sexta-feira, 29 de março de 2013

Artur de Azevedo: "O Espírito"


O ESPÍRITO

  
O   caso   que   vou   contar   passou-se   há   um   bom   par   de   anos,   quando   no   Rio   de   Janeiro   o espiritismo não tinha ainda o caráter de seriedade nem os ilustres prosélitos que hoje tem, mas começava a ocupar a atenção e a roubar o tempo a algumas pessoas de boa fé.

Entre essas figurava o Garcia, bom homem, cujo único defeito era ser fraco de inteligência, defeito que todos lhe perdoavam por não ser culpa dele.

O nosso herói não  se empregava absolutamente noutra  coisa  que  não fosse comer,  beber, dormir e trocar as pernas pela cidade. Tinha herdado dos pais o suficiente para levar essa vida folgada e milagrosa, e só gastava o rendimento do seu patrimônio.

Casara-se   com   d.   Laura   que,   não   sendo   formosa   que   o   inquietasse,   nem   feia   que   lhe repugnasse,   era   mais   inteligente   e   instruída   que   ele.   Esta   superioridade   dava-lhe   certo ascendente, de que ela usava e abusava no lar doméstico, onde só a sua vontade e a sua opinião prevaleciam sempre.

O Garcia não se revoltava contra a passividade a que era submetido pela mulher: reconhecia que d. Laura tinha sobre ele grandes vantagens intelectuais e, se era honesta e fiel aos seus deveres conjugais, que lhe importava a ele o resto?

Sim, que d. Laura já não lembrava do Frederico...

Quem   era   esse   Frederico?   Um   elegante   guarda-livros,   que   a   namorava   quando   o   Garcia apareceu iluminado pela sua auréola de capitalista, pondo-o imediatamente fora de combate.

Ou   fosse   para   melhorar   de   situação   ou   porque   realmente   o   magoasse   a   vitória   fácil   do dinheiroso rival, o guarda-livros, ainda d. Laura não se tinha casado, mudara-se para São Paulo, e nunca mais souberam dele, nem ela, nem o Garcia.

Num   dia   em  que   este,  ano   e  meio  depois   de   casado,   perguntou,   a  gracejar,   pelo   primeiro namorado de sua mulher, d. Laura, no generoso intuito de o tranqüilizar, respondeu, simulando indiferença:

- Não sei... Parece que morreu...

- Morreu?...

- Pelo menos disseram-me que sim... em São Paulo... Não sei ao certo, nem isso me interessa.

Por esse tempo já o Garcia tinha sido iniciado, por algum amigo, nos mistérios do espiritismo, e fazia   parte  de um  grupo,  um  dos   primeiros  que  organizaram  nesta  cidade,  para  estudar  os fenômenos revelados nos livros de Allan-Kardec.

Os associados reuniam-se todos os sábados para consultar a mesa giratória, evocar espíritos e conversar   com   defuntos   célebres.   Produziam-se,   realmente,   alguns   fenômenos,   que impressionaram profundamente o espírito débil de Garcia, a ponto de fazer com que ele não pensasse mais noutra coisa a não ser em almas de outro mundo.

Tinha o nosso espírita grande curiosidade de evocar por meio de tal mesa giratória o espírito de Frederico, apenas para verificar se estava morto o seu antigo rival; abstinha-se, porém, de o fazer pelo receio de que os colegas do grupo, sabendo do namoro da sua mulher, o tomassem por ciumento e ridículo.

Mas   uma   noite,   em   que   a   sessão   ainda   não   começara,   e   estavam   presentes   apenas   dois companheiros, que mal o conheciam, o Garcia pediu-lhes que o ajudassem a evocar o espírito de um amigo.

Os outros aquiesceram. Sentaram-se os três e espalmaram as mãos sobre uma pequena mesa de três pés, que em poucos minutos começou a mexer-se como um ser animado.

- Está presente o espírito que evoquei? - perguntou o Garcia em voz sinistra e cavernosa. - Se está presente, dê duas pancadas!

A mesa inclinou-se duas vezes, e obedeceu.

- Faça o favor de dizer o seu nome por letras do alfabeto! - continuou o Garcia no mesmo tom.

A mesa deu seis pancadas.

- F - disseram os dois companheiros.

- Adiante!

A mesa deu dezoito pancadas.

- R - repetiram os espíritas.

- Adiante!

A mesa deu cinco pancadas.

- E - explicou um dos três.

- F, R, E - disse o outro.

E em tom de comando, acrescentou:

- Se é Frederico, dê uma pancada forte!

A mesa deu uma pancada tão violenta, que partiu a perna.

O Garcia ergueu-se lívido e assombrado, gaguejando:

- Estou satisfeito.

- Mesmo porque é preciso consertar a mesa - concluiu um dos companheiros.

- Com duas pernas é impossível fazê-la trabalhar.

O que preocupava o grupo já não eram os espíritos invisíveis nem os fenômenos da mesa, que se poderiam atribuir a simples efeitos do magnetismo animal; o que todos ali desejavam era ver um espírito materializado, e para isso tinham empregado grandes esforços, mas sempre vãos.

Nessa ocasião estavam presentes no Rio de Janeiro não só o espírito como o corpo, em carne e osso, do Frederico, vindo de São Paulo para tratar de um negócio urgente, de três a quatro dias.

Apesar da pressa que trazia, o guarda-livros achou um momento disponível para passar pela casa do Garcia, na esperança de ver - apenas ver - d. Laura. Poupem-me os leitores explicar-lhes como não só a viu, como lhe falou; e até entrou para a sala...

O caso ê que, naquela noite, a mesma da evocação, voltando o Garcia para os seus penates mais cedo que de costume, pois que a sessão não se realizara por falta de número, encontrou o Frederico no corredor, saindo para a rua, e ficou tão estupefato que o deixou sair sem lhe dirigir a palavra.

O pobre-diabo foi direto ao quarto de sua mulher, que, ouvindo-lhe os passos apressados, se sentara   mais   que   depressa   numa   cadeira   de   balanço,   a   ler   um   livro,   fingindo   a   maior tranqüilidade.

- Que quer isto dizer?

- Isto quê?

- Esse homem que acaba de sair daqui?

- Um homem?! Daqui?! Tu estas doido!...

- Oh, senhora! Pois não esteve aqui um homem?

- Estás doido, repito.

- Eu vi-o!

- Não podias ter visto.

- Vi-o, e era o Frederico!

D. Laura soltou uma risada.

- Ora o Frederico! Um morto! Olha, sabes que mais? O tal espiritismo transtorna-te o miolo! O melhor é deixares-te disso!

O Garcia pensou:

- Um morto... Sim, ele está' morto... e ele então materializou-se para aparecer-me... Não foi outra coisa!

No sábado seguinte, o Garcia apareceu radiante ao grupo:

- Meus amigos, tenho que lhes fazer uma comunicação muito importante: sou médium vidente!

- Deveras? - exclamaram todos em coro.

- É o que lhes digo! Sábado passado, ao entrar em casa, encontrei no corredor uma pessoa que morreu em são Paulo.

- Conte-nos isso - ordenou o presidente do grupo - Você não teve medo?

- Eu? Nenhum! O espírito, sim, o espírito é que, pelos modos, teve medo de mim, porque assim que me viu deitou a fugir...


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Nota:
Texto-fonte: Artur de Azevedo: Contos Diversos, data não identificada

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