A MELHOR AMIGA
I
A mais ingênua e virtuosa das esposas, D. Ritinha Torres, adquiriu há tempos a dolorosa certeza de que o marido a enganava, namorando escandalosamente uma senhora, vizinha deles, que exercia, ou fingia exercer a profissão de modista.
Havia muitas manhãs que Venâncio Torres - assim se chamava o
pérfido - acordava muito cedo, tomava o seu banho frio, saboreava sua xícara de
café, acendia o seu cigarro e ia ler a Gazeta de Noticias debruçado a
uma das janelas da sala de visitas.
Como D. Ritinha estranhasse o fato, porque havia já quatro anos
que estava casada com Venâncio, e sempre o conhecera pouco madrugador, uma bela
manhã levantou-se da cama, envolveu-se numa colcha, e foi, pé ante pé, sem ser
pressentida, dar com ele a namorar a vizinha, que o namorava também.
A pobre senhora
não disse nada:
voltou para o
quarto, deitou-se de
novo, e à
hora do costume simulou que só então despertava.
Tivera até aquela data o marido na conta de um irrepreensível
modelo de todas as virtudes conjugais; todavia, soube aparar o golpe: não deu a
perceber o seu desgosto, não articulou uma queixa, não deixou escapar um
suspiro.
Mas às dez horas, quando Venâncio Torres, perfeitamente almoçado,
tomou o caminho da repartição, ela vestiu-se, saiu também, e foi bater à porta
da sua melhor amiga, D. Ubaldina de MeIo, que se mostrou admiradíssima.
- Que é isto? Tu aqui a estas horas! Temos novidade?
- Temos... temos uma grande novidade; meu marido engana-me
E deixando-se cair numa cadeira, D. Ritinha prorrompeu em soluços.
- Engana-te? perguntou a outra, que empalidecera de súbito.
- E adivinha com quem?... Com aquela modista... aquela sujeita que
mora defronte de nossa casa!...
- Oh, Ritinha! isso é lá possível!...
- Não me disseram: vi; vi com estes olhos que a terra há de comer!
Um namoro desbragado, escandaloso, de janela para janela!
- Olha que as aparências enganam...
- E os homens ainda mais que as aparências.
O pranto recrudescia.
- E eu que tinha tanta confian... an... ça naquele ingra... a
..to!
- Que queres tu
que te faça? perguntou
D. Ubaldina, quando
a amiga lhe pareceu
mais serenada.
- Vim consultar-te... peço-te que me aconselhes... que me digas o
que devo fazer... Não tenho cabeça para tomar uma resolução qualquer!
- Disseste-lhe alguma coisa?
- A quem?
- A teu marido.
- Não; não lhe disse nada, absolutamente nada. Contive-me quanto
pude. Não quis decidir coisa alguma antes de te falar, antes de ouvir a minha
melhor amiga.
D. Ubaldina sentou-se ao lado dela, agradeceu com um beijo
prolongado e sonoro essa prova decisiva de confiança e amizade, e, tomando-lhe
carinhosamente as mãos, assim falou:
- Ritinha, o casamento é uma cruz que é mister saber carregar. Teu
marido engana-te... se é que te engana...
- Engana-me!...
- Pois bem, engana-te, sim, mas... com quem? Reflete um pouco, e vê que esse ridículo namoro
de janela, que o obriga a madrugar, sair dos seus hábitos, é uma fantasia
passageira, um divertimento efêmero que não vale a pena tomar a serio.
- Achas então que...
- Filha, não há no mundo marido algum que seja absolutamente fiel.
Faze como eu, que fecho os olhos às bilontrices do Melo, e digo como dizia a
outra: - Enquanto andar lá fora, passeie o coração à vontade, contanto que mo
restitua quando se recolher ao lar doméstico.
- Filosofia no caso!
- Vejo que não sente por teu marido o mesmo que sinto pelo meu...
A filósofa conservou-se calada alguns segundos, e, dando em D.
Ritinha outro beijo, ainda mais prolongado e sonoro que o primeiro, prosseguiu
assim:
- Se fizeres cenas de ciúmes a teu marido, apenas conseguirás que
ele se afeiçoe deveras à tal modista; o que por enquanto não passa, felizmente,
de um namoro sem conseqüências, poderá um dia transformar-se em paixão
desordenada e furiosa!
- Mas...
- Não há mais nem meio! Cala-te, resigna-te, devora em silêncio
tuas lágrimas, e observa. Se daqui a oito ou dez dias durar ainda esse pequeno
escândalo, vem de novo ter comigo, e juntas combinaremos então o que deverás
fazer.
- Aceito de bom grado os conselhos, minha amiga, mas não sei se
terei forças para sofrear a minha indignação e os meus ciúmes.
- Faze o possível por sofreares. Lembra-te que és mãe. Quando um
casal não vive na mais perfeita harmonia, a educação dos filhos torna-se
extremamente difícil.
Alentada por esses conselhos amistosos e sensatos, D. Ritinha
Torres despediu-se da sua melhor amiga, e
foi para casa
muito disposta a
carregar com resignação
a cruz do casamento.
II
Logo que ficou sozinha, D. Ubaldina que até então a custo se
contivera, teve também uma longa crise de lágrimas.
Mas, serenada que foi essa violenta exacerbação dos nervos, a moça
correu ao telefone, e pediu que a comunicasse com a repartição onde Venâncio
Torres era empregado.
- Alô! Alô!
- Quem fala?
- O Sr. Venâncio está?
- Está. Vou chamá-lo.
Minutos depois D. Ubaldina telefonava ao marido de D. Ritinha que
precisava falar-lhe com toda urgência.
Ele correu imediatamente à casa dela, onde foi recebido com uma
explosão de lágrimas e imprecações.
- Que é isto?! que é isto?! perguntou atônito.
- Sei tudo! bradou ela. Tua mulher esteve aqui e contou-me o teu
namoro com a modista de defronte!
Venâncio ficou aterrado.
- A idiota veio perguntar-me, a mim, que sou tua amante, o que
devia fazer! Eu disse-lhe que fechasse os olhos, que se resignasse.
E agarrando-o com impetuosidade:
- Ah! mas eu é que me não
resigno, sabes? Eu não sou tua mulher, sabes? Eu amo-te, sabes?
- Isso é uma invenção tola. Eu não namoro modistas.
- Olha, Venâncio, se continuares, tudo saberei, porque incumbi a
tua própria mulher de me pôr ao fato de tudo quanto se passar! Se persistires em namorar essa costureira,
darei um escândalo descomunal, nunca
visto... - Afianço-te
que te arrependerás amargamente! Tu ainda não me conheces!..
Venâncio tinha lábias:
desfez-se em desculpas
e explicou, o
melhor que pôde,
as suas madrugadas.
D. Ubaldina, que ardia em desejo de perdoar, aceitou a explicação.
Entretanto, ameaçava-o sempre:
- Olha que se me constar que... Não te digo mais nada!...
Pouco antes da
hora em que
devia chegar o
dono da casa
com o seu
coração intacto, Venâncio, que
descia a escada, parou, e retrocedeu três ou quatro degraus para dizer a D. Ubaldina:
- Queres saber de uma coisa? Essa história da modista é bem boa: serve
perfeitamente para desviar qualquer suspeita que minha mulher possa ter da sua
melhor amiga.
E desceu.
III
Oito dias depois, D. Ubaldina de Melo recebia um bilhete concebido
nos seguintes termos:
"Minha boa amiga. - Parece que tudo acabou, felizmente.
Depois que estive contigo, nunca mais Venâncio madrugou nem foi à janela.
Queira Deus que isto dure! Como sou feliz! – Tua do coração, Ritinha
Torres."
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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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