A DÍVIDA
I
Montenegro e Veloso
formaram-se no mesmo
dia, na Faculdade
de Direito de
São Paulo. Depois da
cerimônia da colação
do grau, foram
ambos enterrar a
vida acadêmica num restaurante, em companhia de outros
colegas, e era noite fechada quando se recolheram ao quarto que, havia dois
anos, ocupavam juntos em casa de umas velhotas na Rua de São José. Aí se
entregaram à recordação da sua vida
escolástica, e se enterneceram defronte
um do outro, vendo aproximar-se a hora
em que deviam separar-se, talvez para sempre. Montenegro era de Santa Catarina
e Veloso do Rio de Janeiro; no dia seguinte aquele partiria para Santos e este
para a capital do Império. As malas estavam feitas.
- Talvez ainda nos encontremos, disse Montenegro. O mundo dá
tantas voltas!
- Não creio,
respondeu Veloso. Vais
para a tua
província, casas-te, e
era uma vez
o Montenegro.
- Caso-me?! Aí vens tu! Bem conheces as minhas idéias a respeito
do casamento, idéias que são, aliás, as mesmas que tu professas. Afianço-te que
hei de morrer solteiro.
- Isso dizem todos...
- Veloso, tu conheces-me há muito tempo: já deves estar farto de
saber que eu quando digo, digo.
- Pois sim, mas há de ser difícil que
em Santa Catarina te possas livrar do conjugo vobis. Na província ninguém toma a sério um
advogado solteiro.
- Enganas-te. Os médicos, sim; os médicos é que devem ser casados.
- Não me engano tal. Na província o homem solteiro, seja qual for
a posição que ocupe, só é bem recebido nas casas em que haja moças casadeiras.
- Quem te meteu essa caraminhola na cabeça?
- Se fosses, como eu, para a Corte, acredito que nunca te
casasses; mas vais para o Desterro: estás aqui estás com uma ninhada de filhos.
Queres fazer uma aposta?
- Como assim?
- O primeiro de nós que se casar pagará ao outro... Quanto?
- Vê tu lá.
- Deve ser uma quantia gorda.
- Um conto de réis.
- Upa! Um conto de réis não
é dinheiro. É preciso que a aposta seja
de vinte contos, pelo menos.
- Ó Veloso, tu estás doido? Onde vamos nós arranjar vinte contos
de réis?
- O diabo nos leve se aqueles canudos não nos enriquecerem.
- Está dito! Aceito! Mas olha que é sério!
- Muito sério. Vai preparando papel e tinta enquanto vou comprar
duas estampilhas.
- Sim, senhor! Quero o preto no branco! Há de ser uma obrigação
recíproca, passada com todos os efes e erres!
Veloso saiu e logo voltou com as estampilhas.
- Senta-te e escreve o que te vou ditar.
Montenegro sentou-se, tomou a pena, mergulhou-a no tinteiro, e
disse:
- Pronto.
Eis o que o outro ditou e
ele escreveu:
"Devo ao Bacharel Jaime Veloso a quantia de vinte contos de
réis, que lhe pagarei no dia do meu casamento, oferecendo como fiança desse
pagamento, além da presente declaração, a minha palavra de honra."
- Agora eu! disse Veloso, sentando-se:
"Devo ao Bacharel Gustavo Montenegro a quantia de vinte
contos de réis... etc."
As declarações foram estampilhadas, datadas e assinadas, ficando
cada um com a sua.
No dia seguinte
Montenegro embarcava em
Santos e seguia
para o Sul,
enquanto Veloso, arrebatado pelo
trem de ferro, se aproximava da Corte.
II
Montenegro ficou apenas três anos em Santa Catarina, que lhe
pareceu um campo demasiado estreito para as suas aspirações: foi também para a
Corte, onde o Conselheiro Brito, velho e conhecido advogado,
amigo da família
dele, paternalmente se
ofereceu para encaminhá-lo, oferecendo-lhe um lugar no seu
escritório.
Chegado ao Rio de Janeiro, o catarinense desde logo procurou o seu
companheiro de estudos, e não encontrou da parte deste o afetuoso acolhimento
que esperava. Veloso estava outro: em três anos transformara-se completamente.
Montenegro veio achá-lo satisfeito e feliz, com muitas relações no
comércio, encarregado de
causas importantes, morando
numa bela casa, freqüentando a alta sociedade,
gastando à larga.
O catarinense, que
tinha uma alma
grande, sinceramente estimou
que a sorte
com tanta liberalidade houvesse
favorecido o seu amigo; ficou, porém, deveras magoado pela maneira fria e pelo
mal disfarçado ar de proteção com que foi recebido.
Veloso não se demorou muito em falar-lhe da aposta de São Paulo.
- Olha que aquilo está de pé!
- Certamente. A nossa palavra de honra está empenhada.
- Se te casas, não te perdôo a dívida.
- Nem eu a ti.
Os dois bacharéis
separaram-se friamente. Veloso
não pagou a
visita a Montenegro,
e Montenegro nunca mais visitou Veloso. Encontravam-se às vezes,
fortuitamente, na rua, nos bondes, nos tribunais, nos teatros, e Veloso
perguntava infalivelmente a Montenegro:
- Então? ainda não és noivo?
- Não.
- Que diabo! estou morto por entrar naqueles vinte contos...
III
Um dia, Montenegro foi convidado para jantar em casa do
Conselheiro Brito. Não podia faltar, porque fazia anos o seu venerando
protetor, mestre e amigo. Lá foi, e encontrou a casa cheia de gente.
Passeando os olhos
pelas pessoas que
se achavam na
sala, causou-lhe rápida
e agradabilíssima impressão uma bonita moça que, pela elegância do
vestuário e pela vivacidade da fisionomia, se destacava num grupo de senhoras.
Era a primeira
vez que Montenegro
descobria no mundo
real um físico
de mulher correspondendo pouco
mais ou menos ao ideal que formara.
Não há mulher, por mais inexperiente, a quem escapem os olhares
interessados de um homem. A moça
imediatamente percebeu a impressão que produzira, e, ou fosse que por
seu turno simpatizasse com Montenegro,
ou fosse pelo desejo vaidoso
de transformar em labareda a fagulha que faiscaram seus olhos, o caso é
que se deixou vencer pela insistência com que o bacharel a encarava, e esboçou um
desses indefiníveis sorrisos
que nas batalhas do
amor eqüivalem a uma capitulação.
O acordo tácito
e imprevisto daquelas
duas simpatias foi celebrado com tanta rapidez, que
Montenegro, completamente hóspede na arte de namorar, chegou a perguntar a si
mesmo se não era tudo aquilo o efeito de uma alucinação.
O namoro foi interrompido pela esposa do Conselheiro Brito, que
entrou na sala e cortou o fio a todas as conversas, dizendo:
- Vamos jantar.
À mesa, por uma coincidência que não qualificarei de notável,
colocaram Montenegro ao lado da moça.
Escusado é dizer que ainda não tinham acabado a sopa, e já os dois
namorados conversavam um com o outro como se de muito se conhecessem. Na altura
do assado, Montenegro acabava de ouvir a autobiografia, desenvolvida e
completa, da sua fascinadora vizinha.
Chamava-se
Laurentina, mas todas
as pessoas do
seu conhecimento a
tratavam por Lalá, gracioso diminutivo com que desde
pequenina lhe haviam desfigurado o nome. Era órfã de pai e mãe. Vivia com uma
irmã de seu pai, senhora bastante idosa e bastante magra, que estava sentada do
outro lado da mesa, cravando na sobrinha uns olhares penetrantes indagadores.
Os pais não lhe deixaram absolutamente nada, além da esmeradíssima educação que
lhe deram; mas a tia, que generosamente a acolheu em sua casa, tinha, graças a
Deus, alguma coisa, pouca, o necessário para viverem ambas sem recorrer ao
auxilio de estranhos nem de parentes. Para não ser muito pesada à tia, Lalá
ganhava algum dinheiro dando lições de piano e canto em casas particulares;
eram os seus alfinetes.
- Fui educada um pouco à americana, acrescentou; saio sozinha à
rua sem receio de que me faltem ao respeito, e sou o homem lá de casa. Quando é
preciso, vou eu mesma tratar dos negócios de minha tia.
E elevando a voz:
- Não é assim, titia?
- É, minha filha, respondeu do lado oposto a velha, embora sem
saber de que se tratava.
Lalá era suficientemente instruída,
e tinha algum
espírito mais que
o comum das
senhoras brasileiras. Essas qualidades,
realmente apreciáveis, tomaram
proporções exageradas na imaginação de Montenegro.
Este disse também a Lalá quem
era, e contou-lhe os fatos mais
interessantes da sua vida, exceção
feita, já se sabe, da famosa aposta de São Paulo.
E tão entretidos estavam Montenegro e Lalá nas mútuas confidências
que cada vez mais os prendiam, que nenhuma atenção prestaram aos incidentes da
mesa, inclusive os brindes, que não foram poucos.
Acabado de jantar, improvisou-se um concerto e depois dançou-se.
Lalá cantou um romance de Tosti. Cantou mal, com pouca voz, sem nenhuma
expressão, e a Montenegro pareceu aquilo o non plus ultra da cantoria.
Dançou com ela uma valsa, e durante a dança apertaram-se as mãos com uma força
equivalente a um pacto solene de amor e fidelidade.
Ele sentia-se
absolutamente apaixonado quando, de madrugada, se encaminhou
para casa, depois de fechar a portinhola do carro e magoar os dedos da
moça num último aperto de mão.
Era dia claro quando o bacharel conseguiu adormecer. Sonhou que
era quase marido. Estava na igreja, de braço dado a Lalá, deslumbrante nas suas
vestes de noiva. Mas ao subir com ela os degraus do altar, reconheceu na figura
do sacerdote, que os esperava de braços erguidos, o seu colega Veloso, credor
de vinte contos de réis.
IV
Nesse mesmo dia
Montenegro estava sozinho
no escritório, e
trabalhava, quando entrou
o Conselheiro Brito.
- Bom dia, Gustavo.
- Bom dia, conselheiro.
O velho advogado sentou-se e pôs-se a desfolhar distraidamente uns
autos; mas, passados alguns minutos, disse muito naturalmente, sem levantar os
olhos:
- Gustavo, aquilo não te serve.
- Aquilo quê?
- Faze-te de novas! A Lalá.
- Mas...
- Não negues. Toda a gente viu. Vocês estiveram escandalosos. Se
tens em alguma conta os meus conselhos, arrepia carreira enquanto é tempo. Tu
conhece-la?
- Não, senhor; mas encontrei-a em sua casa, e tanto bastou para
formar dela o melhor conceito.
--Lá por isso, não, meu rapaz! Eu não fumo, mas não me importa que
fumem perto de mim.
- Então ela...?
- Não digo que seja uma mulher perdida, mas recebeu uma educação
muito livre, saracoteia sozinha
por toda a
cidade e não
tem podido, por
conseguinte, escapar á
implacável maledicência dos fluminenses. Demais, está habituada ao luxo,
ao luxo da rua, que é o mais caro; em casa arranjam-se ela e a tia sabe Deus
como. Não é mulher com quem a gente se case. Depois, lembra-te que apenas
começas e não tens ainda onde cair morto. Enfim, és um homem: faze o que bem te
parecer.
Essas palavras, proferidas com uma franqueza por tantos motivos
autorizada, calaram no ânimo do bacharel. Intimamente ele estimava que o velho
amigo de seu pai o dissuadisse de requestar a moça, - não pelas conseqüências
morais do casamento, mas pela obrigação, que este lhe impunha, de satisfazer
uma dívida de vinte contos de réis, quando, apesar de todos os seus esforços,
não conseguira até então pôr de parte nem o terço daquela quantia.
Mas o amor contrariado cresce com inaudita violência. Por mais
conselhos que pedisse à razão, por
mais que procurasse
iludir-se a si
próprio, Montenegro não
conseguia libertar-se da impressão que lhe causara a moça. O seu
coração estava inteiramente subjugado. Ainda assim, lograria, talvez,
vencer-se, se, vinte
dias depois do
seu encontro com
Lalá, esta não
lhe escrevesse um bilhete que neutralizou todos os seus elementos de
reação.
"Doutor. - Sinto que o nosso romance o enfastiase tanto, que
o senhor não quisesse ir além do primeiro capítulo. Entretanto, não imagina
como sofro por não saber os motivos que atuaram no seu espírito para
interromper tão bruscamente... a leitura. Diga-me alguma coisa, dê-me uma explicação que
me tranqüilize ou me desengane.
Esta incerteza mata-me. Escreva-me
sem receio, porque só eu abro as minhas cartas. - Lalá."
A primeira idéia de Montenegro foi deixar a carta sem resposta, e
empregar todos os meios e modos para esquecer-se da moça e fazer-se esquecer
por ela; refletiu, porém, que não poderia justificar o
seu procedimento, se
recusasse a explicação
com tanta delicadeza
solicitada. Resolveu, portanto, responder a Lalá com um desengano
categórico e formal, e mandou-lhe esta pílula dourada:
"Lalá. - Deus sabe quanto eu a amo e que sacrifício me
imponho para renunciar à ventura e á glória de pertencer-lhe; mas um motivo
imperioso existe, que se opõe inexoravelmente á nossa união. Não me pergunte
que motivo é esse; se eu 1h0 revelasse, a senhora achar-me-ia ridículo. Basta
dizer-lhe que a objeção não parte de nenhuma circunstância a que esteja ligada
a sua pessoa; parte de mim mesmo, ou antes, da minha pobreza. Adeus, Lalá;
creia que, ao escrever-lhe estas linhas,
sinto a pena
pesada como se
estivessem fundidos nela
todos os meus tormentos. - G. M."
- Que conselho me dá vossemecê? perguntou Lalá à sua tia, depois
de ler para ela ouvir a carta de Montenegro.
- O conselho que te dou é tratares de arranjar quanto antes uma
entrevista com esse moço, e entenderes-te verbalmente com ele. Isto de cartas
não vale nada. Ele que te diga francamente qual é o tal motivo... e talvez
possamos remover todas as dificuldades. Não percas esse marido, minha filha. O
Doutor Montenegro é um advogado de muito futuro; pode fazer a tua felicidade.
No dia seguinte Montenegro recebeu as seguintes linhas:
"Amanhã, quinta-feira, às duas horas da tarde, tomarei um
bonde no Largo da Lapa, porque vou dar uma lição na Rua do Senador Vergueiro.
Esteja ali por acaso, e por acaso tome o mesmo bonde que eu e sente-se
ao pé de mim. Recebi a sua carta; é preciso que nos entendamos de viva voz. - Lalá."
O tom desse bilhete desagradou a Montenegro. Quem o lesse diria
ter sido escrito por uma senhora habituada a marcar entrevistas. Entretanto, à
hora aprazada o bacharel achou-se no Largo
da Lapa. Recuar
seria mostrar uma
pusilanimidade moral, que
o envergonharia eternamente.
Depois, como ele possuía todas as
fraquezas do namorado, deixou-se seduzir pela provável delícia dessa viagem de
bonde. Quando o veículo parou no Largo do Machado, Lalá sabia já qual o motivo
pecuniário que se opunha ao casamento. Ouvira sem pestanejar a confissão de
Montenegro.
- O motivo é grave, disse ela; o Doutor Veloso tem a sua palavra
de honra, e o senhor não pode mudar de estado sem dispor de uma soma
relativamente considerável; mas... eu sou mulher e talvez consiga...
- O quê? perguntou Montenegro sobressaltado.
- Descanse. Sou incapaz de cometer qualquer ação que nos fique
mal. Separemo-nos aqui. Eu lhe escreverei.
Lalá estendeu a mão enluvada que Montenegro apertou, desta vez sem
lhe magoar os dedos.
Ele apeou-se e galgou o estribo de outro bonde que partia para a
cidade.
- Já está pago, disse o condutor a Montenegro quando este lhe quis
dar um níquel.
O bacharel voltou-se para verificar quem tinha pago por ele, e deu
com os olhos em Veloso, que lhe disse de longe, rindo-se:
- Foi por conta daqueles vinte, - sabes?
- Reza-lhes por alma! bradou Montenegro, rindo-se também.
V
Esse "reza-lhes por alma" queria dizer que Montenegro
voltara desencantado do seu passeio de bonde. Lalá parecera-lhe outra, mais
desenvolta, mais americana, completamente despida do melindroso
recato que é o mais precioso requisito da mulher virgem. Ele deixou-se
convencer de que a moça, depois de ouvir a exposição franca e leal das suas
condições de insolvabilidade, desistira mentalmente de considerá-lo um noivo
possível, dizendo por dizer aquelas palavras "talvez eu consiga",
palavras à-toa, trazidas ali apenas para fornecer o ponto final a um diálogo que
se ia tornando penoso e ridículo.
Montenegro fez ciente do seu desencanto ao Conselheiro Brito, que
lhe deu parabéns, e dai por diante só se lembrou de Lalá como de uma bonita
mulher de quem faria com muito prazer sua
amante mas nunca sua
esposa. Desaparecera
completamente aquele doce
enlevo causado pela primeira impressão. O "reza-lhes por alma"
saiu-lhe dos lábios com a impetuosidade de um grito da consciência. A desilusão
foi tão pronta como pronto havia sido o encanto. Fogo de palha.
VI
Entretanto, mal sabia Montenegro que Lalá concebera um plano
extravagante e o punha em prática
enquanto ele, tranqüilo
e despreocupado, imaginava
que ela o
houvesse posto à margem. Depois de aconselhar-se com a tia,
que não primava pelo bom senso, a professora de piano e canto encheu-se de
decisão e coragem, foi ter com o Doutor Veloso no seu escritório e disse-lhe
que desejava dar-lhe duas palavras em particular.
A beleza de Lalá deslumbrou o advogado, e, como este era
extremamente vaidoso, viu logo ali uma conquista amorosa em perspectiva.
- Tenha a bondade de entrar neste gabinete, minha senhora.
Lalá entrou, sentou-se num divã, e contou ao Doutor Veloso toda a
sua vida, repetindo, palavra por palavra, o que dissera a Montenegro durante o
jantar do Conselheiro Brito.
Admirado de tanta loquacidade e de tanto espírito, Veloso
perguntou-lhe, terminada a história, em que poderia servi-la.
- Sou amada
por um homem
que é digno
de mim, e o nosso
casamento depende exclusivamente
do doutor.
- De mim?
- A minha ventura está nas suas mãos. Custa-lhe apenas vinte
contos de réis. Não quero crer que o doutor se negue a pagar por essa miserável
quantia a felicidade... de uma órfã.
- Não compreendo.
- Compreenderá quando eu lhe disser que o homem por quem sou amada
é o seu amigo e colega Doutor Gustavo Montenegro.
- Ah! ah!...
- Escusado é dizer que ele ignora absolutamente a resolução, que
tomei, de vir falar-lhe.
- Acredito.
- Qual é a sua resposta?
- Minha senhora,
balbuciou Veloso, sorrindo;
eu tenho algum
dinheiro, tenho.. . mas perder assim
vinte contos de reis...
- Recusa?
- Não, não recuso; mas peço algum tempo para refletir. Depois de
amanhã venha buscar a resposta.
A conversação
continuou por algum
tempo, e Veloso
começou a sentir
pela moça a mesmíssima impressão que ela causara a
Montenegro.
Lalá notou o efeito que produzia, e pôs em distribuição todos os
seus diabólicos artifícios de mulher astuta e avisada.
- Feliz Gustavo!
- Feliz... por quê?
- É amado!
- Oh! não vá agora supor que ele me inspirasse uma paixão
desenfreada!
- Ah!
- É um marido que me convém, isso é; mas se o doutor não abrir mão
da dívida, e ele não se puder casar, não creia que eu me suicide!
Ouvindo esta frase, Veloso adiantou-se tanto, tanto, que, dois
dias depois, quando Lalá foi saber a resposta, ele recebeu-a com estas
palavras:
- Não!... Se eu abrisse mão dos vinte contos, ele seria seu
marido, e...
- E...?
- E eu... tenho ciúmes.
No dia seguinte ele era apresentado à tia, manejo aconselhado pela
própria velha.
- Este é mais rico, mais bonito e até mais inteligente que o
outro... Não o deixes escapar, minha filha!
A verdade é
que Veloso não
se introduziu em
casa de Lalá
com boas intenções;
mas a
esperteza da moça e as indiscrições do advogado determinaram em
breve uma situação de que ele não pôde recuar.
Imagine-se a surpresa de Montenegro quando lhe anunciaram o
casamento de Lalá com o seu colega, e a indignação que dele se apoderou quando
por portas travessas veio ao conhecimento do modo singular por que fora
ajustado esse consórcio imprevisto.
VII
No dia seguinte ao do casamento, estava Montenegro no escritório,
quando recebeu um cheque de vinte contos de réis, enviado pelo marido de Lalá.
- Não acha que devo devolver este dinheiro? perguntou ele ao
Conselheiro Guedes.
- Não; mas não o gastes; afianço-te que terás ocasião mais
oportuna para devolvê-lo.
E assim foi.
A lua-de-mel não
durou dois meses.
Os dois esposos
desavieram-se e logo
se separaram judicialmente. Ele
voltou à vida de solteiro e ela tornou para casa da tia.
Um dia Montenegro encontrou-a num armarinho da Rua do Ouvidor, e
tais coisas lhe disse a moça, tais protestos fez e tão arrependida se mostrou
de o haver trocado pelo outro, que dois dias depois ela entrava furtivamente em
casa dele.
Nesse mesmo dia o desleal Veloso recebeu uma cartinha concebida
nos seguintes termos:
"Doutor Veloso. - Devolvo-lhe intacto o incluso cheque de
vinte contos de réis, porque a divida que
ele representa é
uma estudantada imoral,
sem nenhum valor
jurídico. - Gustavo Montenegro."
---
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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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