Conquanto exercesse a profissão de advogado, e como tal fosse
muitas vezes coagido a mentir, o Dr. Lacerda abominava mentirosos, e tudo
perdoava ao filho, ao Epaminondas, menos falir à verdade; por isso lhe dera o
nome do famoso general tebano, que nem brincando mentia.
Releva dizer que, em solteiro, no tempo em que andou de casa e
pucarinha com a Esmeralda, que deixou fama nas rodas alegres da vida carioca, o
Dr. Lacerda foi mais enganado por essa mulher que Cláudio por Messalina; desse
amargo período da sua existência lhe ficou talvez, aquele sentimento de repulsão aliás muito louvável,
por tudo quanto não fosse a expressão exata
e cristalina da verdade.
Depois que a Esmeralda partiu para a Europa, e serenou a vida do
seu amante, gravemente perturbada por aqueles amores infelizes e ridículos, o
Dr. Lacerda, desejoso de constituir família encontrou D. Sidônia, uma excelente
moça e formosa, de quem se enamorou, e que aceitou satisfeita a sua mão de
esposo, porque o amava. Casaram-se.
Eram felizes, mas na sua felicidade havia uma nuvenzinha: a
Esmeralda. Com o seu estimável, mas inconvenientissimo sistema de não encobrir
a verdade, fosse qual fosse, o Dr. Lacerda contara lealmente, ainda noivo, todo
o seu tempestuoso passado àquela que deveria ser sua esposa.
Imprudência foi, porque D. Sidônia ficou ciumenta desse passado. A
Esmeralda ainda vivia; apenas
mudara de terra;
poderia de um
momento para outro
aparecer inopinadamente, e perturbar a ventura do amoroso casal.
Talvez não estivesse de todo extinta a chama antiga; bastaria, talvez, a
presença daquela mulher perigosa para reacendê-la no coração do advogado.
Esses receios não se
modificaram profundamente com o
nascimento do Epaminondas, nem mesmo com o deslizar do tempo.
Havia já nove anos que viera ao mundo o homônimo do estadista de
Tebas, quando um belo dia D. Sidônia soube, pelo próprio marido, que a
Esmeralda voltara da Europa, e mais bela, mais atraente que nunca. Era a
verdade, a verdade implacável, que ele não podia esconder.
A esposa sobressaltou-se, coitada, - mas o marido tranqüilizou-a
com estas palavras:
- Não é justo que me tenhas na conta de um homem desprezível. Não
sinto por essa mulher senão asco.
- Não, não és, bem sei, um homem desprezível; és, pelo contrário,
o modelo dos homens de bem; mas a natureza é fraca, e essa mulher um demônio
capaz de transformar o teu caráter!
- Não creias.
- Olha, Lacerda,
se eu souber
que estiveste com
ela... que lhe
falaste... eu... nem
sei que desatino farei!... Sou
capaz de suicidar-me!...
- Cala-te! Não digas tolices!...
- Em todo caso, se te encontrares com esse diabo, se lhe falares,
por amor de Deus não me digas nada! Ao
menos por esta vez, só por esta vez, encobre-me a verdade!... Podes causar uma
desgraça!... Vê como estou nervosa!...
- Isso passa.
Poucos dias depois, seriam três horas da tarde, estava o advogado
no seu consultório da rua da Quitanda, em companhia do Epaminondas, que viera
ter com o pai a fim de preveni-lo que D. Sidônia, viria buscá-lo para ir com
ele ao dentista.
De repente abriu-se a porta do consultório, e a Esmeralda entrou
como um raio.
- Ah! Lacerda, meu Lacerda, em fim te encontro!...
E, sem fazer caso do menino, a turbulenta cocotte abraçou
com veemência e beijou repetidas vezes
o seu ex-amante,
que em vão
forcejava por se
ver livre daquela
intempestiva e escandalosa
expansão.
- Deixe-me, senhora! Que é isto? Olhe o pequeno! É meu filho!
Mas qual! A Esmeralda, chorando e rindo ao mesmo tempo, continuava
a abraçá-lo e beijá-lo cada vez com mais efusão, e o Epaminondas, atônito,
pasmado, arregalava os olhos, sem se atrever a erguer-se da cadeira em que
estava sentado.
Nisto, o Dr.
Lacerda ouviu um
frufru de saias
na escada, e
reconheceu os passos
de sua mulher, que subia.
O pobre diabo soltou um grito de terror e, com um gesto enérgico e
brutal, afastou de si a inconseqüente Esmeralda.
- É minha mulher! Esconda-se!...
A cocotte compreendeu
tudo, e, sem
dizer palavra, meteu-se
numa alcova cuja
porta o advogado fechou.
Todos esses movimentos se realizaram num abrir e fechar d'olhos.
D. Sidônia entrou no consultório, e, vendo o marido com o
colarinho um pouco amarrotado e o laço da gravata desfeito, e o Epaminondas
muito espantado, passou a vista de um para outro, e perguntou:
- Que foi?... Que se passou?... Com quem falavas tu?... Quem
estava aqui?...
- Ninguém... nada... bem vês, - balbuciou o Dr. Lacerda.
Houve uma pausa.
O consultório estava impregnado do perfume da Esmeralda, um
perfume indiscreto e capitoso que a anunciava de longe; felizmente, porém, D.
Sidônia achava-se naquele dia atacada por um defluxo providencial, que lhe
tirava completamente o olfato.
Ela voltou-se para o filho:
- Epaminondas, teu pai ensinou-te a não mentir em nenhuma
circunstância da vida: dize-me a verdade: quem estava aqui?
- Uma senhora?
- Que senhora?
- Não a conheço.
- Que fez ela?
- Entrou como uma doida, e deu muitos beijos e muitos abraços em
papai!
D. Sidônia fulminou com um olhar terrível o Dr. Lacerda, que, para
disfarçar, atava de novo a gravata.
- Que senhora é essa? - interrogou ela com os lábios trêmulos.
O Epaminondas respondeu pelo pai:
- Uma senhora muito bonita, muito bem vestida, com um chapéu muito
grande!
- Onde está essa mulher?
- Papai disse-lhe que se escondesse, e ela escondeu-se...
- Onde?
- Naquele quarto.
D. Sidônia empurrou com o pé a porta da alcova, mas não encontrou
ninguém lá dentro: a Esmeralda,
praça velha que
não se apertava
nas ocasiões difíceis,
abrira outra porta, comunicando com o corredor, e
conseguira descer rapidamente a escada e sair para a rua sem fazer o menor
ruído.
Vendo a situação bem encaminhada,
o Dr. Lacerda recobrou o
sangue-frio, e, enquanto D. Sidônia
revistava a alcova, disse baixinho ao filho:
- Epaminondas, é preciso mentir; senão, tua mãe mata-se!
E quando D. Sidônia voltou da alcova, recebeu-a com uma
gargalhada:
- Ah! Ah! Ah! Ah!...
- Que quer isso dizer? - perguntou ela.
- Quer dizer que caíste como um patinho!
- Hem?
- Isto foi uma comédia arranjada por mim, com o auxílio do
Epaminondas. Fui eu que lhe ensinei aquela história de moça bonita, de chapéu
grande!
- Mas... para quê?
- Como disseste que te suicidaria se eu falasse à Esmeralda,
queria ver o que farias! Mas tenho pena de te ver aflita, e não espero pelo
resultado da pilhéria...
- Isso é verdade, Epaminondas?
- É mamãe, - respondeu o pequeno com um tom de convicção de quem
jamais fizera outra coisa, senão mentir.
- E este colarinho amarrotado?... E esta gravata?
- Foi de propósito, minha tola, para dar um quê de verossimilhança
à coisa.
- Achas então que sou tola? - disse D. Sidônia sorrindo e
sentando-se tranqüilamente. - Tolo és tu!
- Porquê?
- Não te lembras de que não me poderia entrar na cabeça que
estivesse aos beijos com essa mulher em presença do Epaminondas!
- É verdade! Que queres? Para mim, bem sabes, não há nada mais
difícil do que inventar uma peta. Vamos ao dentista!
Dali por diante, o Epaminondas começou a mentir por quantas juntas
tinha.
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Nota:
Texto-fonte: Artur de
Azevedo: Contos Diversos, data não identificada
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