Antes de entrar
definitivamente na vida
prática, Ludgero Baptista,
hoje um dos
nossos industriais de polpa, fazia versos. Eram rimas inofensivas;
entretanto, um dos seus sonetos - um, pelo menos - foi escrito com más tenções,
e, se alguma desculpa tem o poeta, deve-a unicamente aos seus vinte e três
anos, idade em que o homem não sabe medir bem as conseqüências dos seus
atos... nem dos seus versos.
Havia naquele tempo, como ainda as há, e em maior número, talvez,
uma senhora casada, por nome Laura Rosa, um nome de flor, a qual se comprazia
em arrastar atrás de si uma chusma de corações masculinos, e cuja formosura
fazia sensação em toda a parte aonde a levava o marido, um tal comendador Rosa,
muito dado a festas e espetáculos.
Ludgero encontrou-a um
dia no Jockey
Club, e aconteceu-lhe o
mesmo que a
todos os rapazes do seu gênero:
enamorou-se dela. Dali por diante não perdia corrida de cavalos em que Laura
Rosa estivesse, e,
ou fosse que
realmente os olhos
da formosa dama
lhe prometessem mais do
que deviam, ou
fosse natural filáucia
de namorado jovem,
ele considerou-se
autorizado a empregar
algumas diligências,
a fim de
que os seus
amores saíssem do período ingrato do platonismo, e entrassem numa
situação mais positiva.
Para isso, recorreu
à musa, que
não abandona o
poeta nessas emergências
exóticas, e escreveu o soneto em
questão. Era nada mais nem menos que uma injúria, até certo ponto atenuada pela
rima e pelo metro; mas, como se sabe, os fazedores de versos tiveram, em todos os
tempos, o privilégio
de insultar as
senhoras, sem que
a moral pública
os responsabilizasse por isso.
Eis aqui o soneto, que se intitulava:
SÚPLICA
Desde o dia feliz em que, pasmado,
Pela primeira vez te vi, senhora,
Um sentimento no meu peito mora
Feito de angústia e feito de pecado.
Não creias que ninguém houvesse amado
Tão loucamente como eu te amo agora,
Nem mesmo, oh! linda Laura, no de outrora
Cavalheiresco tempo celebrado!
Para que finde o meu suplício airoso,
Ou me concede o mendigado beijo,
Este martírio transformado em gozo,
Ou revela ao teu dono o meu desejo:
Talvez ele me faça venturoso,
Dando-me a doce morte, enfim, que almejo!
Ludgero Baptista assinou esse desaforo com as iniciais do seu
nome, L.B., e publicou-o na revista literária Nova Aurora, órgão
especial dos "novos" daquela época.
Publicado o soneto,
mandou o poeta
entregar um número
do periódico à
"linda Laura", procurando,
naturalmente, ocasião em que o comendador Rosa não estava em casa, e tendo o
cuidado de chamar, com um traço de lápis vermelho, a atenção da moça para os
versos em que tão indiscretamente ia envolvido o nome dela.
Não sei qual
foi o resultado
obtido por Ludgero,
nem isso importa
à narrativa; creio, entretanto, que a súplica não foi
atendida: nem Laura Rosa lhe deu aquele "mendigado beijo", que era um
eufemismo bandalho, nem disse nada ao seu dono, e ainda bem, porque se o poeta
não logrou a ventura que almejava, também não perdeu a vida, que aproveitou
mais tarde, nem mesmo apanhou a sova que merecia.
O caso é que o nosso homem tomou juízo, e abriu mão de todas as
suas veleidades poéticas, para cuidar de coisas mais sérias e mais úteis.
A fortuna sorriu-lhe. Aos trinta anos, estava ele senhor de
algumas centenas de contos de réis, e aos trinta e sete principiou a sentir,
pela primeira vez, necessidade de constituir família.
Isso coincidiu com o encontrar, em casa de uma família de amigos,
a interessante Blandina, moça pobre, que realizava perfeitamente o seu ideal,
quer no moral, quer no físico.
Blandina contava apenas vinte e três primaveras, justamente a
idade que ele tinha quando escrevera a "Súplica"; mas, não obstante
essa diferença de quatorze anos, o casamento não lhes pareceu desproporcionado:
queriam-se deveras.
Ela talvez fosse um pouco romântica, cheia de mistérios e
devaneios, sequiosa do imprevisto e do ignorado; mas esse defeito, se o era, não repugnava ao que em Ludgero ficara do sonhador de outrora.
Casaram-se.
Casaram-se, e foram excepcionalmente felizes durante os dez
primeiros anos; mas passado esse tempo, ele que estava às portas do
semicentenário e poderia passar por mais velho, ao passo que ela não parecia
ter ainda os seus trinta e três, julgou que sua mulher já não o amava como
dantes...
Perdi o encanto - disse ele aos seus botões - tenho agora os
cabelos grisalhos, engordei muito, sofro de reumatismo, e Blandina conserva a
mocidade, a beleza e a elegância que tinha
na ocasião do
nosso primeiro encontro...
O nosso enlace
não era, mas
tornou-se desigual... Para sermos felizes até a morte, fora preciso que
envelhecêssemos juntos, como Filêmon e Báucis...
Efetivamente, Blandina, que, durante os primeiros dez anos de
casada nunca reparou que seu marido ressonava alto, não o podia agora suportar,
queixando-se de não poder dormir ao som de um rabecão. Ao mesmo tempo
deixava-se absorver, horas esquecidas, em longas cismas, e suspirava de
instante a instante, como se alguma coisa lhe faltasse...
Ludgero inquietou-se, e começou a observar com olhos ciumentos o
que se passava em torno de si. Não lhe tardou perceber que a sua casa era
constantemente rondada por um rapazola, que poderia ser seu filho e, mesmo,
filho de sua mulher. De uma feita, deu com ele à esquina entregando uma carta à
cozinheira; escondeu-se, entrou em casa de mansinho, sem ser visto, e
interceptou a missiva no momento preciso em que esta passava das mãos da
intermediária para as de sua mulher.
Ludgero tomou a mão de Blandina, que tremia como varas verdes, e
levou-a para o interior do seu gabinete.
- Quem é aquele sujeitinho que te mandou esta carta?
- Não sei - respondeu ela, e desatou a chorar.
- Por que choras?
- Choro, porque não tenho culpa. Não sei quem me escreveu...
Desconfio de um mocinho impertinente que costuma passar por aqui e me
cumprimenta com um sorriso muito amável quando me vê à janela... Juro-te que eu
devolvia essa carta sem abrir!...
- Abro-a eu! - disse Ludgero, engasgado pela comoção - e rasgou o
invólucro. Estava dentro um soneto, escrito em papel ridículo, cercado de
florinhas e rendilhado nos cantos.
Ao ler o primeiro verso,
Desde o dia feliz em que, pasmado,
o marido reconheceu logo o seu velho soneto, que tinha sido
copiado, palavra por palavra, sofrendo apenas uma alteração no segundo
quarteto: o nome de "Laura" fora substituído pelo de
"Blandina", o que, aliás, desfigurava o verso, evidenciando que o
copista era inteiramente hóspede em metrificação.
Ludgero deu uma gargalhada.
- De que te ris?... Que há que te faça rir? - perguntou Blandina.
- Ri-me, porque o teu infeliz namorado te mandou um soneto que não
é dele, e sim meu!
- Teu?
- Sim! A coincidência é notável... Vais ver!
Ludgero abriu uma gaveta, e tirou de dentro dela o número
amarelado da Nova Aurora, em que
vinha estampada a sua "Súplica".
- Aqui tens! Olha! Compara! Está assinado com as minhas iniciais!
- Tu fazias versos?
- Fazia-os, e
ainda os farei,
se quiser -
tanto assim, que
vou escrever outro
soneto em resposta a este, e hás
de tu copiá-lo com tua letra, e eu mesmo o entregarei ao tal mocinho.
- Está dito!
A prontidão com que Blandina proferiu esse "está dito"
foi a melhor prova que Ludgero teve de que poderia continuar a conservá-la
junto de si. O mesmo não sucedeu à cozinheira, que foi posta na rua.
No dia seguinte estava escrita a resposta. Blandina copiou-a, e,
na mesma tarde, quando o rapazola, parado à esquina, interrogava as janelas,
Ludgero aproximou-se dele, e disse-lhe:
- Jovem, aqui tem a resposta de minha mulher ao seu soneto. Espero
que, depois de lê-la, o meu amiguinho não me rondará mais a porta; mas, se
continuar, previno-o de que o mato a bengaladas!...
O rapazola fugiu, e não consta que reaparecesse no bairro.
Foi esta a:
RESPOSTA
Para satisfazer ao seu pedido,
Na parte da denúncia e não do beijo,
Revelei a meu dono o seu desejo.
Os versos entreguei a meu marido.
Este em vez de ficar enfurecido,
E de agarrar um ferro malfazejo,
Tomou a coisa á conta de gracejo,
E pôs-se a rir como um perdido!
Pois se e ele o autor do tal soneto!
O senhor copiou-o da Nova Aurora,
Estragando-lhe apenas um quarteto...
Ele, que a Musa já mandou embora,
Cede-lhe os versos (discrição prometo),
Mas não quer sociedade na senhora.
Blandina Baptista
Blandina leu todos os versos antigos de seu marido, e perdoou-lhe
os cabelos grisalhos, o abdômen, o reumatismo e, até, o ressonar alto: adora-o.
Ludgero descobriu que
o rapazola era
filho de Laura
Rosa; provavelmente, encontrou
o soneto entre os papéis da mãe, que já não existia...
O ex-poeta viu em tudo isso uma espécie de punição, e, como tem os
seus momentos de filosofia barata, pensa muitas vezes que um homem pode ser
ferido, mais dia menos dia, pela própria arma que forja com intenção maligna,
mesmo quando essa arma seja simplesmente um mau soneto.
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Nota:
Texto-fonte: Artur de
Azevedo: Contos Diversos, data não identificada
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