe
os passos apressados, se sentara
mais que depressa
numa cadeira de
balanço, a ler
um livro, fingindo
a maior tranqüilidade.
- Que quer isto dizer?
- Isto quê?
- Esse homem que acaba de sair daqui?
- Um homem?! Daqui?! Tu estas doido!...
- Oh, senhora! Pois não esteve aqui um homem?
- Estás doido, repito.
- Eu vi-o!
- Não podias ter visto.
- Vi-o, e era o Frederico!
D. Laura soltou uma risada.
- Ora o Frederico! Um morto! Olha, sabes que mais? O tal
espiritismo transtorna-te o miolo! O melhor é deixares-te disso!
O Garcia pensou:
- Um morto... Sim, ele está' morto... e ele então materializou-se
para aparecer-me... Não foi outra coisa!
No sábado seguinte, o Garcia apareceu radiante ao grupo:
- Meus amigos, tenho que lhes fazer uma comunicação muito
importante: sou médium vidente!
- Deveras? - exclamaram todos em coro.
- É o que lhes digo! Sábado passado, ao entrar em casa, encontrei
no corredor uma pessoa que morreu em são Paulo.
- Conte-nos isso - ordenou o presidente do grupo - Você não teve
medo?
- Eu? Nenhum! O espírito, sim, o espírito é que, pelos modos, teve
medo de mim, porque assim que me viu deitou a fugir...
---
---
Nota:
Texto-fonte:
Artur de Azevedo: Contos Diversos, data não identificada
Nenhum comentário:
Postar um comentário