DONA EULÁLIA
Quando cheguei, a casa mortuária estava cheia de gente.
No centro da sala, forrada de preto, havia uma essa entre quatro
enormes tochas acesas, e sobre a essa um caixão, dentro do qual D. Eulália
dormia o último sono.
Já tinha passado a hora do saimento.
Faltava apenas o padre.
O padre não aparecia.
O viúvo, comovido, mas calmo, perfeitamente calmo, perguntou a um
parente, que pelos modos tinha se encarregado do enterro:
- Então?.. . esse padre?...
- Já cá devia estar. O Tio Eusébio quer que eu vá buscá-lo?
- É favor, Casuza.
E o parente saiu muito apressado.
Dez minutos depois, o Ensébio aproximou-se de mim e disse-me
baixinho:
- E nada
de padre! Estava
escrito que este
dia não passava
para mim sem
alguma contrariedade...
* * *
Justifiquemos esse grito do coração.
O Eusébio não foi um marido feliz; D. Eulália, que tinha muito mau
gênio, transformara-lhe a vida num verdadeiro inferno.
O pobre homem não tinha voz ativa dentro de casa; era repreendido
como um fâmulo quando entrava mais tarde;
devia dar contas
de um níquel,
de um miserável
níquel que lhe desaparecesse do bolso!
Apesar de casado havia já quinze anos, ele não se pudera habituar
a essa existência ridícula, e sentia-se envelhecer prematuramente na alma e no
corpo.
Não tinha filhos,
- e era
melhor assim, porque
com certeza, D.
Eulália não lhos
perdoaria. Pensava bem: pudesse ela contrariar a natureza, e
fecundá-lo-ia, para humilhá-lo ainda mais!
* * *
Durante os primeiros tempos de regime conjugal, o Eusébio tentou
reagir contra o mau gênio de D. Eulália; num dia, porém, que lhe falou mais
alto e lhe bateu o pé, recebeu em troca uma tremenda bofetada, cujo estalo
ressoou em todo o quarteirão. Durante quinze dias a vizinhança não se ocupou de
outra coisa.
O marido que
apanha da cara
metade está perdido;
o que apanha
e chora, está irremessivelmente perdido. O Eusébio
apanhou e chorou...
Daquele dia em diante foi-se-lhe toda a autoridade marital:
tornou-se em casa um manequim, um pax vobis, um joão-ninguém.
Era, entretanto, um homem simpático, virtuoso, apreciadíssimo por
numerosos amigos e muito conceituado na repartição de onde tirava o necessário
para que nada faltasse a D. Eulália.
* * *
De todas as maçadas a que estava afeito o nosso Eusébio, nenhuma o
ralava tanto como a de procurar cozinheira, o que lhe acontecia a miúdo,
porque, graças ao mau gênio da dona da casa, a cozinha estava constantemente
abandonada.
Como as impertinências de D. Eulália já tinham fama no bairro, e
nenhuma criada queria servir aquela ama, o Eusébio era obrigado a procurar
cozinheira muito longe de casa.
O que ele queria era alugá-la, mas bem sabia que, na venda, a
recém-chegada seria logo posta ao corrente de tais impertinências.
* * *
Um dia o pobre marido foi muito cedo arrancado da cama pela
mulher.
- Levante-se, tome banho, vista-se e vá procurar uma cozinheira!
- Quê!... pois a Maria...?
- Acabo de pô-la no olho da rua!
- Por quê?
- Não é da sua conta! Mexa-se!...
- Uma cozinheira que não estava em casa há oito dias!...
- Basta de observações! Quem manda aqui sou eu! Vamos! vista-se! E
nada de agências, hem? olhe que se me traz cozinheira de agência, não passa da
porta da rua!
* * *
Nesse dia o Eusébio teria purgado todos os seus pecados, se os
tivera, e se D. Eulália não fosse já um purgatório bastante.
O pobre-diabo, que
morava no Rio
Comprido, foi, levado
por informações, procurar
uma cozinheira em São Francisco
Xavier. Já estava alugada; entretanto, lá lhe disseram
que no Morro do Pinto havia outra, muito boa, que lhe devia servir.
O desgraçado almoçou numa casa de pasto, encheu-se de coragem e
subiu o Morro do Pinto.
A cozinheira não
estava em casa;
tinha ido passar
uns dias com
uma parenta, na Rua de Sorocaba, em Botafogo; mas um vizinho
aconselhou o Eusébio a que não adiasse a diligência; a mulher trabalhava
primorosamente em forno e fogão, era morigerada e estava morta por achar emprego.
Abalou o Eusébio para Botafogo, e encontrou, efetivamente, a
mulher na Rua de Sorocaba, em casa da parenta, pronta já para sair. Por pouco
mais, a viagem teria sido baldada.
Era uma mulata quarentona, muito limpa, de um aspecto simpático e
humilde, que à primeira vista inspirava certa confiança.
Ela, pelo seu lado, simpatizou com o Eusébio, a julgar pela
prontidão com que se ajustaram.
- Bem; amanhã lá estarei, meu patrão.
- Amanhã, não: há de ser hoje, porque se entro em casa sem
cozinheira, minha mulher...
O Eusébio interrompeu-se - ia deitando tudo a perder, - e emendou:
... minha mulher, que é muito boa senhora, mas nem sempre acredita
no que eu digo, há de supor que me remanchei.
- Nesse caso, meu patrão, é preciso que eu vá primeiramente ao
Morro do Pinto.
- Pois vamos ao Morro do Pinto... respondeu resignado o resignado
Eusébio.
* * *
Era quase noite fechada, quando o infeliz marido, fatigadíssimo,
doente, sem jantar, entrou em casa acompanhado da mulata.
D. Eulália recebeu-o com duas pedras na mão:
- Onde esteve o senhor metido até estas horas? oh! que coisa
ruim... que homem insuportável... Só a minha paciência!...
- A senhora não calcula como me custou encontrar esta mulher, mas,
enfim... parece que desta vez ficamos bem servidos.
- Pois sim, resmungou D. Eulália, - vão ver que é alguma
vagabunda!
E, voltando-se para a mulata, disse-lhe com a sua habitual
arrogância:
- Chegue-se mais! Não gosto de gritar e quero que me ouçam!
A cozinheira aproximou-se com um sorriso humilde de subalterna.
- Como se chama? perguntou D. Eulália.
- Eulália.
- Eulália?!
- Eulália, sim, senhora!
- Eulália?! Rua! Rua!
E voltando-se para o marido:
- Pois o senhor tem a pouca vergonha de trazer para casa uma
cozinheira com o mesmo nome que eu? Que desaforo!...
- Mas, senhora.
- Cale-se! Não seja burro!
* * *
Creio que o Eusébio está justificado: a morte de D. Eulália não
poderia contrariá-lo.
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Nota:
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