POBRES LIBERAIS!
Foi no tempo do Império.
O notável político Dr.
Francelino Lopes, sendo presidente
de uma província cujo nome não mencionarei para
não ofender certas
suscetibilidades, aliás mal
entendidas, resolveu, aquiescendo
ao desejo dos chefes mais importantes do partido conservador (era o que estava de cima), fazer uma grande excursão por todo o
interior da província, visitando as principais localidades.
A notícia dessa resolução abalou necessariamente a população inteira,
e por toda a parte, não só as câmaras municipais como os cidadãos mais
importantes, correligionários do governo, se prepararam para receber
condignamente o ilustre delegado do gabinete imperial.
Na primeira cidade visitada pelo Dr. Francelino, foi S. Exa.
recebido na estação da estrada de ferro,
que se achava
ricamente adornada, ao
som do hino
nacional, executado por
uma indisciplinada charanga, e das bombas dos foguetes estourando no ar
e das aclamações do povo, cujo entusiasmo, se não era real, era, pelo menos,
espalhafatoso e turbulento.
Estavam presentes todas as autoridades locais. Houve três
discursos, cada qual mais longo, a que S. Exa. respondeu com poucas mas
eloqüentes palavras.
Da estação da
estrada de ferro,
seguiu o presidente,
a carro, acompanhado
sempre pelas autoridades e
grande massa de
povo, para a
câmara municipal, onde
o esperava opíparo banquete, a que fez honra o estômago
de S. Exa., o qual estava a dar horas como se fosse o estômago de um simples
mortal.
À mesa, defronte do presidente, sentou-se a Baronesa de Santana,
esposa do chefe do partido dominante, abastado fazendeiro, que se reservara a
honra e o prazer de hospedar o grande homem.
Este, que era bem parecido, que não tinha ainda 40 anos, e gozava
na capital do império de uma reputação um tanto donjuanesca, sentia-se devorado
pelos olhares ardentes da baronesa, de idade digna de um príncipe.
Eram 9 horas da noite quando terminou o banquete pelo brinde de
honra, erguido por S. Exa. à sua majestade, o Imperador.
Como a charanga
estivesse presente e
as moças manifestassem o
desejo de dançar, improvisou-se um
baile, e o
Dr. Francelino Lopes
dançou uma quadrilha
com a baronesa, apertando-lhe os
dedos de um
modo que nada
tinha de presidencial. A
essa inócua manifestação
muscular limitou-se, entretanto, o esboçado namoro, que não prosseguiu por
falta absoluta de ocasião.
Como o presidente se queixasse da fadiga produzida pela viagem, a
festa foi interrompida, e as autoridades conduziram S. Exa. aos aposentos que
lhe estavam reservados em casa do barão, na mesma praça onde se achava o
edifício da Câmara.
Nessa casa que, apesar de baixa, era a melhor da cidade, haviam
sido preparadas duas salas e uma alcova para o ilustre hóspede.
Qualquer dos três compartimentos estava luxuosamente mobiliado e o
leito era magnífico.
Os donos da
casa, o presidente
da Câmara, o juiz
de direito, o juiz
municipal, o vigário, o delegado de polícia e outras pessoas
gradas, mostraram a S. Exa. os seus cômodos, pedindo-lhe mil desculpas por não
ter sido possível arranjar coisa melhor, e todos se retiraram fazendo intermináveis
mesuras.
O último a sair foi o bacharel Pinheiro, proprietário e redator
principal d'A Opinião Pública, órgão do partido conservador.
- Peço permissão
para oferecer a
V. Exa. o
número do meu
jornal publicado hoje.
Traz a biografia e
o retrato de
V. Exa.. V.
Exa. me desculpará,
se não achar
essa modesta manifestação de
apreço à altura dos merecimentos de V. Exa.
O Dr. Francisco Lopes agradeceu, fechou a porta e soltou um longo
suspiro de alívio.
* * *
Logo que se viu sozinho, o presidente lembrou-se do seu criado de
quarto, que ali devia estar... Onde se meteria ele? Provavelmente adormecera
noutro cômodo da casa.
Felizmente o dorminhoco tivera o cuidado de desarrumar a mala de
S. Exa. e pusera à mão a sua roupa de cama e os seus chinelos.
O hóspede descalçou-se, despiu-se,
envergou a camisola
de dormir, deitou-se,
e abriu A Opinião Pública, disposto a ler a
sua biografia antes de apagar a vela.
Apenas acabara de examinar
o retrato, detestavelmente xilografado, sentiu
S. Exa. uma dolorosa contração no ventre, e logo em
seguida a necessidade imperiosa de praticar certo ato fisiológico de que nenhum
indivíduo se pode eximir, nem mesmo sendo presidente da província.
Ele saltou do leito e começou a procurar o receptáculo sem o qual
não poderia obedecer à natureza; mas nem
no criado-mudo nem debaixo da cama encontrou coisa alguma. Farejou todos os cantos: nada!
O barão, a baronesa, o presidente da Câmara, os juizes, o vigário,
o delegado de polícia, o redator d'A
Opinião Pública, ninguém se
lembrara de que S. Exa. era um homem
como os outros homens!
O Dr. Francelino
Lopes quis bater
palmas, chamar alguém,
pedir que o socorressem; mas esbarrou num preconceito ridículo da
nossa educação; envergonhou-se de confessar o que lhe parecia uma fraqueza e
era, aliás, a coisa mais natural deste mundo; receou perder a sua linha de primeira
autoridade da província,
desabar do pedestal
de semideus aonde
o guindaram durante a festa da
recepção.
Além disso, que diria a formosa provinciana, a bela baronesa cujos
dedinhos apertara, e cujos olhos pecaminosos o haviam devorado? Como dona da
casa seria ela a primeira a saber, e achá-lo-ia ridículo e grosseiro!
Entretanto, o momento era crítico. O delegado do governo imperial
começava a suar frio...
Mas de repente olhou para A Opinião Pública e lembrou-se não sei
de que aventura sucedida a outro hóspede, que se achava em semelhante
emergência. Não refletiu nem mais um segundo: o jornal do Bacharel Pinheiro,
desdobrado sobre o soalho, substituiu o receptáculo ausente.
Desobrigada a natureza, S. Exa. foi de mansinho, cautelosamente,
abrir uma janela.
A praça estava deserta e silenciosa. Nas sacadas da Câmara
Municipal morriam as últimas luminárias. A cidade inteira dormia.
Ele agarrou cuidadosamente A Opinião Pública pelas quatro pontas e
atirou tudo fora.. – Depois fechou a janela, lavou-se, perfumou-se, deitou-se,
e, com muita pena de não poder ler a sua biografia, apagou a vela.
Pouco depois dormia
o sono do
justo, que tem
igualmente desembaraçado o
ventre e a consciência.
* * *
O Dr. Francelino Lopes despertou, ou antes, foi despertado de
manhã, por um rumor confuso, que se fazia ouvir na praça, aumentando
gradualmente.
Prestou o ouvido, e começou a distinguir, entre aquela estranha
vozeira, frases de indignação, como:
- É uma infâmia!
- Que pouca vergonha!
- A vingança será terrível! etc.
E o barulho aumentava!
Não podia haver dúvida: tratava-se de uma perturbação da ordem
pública.
O presidente vestiu-se à pressa, abriu a janela, e foi recebido
por uma estrondosa ovação. Na praça estavam reunidas mais de quinhentas
pessoas.
- Viva o Sr. Presidente da Província!
- Vivou!
E a charanga executou o hino.
Terminado este, o
Bacharel Pinheiro aproximou-se da
janela presidencial, e
pronunciou as seguintes
palavras:
- Numerosos habitantes desta cidade, admiradores das altas
virtudes e dos talentos de V. Exa., vieram hoje aqui, ao romper d'alva, no
intuito de dar os bons dias a V. Exa., acompanhados de uma banda de música para
tocar a alvorada; mas, aqui chegando, foram surpreendidos pelo espetáculo de
uma injúria ignóbil, cometida contra a pessoa de V. Exa. e contra a imprensa livre!
- Apoiado! regougaram aquelas quinhentas gargantas como se fossem
uma só.
- Deixamos a injúria no lugar em que foi encontrada, isto é,
debaixo da janela de V. Exa., a fim de que
V. Exa. veja a que desatinos pode
levar nesta cidade o ódio político
e do que são capazes os liberais!
- Apoiado! vociferou a turba.
- Sim, foram os liberais! Só essa gente imunda poderia encher de
imundícies a respeitável efígie e a biografia de V. Exa.!
- Apoiado!
- Mas fique certo, excelentíssimo, de que, se foi grande a ofensa,
maior será o desagravo!
O presidente respondeu assim:
- Meus senhores, o acaso tem mistérios impenetráveis... tudo pode
ser obra do acaso, e não dos liberais. (À parte) Pobres liberais! (Alto)
Todavia, se ofensa houve, foi uma ofensa anônima, tudo quanto
pode haver de
mais anônimo... E
as ofensas anônimas
desprezam-se! Viva sua majestade o imperador!
- Vivou!
- Viva a religião do Estado!
- Vivou!
- Viva a constituição do Império!
- Vivou!
E a charanga atacou o hino.
(Vida Alheia)
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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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