sexta-feira, 29 de março de 2013

Artur de Azevedo: "História de um Soneto"


HISTÓRIA DE UM SONETO


Antes   de   entrar   definitivamente   na   vida   prática,   Ludgero   Baptista,   hoje   um   dos   nossos industriais de polpa, fazia versos. Eram rimas inofensivas; entretanto, um dos seus sonetos - um, pelo menos - foi escrito com más tenções, e, se alguma desculpa tem o poeta, deve-a unicamente aos seus vinte e três anos, idade em  que o homem  não sabe medir bem as conseqüências dos seus atos... nem dos seus versos.

Havia naquele tempo, como ainda as há, e em maior número, talvez, uma senhora casada, por nome Laura Rosa, um nome de flor, a qual se comprazia em arrastar atrás de si uma chusma de corações masculinos, e cuja formosura fazia sensação em toda a parte aonde a levava o marido, um tal comendador Rosa, muito dado a festas e espetáculos.

Ludgero   encontrou-a  um   dia   no   Jockey   Club,   e   aconteceu-lhe   o  mesmo   que   a   todos   os rapazes do seu gênero: enamorou-se dela. Dali por diante não perdia corrida de cavalos em que   Laura   Rosa   estivesse,   e,   ou   fosse   que   realmente   os   olhos   da   formosa   dama   lhe prometessem   mais   do   que   deviam,   ou   fosse   natural   filáucia   de   namorado   jovem,   ele considerou-se   autorizado   a   empregar   algumas   diligências,   a   fim   de   que  os   seus   amores saíssem do período ingrato do platonismo, e entrassem numa situação mais positiva.

Para  isso,   recorreu  à  musa,  que  não  abandona  o  poeta  nessas  emergências   exóticas,  e escreveu o soneto em questão. Era nada mais nem menos que uma injúria, até certo ponto atenuada pela rima e pelo metro; mas, como se sabe, os fazedores de versos tiveram, em todos   os   tempos,   o   privilégio   de   insultar   as   senhoras,   sem   que   a   moral   pública   os responsabilizasse por isso.

Eis aqui o soneto, que se intitulava:

SÚPLICA

Desde o dia feliz em que, pasmado,
Pela primeira vez te vi, senhora,
Um sentimento no meu peito mora
Feito de angústia e feito de pecado.

Não creias que ninguém houvesse amado
Tão loucamente como eu te amo agora,
Nem mesmo, oh! linda Laura, no de outrora
Cavalheiresco tempo celebrado!

Para que finde o meu suplício airoso,
Ou me concede o mendigado beijo,
Este martírio transformado em gozo,
Ou revela ao teu dono o meu desejo:
Talvez ele me faça venturoso,
Dando-me a doce morte, enfim, que almejo!

Ludgero Baptista assinou esse desaforo com as iniciais do seu nome, L.B., e publicou-o na revista literária Nova Aurora, órgão especial dos "novos" daquela época.

Publicado   o   soneto,   mandou   o   poeta   entregar   um   número   do   periódico   à   "linda   Laura", procurando, naturalmente, ocasião em que o comendador Rosa não estava em casa, e tendo o cuidado de chamar, com um traço de lápis vermelho, a atenção da moça para os versos em que tão indiscretamente ia envolvido o nome dela.

Não   sei   qual   foi   o   resultado   obtido   por   Ludgero,   nem   isso   importa   à   narrativa;   creio, entretanto, que a súplica não foi atendida: nem Laura Rosa lhe deu aquele "mendigado beijo", que era um eufemismo bandalho, nem disse nada ao seu dono, e ainda bem, porque se o poeta não logrou a ventura que almejava, também não perdeu a vida, que aproveitou mais tarde, nem mesmo apanhou a sova que merecia.

O caso é que o nosso homem tomou juízo, e abriu mão de todas as suas veleidades poéticas, para cuidar de coisas mais sérias e mais úteis.

A fortuna sorriu-lhe. Aos trinta anos, estava ele senhor de algumas centenas de contos de réis, e aos trinta e sete principiou a sentir, pela primeira vez, necessidade de constituir família.

Isso coincidiu com o encontrar, em casa de uma família de amigos, a interessante Blandina, moça pobre, que realizava perfeitamente o seu ideal, quer no moral, quer no físico.

Blandina contava apenas vinte e três primaveras, justamente a idade que ele tinha quando escrevera a "Súplica"; mas, não obstante essa diferença de quatorze anos, o casamento não lhes pareceu desproporcionado: queriam-se deveras.

Ela talvez fosse um pouco romântica, cheia de mistérios e devaneios, sequiosa do imprevisto e do ignorado; mas esse  defeito, se o era, não  repugnava ao que  em Ludgero ficara do sonhador de outrora.

Casaram-se.

Casaram-se, e foram excepcionalmente felizes durante os dez primeiros anos; mas passado esse tempo, ele que estava às portas do semicentenário e poderia passar por mais velho, ao passo que ela não parecia ter ainda os seus trinta e três, julgou que sua mulher já não o amava como dantes...

Perdi o encanto - disse ele aos seus botões - tenho agora os cabelos grisalhos, engordei muito, sofro de reumatismo, e Blandina conserva a mocidade, a beleza e a elegância que tinha   na   ocasião   do   nosso   primeiro   encontro...   O   nosso   enlace   não   era,   mas   tornou-se desigual... Para sermos felizes até a morte, fora preciso que envelhecêssemos juntos, como Filêmon e Báucis...

Efetivamente, Blandina, que, durante os primeiros dez anos de casada nunca reparou que seu marido ressonava alto, não o podia agora suportar, queixando-se de não poder dormir ao som de um rabecão. Ao mesmo tempo deixava-se absorver, horas esquecidas, em longas cismas, e suspirava de instante a instante, como se alguma coisa lhe faltasse...

Ludgero inquietou-se, e começou a observar com olhos ciumentos o que se passava em torno de si. Não lhe tardou perceber que a sua casa era constantemente rondada por um rapazola, que poderia ser seu filho e, mesmo, filho de sua mulher. De uma feita, deu com ele à esquina entregando uma carta à cozinheira; escondeu-se, entrou em casa de mansinho, sem ser visto, e interceptou a missiva no momento preciso em que esta passava das mãos da intermediária para as de sua mulher.

Ludgero tomou a mão de Blandina, que tremia como varas verdes, e levou-a para o interior do seu gabinete.

- Quem é aquele sujeitinho que te mandou esta carta?

- Não sei - respondeu ela, e desatou a chorar.

- Por que choras?

- Choro, porque não tenho culpa. Não sei quem me escreveu... Desconfio de um mocinho impertinente que costuma passar por aqui e me cumprimenta com um sorriso muito amável quando me vê à janela... Juro-te que eu devolvia essa carta sem abrir!...

- Abro-a eu! - disse Ludgero, engasgado pela comoção - e rasgou o invólucro. Estava dentro um soneto, escrito em papel ridículo, cercado de florinhas e rendilhado nos cantos.

Ao ler o primeiro verso,

Desde o dia feliz em que, pasmado,

o marido reconheceu logo o seu velho soneto, que tinha sido copiado, palavra por palavra, sofrendo apenas uma alteração no segundo quarteto: o nome de "Laura" fora substituído pelo de "Blandina", o que, aliás, desfigurava o verso, evidenciando que o copista era inteiramente hóspede em metrificação.

Ludgero deu uma gargalhada.

- De que te ris?... Que há que te faça rir? - perguntou Blandina.

- Ri-me, porque o teu infeliz namorado te mandou um soneto que não é dele, e sim meu!

- Teu?

- Sim! A coincidência é notável... Vais ver!

Ludgero abriu uma gaveta, e tirou de dentro dela o número amarelado da Nova Aurora,  em que vinha estampada a sua "Súplica".

- Aqui tens! Olha! Compara! Está assinado com as minhas iniciais!

- Tu fazias versos?

-   Fazia-os,   e  ainda   os   farei,   se   quiser   -  tanto   assim,   que   vou  escrever   outro   soneto  em resposta a este, e hás de tu copiá-lo com tua letra, e eu mesmo o entregarei ao tal mocinho.

- Está dito!

A prontidão com que Blandina proferiu esse "está dito" foi a melhor prova que Ludgero teve de que poderia continuar a conservá-la junto de si. O mesmo não sucedeu à cozinheira, que foi posta na rua.

No dia seguinte estava escrita a resposta. Blandina copiou-a, e, na mesma tarde, quando o rapazola, parado à esquina, interrogava as janelas, Ludgero aproximou-se dele, e disse-lhe:

- Jovem, aqui tem a resposta de minha mulher ao seu soneto. Espero que, depois de lê-la, o meu amiguinho não me rondará mais a porta; mas, se continuar, previno-o de que o mato a bengaladas!...

O rapazola fugiu, e não consta que reaparecesse no bairro.

Foi esta a:

RESPOSTA

Para satisfazer ao seu pedido,
Na parte da denúncia e não do beijo,
Revelei a meu dono o seu desejo.
Os versos entreguei a meu marido.

Este em vez de ficar enfurecido,
E de agarrar um ferro malfazejo,
Tomou a coisa á conta de gracejo,
E pôs-se a rir como um perdido!

Pois se e ele o autor do tal soneto!
O senhor copiou-o da Nova Aurora,
Estragando-lhe apenas um quarteto...

Ele, que a Musa já mandou embora,
Cede-lhe os versos (discrição prometo),
Mas não quer sociedade na senhora.

Blandina Baptista

Blandina leu todos os versos antigos de seu marido, e perdoou-lhe os cabelos grisalhos, o abdômen, o reumatismo e, até, o ressonar alto: adora-o.

Ludgero   descobriu   que   o   rapazola   era   filho   de   Laura   Rosa;   provavelmente,   encontrou   o soneto entre os papéis da mãe, que já não existia...

O ex-poeta viu em tudo isso uma espécie de punição, e, como tem os seus momentos de filosofia barata, pensa muitas vezes que um homem pode ser ferido, mais dia menos dia, pela própria arma que forja com intenção maligna, mesmo quando essa arma seja simplesmente um mau soneto.
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Nota:

Texto-fonte: Artur de Azevedo: Contos Diversos, data não identificada

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