domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Na Exposição"


NA EXPOSIÇÃO


O Raimundo saiu do Maranhão aos vinte anos, muito disposto a nunca mais lá voltar, para não tornar a ver Filomena - e desde que aqui chegou (já lá se vão tantos anos!) fugiu de todas as coisas e de todas as pessoas que lhe pudessem recordar a sua terra natal.

Não lhe falassem no bacuri, nem no mucuri, nem no assai, nem no arroz de cuchá, nem no tabaco do Codó, nem nas cuias da Maioba, nem nos requeijões  de São Bento, nem nos camarões de Alcântara; não pronunciassem na sua presença os nomes de Gonçalves Dias, João   Lisboa,   Sotero   dos   Reis,   Joaquim   Serra   e   outros   maranhenses   ilustres;   não   se referissem, de modo que ele pudesse ouvir, às novenas dos Remédios, aos passeios do Anil, aos banhos do Cutim e às serenatas ao luar no Pau da Bandeira ou no campo do Ourique; tudo    isso   lhe   trazia   à   memória   Filomena,   aquela   ingrata,   que,   depois   de   ter   feito   mil juramentos   de  que só dele  seria, esqueceu-o para lançar-se nos  braços  do  Cardoso, um negociante apatacado, com quem se casou.

Depois   deste   golpe,   que   esteve   quase   a   matá-lo,   Raimundo   incompatibilizou-se   com   o Maranhão   e   tornou-se   o   mais   carioca   dos   cariocas;   entretanto,   conservou   no   coração   a lembrança dolorosa daquele amor infeliz, e, fiel ao seu próprio infortúnio, não procurou mulher que o fizesse esquecer Filomena. Ficou solteiro.

Durante muitos anos os seus sentimentos não se modificaram; ultimamente, porém, a idade começou a exercer no seu espírito uma ação benéfica, e ele refletiu, pela primeira vez, que a sua terra não tinha culpa da ingratidão de Filomena.

- Preciso reconciliar-me com o Maranhão, pensou Raimundo, e foi com esta idéia sensata que ele procurou a seção maranhense no Palácio da Exposição.

Mas percorrendo as salas onde se acham expostos os produtos do seu Estado, o pobre-diabo começou  a   ver   Filomena   em   tudo;   Filomena  aparecia-lhe   nos  móveis,   nos   artefatos,   nas fibras, nos tecidos, nas rendas, nas favas, no arroz - Filomena surgia de toda a parte!

As salas estavam quase desertas; além do Raimundo, estavam ali apenas três visitantes e uma família - marido, mulher, cinco filhos e uma criada, que examinavam tudo com atenção.

De repente, no meio daquele silêncio, a voz do marido repercutiu:

- Filomena!

- Que é Cardoso?

- Vem ver como é bem feita esta rede!

O Raimundo ficou frio e como que grudado ao chão. Filomena!  Cardoso!  Era ela! Era ele! Eram eles!.

Passados alguns momentos, ele voltou ao seu natural, e, disfarçado, aproximou-se... Que transformação!... que ruína!...

Mas que transformação também a dele, porque ela não o reconheceu...

O caso é que essa visita à Exposição completou a cura, que já começara. O Raimundo voltou a ser um bom maranhense, e agora está disposto a matar saudades da sua terra. Filomena já não existe.


---
Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

Nenhum comentário:

Postar um comentário