domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Morta que Mata"


MORTA QUE MATA
(CONTO MEIO PLAGIADO E MEIO ORIGINAL)


Um dia em que o Barreto, acabado o expediente, palestrava com alguns dos seus colegas de repartição, queixou-se da mesquinhez dos ordenados.

- Ora! Tu nada sofres! Acudiu um dos colegas, com um sorriso impertinente.

- Nada sofro?! Ora esta! Por quê?!.

- Porque és rico!

- Rico, eu?!...

- Naturalmente. Se não fosses rico, tua mulher não poderia andar coberta de brilhantes!

O Barreto soltou uma gargalhada.

- Ah, meu amigo, os brilhantes de minha mulher são falsos, são baratinhos, não valem nada!

- Não parece.

- Não parece, mas são. Minha  mulher é de uma economia  feroz, e tudo quanto economiza emprega em toilettes  e jóias... mas que jóias!... Falsas, falsas como Judas... Já lhe tenho dito um  milhão de vezes que se deixe disso;  que não use jóias uma vez que não pode usá-las verdadeiras; que ela somente a si mesma se ilude, tornando-se ridícula aos olhos do mundo; mas não há meio: aquilo é mania! Tirem tudo, tudo à Francina, mas deixem-lhe as suas jóias de pechisbeque!...

Realmente assim essa Francina, de vez em quando, mostrava ao marido um par de bichas de brilhantes   ou   um   colar   de   pérolas,   que   produziam   o   mais   deslumbrante   efeito,   mas   não passavam de jóias de teatro, compradas com os vinténs que ela poupava nas despesas da copa.

Barreto, que fora sempre um pobretão, nada entendia de pedras finas e por isso achava que as de sua mulher, apesar de falsas, eram bonitas; mas, no íntimo, ele envergonhava-se daquela fulgurante exibição no pescoço, nos braços, nos dedos e nas orelhas de Francina.

- Os que sabem que essas jóias são falsas, pensava ele, hão de me achar ridículo; os que as supõem verdadeiras poderão fazer de mim um juízo ainda mais desagradável. Toda a gente sabe  quanto   ganho:   os   meus   vencimentos   figuram  na   coleção  de   leis,   na  tabela   anexa   ao regulamento da minha repartição...

O Barreto pensava bem; mas a sua debilidade moral não permitia que ele contrariasse Francina. Um dia o fracalhão percebeu - com que alegria! - que ela estava no seu estado interessante.

Eram   casados   havia   oito   anos   e   só   agora   se   lembrava   o   céu   de   abençoar   a   sua   união, mandando-lhes   um   filho!   Ele   esperava   que   os   cuidados   maternos   modificassem   o  que   sua mulher tinha de ridícula e vaidosa.

Mas  as   suas   esperanças   foram   cruelmente   frustradas   pela   fatalidade:   a   criança,   extraída   a ferros, nasceu morta, e Francina morreu de eclampsia.

O Barreto sentiu tanto, tanto, que quase morreu também.

Havia um mês que era viúvo quando um dia lhe apareceu em casa um homem que ele não conhecia, e se deu a conhecer como um dos joalheiros mais conhecidos da capital.

O Barreto perguntou-lhe o motivo da sua visita.

- É muito simples. A falecida sua senhora tinha jóias. É natural que o senhor não precisando delas   pretenda   desfazer-se   de   algumas,   senão   de   todas.   Venho   pedir-lhe   que   me   dê   a preferência.

- Preferência para quê?

- Para comprá-las.

- Mas, meu caro senhor, as jóias de minha mulher são falsas.

- Falsas? Ora essa! E é a mim que o senhor diz isso, a mim que lhas vendi! A sua senhora seria incapaz de pôr uma jóia falsa!

- O senhor engana-se!

- Tanto não me engano, que lhe ofereço por essas jóias, se se conservam todas em seu poder, sessenta contos de réis!

O Barreto ficou petrificado; entretanto, disfarçou como pôde a comoção, e despediu o joalheiro, dizendo que o procuraria na loja.

Logo que ficou só, encaminhou-se para o quarto da morta, e abriu a cômoda onde se achavam as jóias; mas ao vê-las sentiu uma onda de sangue subir-lhe à cabeça e caiu para trás. Quando lhe acudiram estava morto.


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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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