O Borges não a tinha visto nunca senão à janela da casa paterna:
só lhe conhecia o busto, e não era preciso mais nada para encantá-lo, porque na
verdade ela possuía o palmo da cara mais simpático e ao mesmo tempo mais lindo
que era possível imaginar.
Chamava-se Idalina, e era filha natural de um vidraceiro
estabelecido na loja do prédio em que ambos moravam. Não iam a parte alguma.
Havia uma circunstância, uma
só, que contrariava
o Borges; a mãe da
pequena tinha sido mulher
da vida alegre;
dera em público
toda a espécie
de escândalos, e
fora, afinal, assassinada, durante
uma pândega, por
um dos seus
inúmeros e sucessivos
amantes. É verdade que Idalina
desde a mais tenra idade fora subtraída ao contato dessa mulher, e nunca mais a
viu: mas o Borges preferia, naturalmente, que ela fosse filha de outra mãe;
entretanto, não se lhe dava de ligar o seu destino ao dela, tão forte era a
simpatia que a moça lhe inspirava.
A filha do vidraceiro parecia não ser indiferente ao afeto que se
formara no coração de Borges; todas as vezes que ele passava, pela manhã ou à
tarde, caminho da repartição ou caminho de casa, ela correspondia ao seu
cumprimento respeitoso com um sorriso afável, que não era o sorriso de uma
janeleira vulgar, e tinha alguma coisa de triste e de reservado.
Estava o Borges
impressionado ao último
ponto, quando um
feliz acaso lhe
revelou que o Ventura, um dos seus melhores amigos,
conhecia intimamente o pai e a filha. Ele, o Borges não sabia outra coisa senão
a lamentável particularidade do nascimento de Idalina; soubera-o por casualidade, no
bonde, ouvindo a
conversa de dois
passageiros que a
viram à janela
e a conheciam.
O Ventura, quando o amigo pediu as desejadas informações,
desfez-se em calorosos elogios.
- É a criatura mais doce, mais bondosa que o céu cobre! É uma
santa; uma verdadeira santa; mas, meu amigo... sim, infelizmente há um mas...
O Borges adivinhou que o amigo se referia à mãe de Idalina, e
atalhou:
- Sei o que é, mas não importa... Coitada! Que culpa tem ela dessa
desgraça?
- Nenhuma culpa tem, mas dificilmente encontrará marido. Se fosse
rica, não digo nada; há homens que por dinheiro fecham os olhos a tudo, mas o
Lemos, o pai, não tem por onde se lhe pegue...
- Pois fica sabendo que não se me dava de ser seu marido.
- Tu?... Apesar de...?
- Apesar de tudo!
- Mas olha que não poderias levar tua mulher a parte alguma!
- Por quê?
- Seria ridículo!
- Deixá-lo ser! Ela é boa, é digna, é honesta, não é?
- Ah! Por esse lado, não conheço outra que mais o seja!
- Neste caso, exijo de ti um grande serviço: rogo-te que vás ter
com o pai e que a peças em meu nome.
- Alto lá! Essas coisas não se fazem assim! Deves primeiramente
consultá-la, e só depois de autorizado por ela, pedi-la ao pai, mas tu,
pessoalmente, e não eu. O mais que posso fazer é apresentar-te ao velho.
- Pois está dito!
No mesmo dia o Borges encontrou meios e modos de fazer com que um
bilhete seu chegasse às mãos de Idalina:
"Minha senhora", dizia esse bilhete, "eu chamo-me
Laurindo Borges, sou de família honrada, tenho perto de trinta anos, exerço um
emprego público, não tenho ligações nem compromissos de espécie alguma, e ganho
o necessário para constituir família. Julgo que não lhe sou de todo indiferente;
portanto, rogo-lhe a necessária autorização para pedi-la em casamento a seu
pai. O obstáculo que de alguma
forma se poderia opor a nossa
união desaparece diante do amor profundo
e da sincera estima que a senhora me inspirou."
A resposta não se fez esperar:
"Uma vez que o sr. fecha os olhos a um obstáculo que parecia
condenar-me ao celibato, e uma vez que, não sendo ingrata, retribuo largamente
os sentimentos que despertei no seu coração, autorizo-o a pedir a minha mão a
papai. Venha domingo, ao meio-dia: ele estará em casa, e prevenido por
mim."
À vista desse bilhete, o Borges poderia apresentar-se sozinho, mas
foi ter com o Ventura e pediu-lhe que o acompanhasse.
No domingo aprazado,
ao meio-dia em
ponto, entravam ambos
na sala do
Lemos, que os recebeu de braços abertos.
- Aqui tem - disse-lhe o Ventura - o meu amigo Laurindo Borges,
que lhe vem fazer um pedido muito sério, e cá estou eu para aboná-lo.
- Queiram sentar-se - disse o velho; e, depois de sentados os
três, continuou: - Já sei do que se trata. Minha filha, que não tem segredos
para mim, mostrou-me o bilhete do sr. Borges e o que dirigiu em reposta. Mas
fiquei surpreso, surpreso e ao mesmo tempo jubiloso, quando vi que o senhor não
considera um obstáculo a...
- Não! - interrompeu o
Borges. - E peço-lhe, sr. Lemos, que não me fale mais nisso. Dona Idalina
possui qualidades morais que tudo compensam.
- Então o amigo fecha os olhos àquele defeito?
- Já lhe disse que sim.
- Bom; nesse caso, vou chamá-la.
E erguendo a voz:
- Idalina?
- Papai? - respondeu lá de dentro uma voz argentina e sonora que
soou aos ouvidos de Borges como um hino de amor.
- Vem cá, minha filha!
Não se ouviram
passos, mas um
toc, toc, toc,
toc, que intrigou
seriamente o namorado,
e quando Idalina, radiante de beleza, entrou na sala, ele verificou, à
primeira vista, que a moça tinha uma perna de pau!
Foi tal o espanto do pobre rapaz, que todos adivinharam logo que
ele ignorava aquela ausência de perna. Idalina caiu sentada numa cadeira,
cobrindo o rosto com as mãos, debulhada em pranto.
- Pois o senhor não disse que conhecia o obstáculo? - perguntou o
vidraceiro.
- Eu referia-me à mãe de D.Idalina...
- Ora, meu caro, isso jamais seria um obstáculo, porque ela é o
contrário do que foi aquela infeliz mulher; é uma pérola, que saiu do lodo,
como todas as pérolas.
Mas o Borges estava dominado pela beleza de Idalina, e as lágrimas
da moça acabaram de subjugá-lo. Ele ergueu-se e, num generoso ímpeto de amor,
correu para ela, ajoelhou-se aos seus pés - quero dizer: ao seu pé - tomou-lhe
as mãos ambas, e beijou-as dizendo:
- Que me importa que tenhas uma perna de pau, se tens um coração
de ouro?
- Ora, ainda bem! - exclamou o velho. - Case-se, e creia que leva
uma mulher completa, apesar de lhe faltar uma perna!
Casaram-se e foram muito felizes. O pai tinha razão.
O Borges, para consolar-se do aleijão da esposa, muitas vezes
dizia aos seus botões:
- Idalina talvez não fosse tão boa, tão carinhosa, tão submissa,
tão fiel, se tivesse ambas as pernas...
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Nota:
Texto-fonte:
Artur de Azevedo: Obra e data não identificada
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