
HISTÓRIA VULGAR
Era a primeira vez que o Getúlio vinha ao Rio de Janeiro.
Conquanto filho do barão de Batatais, lavrador 
abastado,   jamais  se divertira. 
Depois  de  formado 
em  Direito,  sabe  
Deus  como,  na capital de São Paulo, voltara para a
fazenda do pai, onde nasceu, e onde esperava morrer.
Aos vinte e oito anos chegaram-lhe desejos de ver mundo. Falou ao
barão de uma viagem à Europa. - Para que Europa? - disse o velho. - Vai ao Rio
de Janeiro, que ainda não conheces, e é uma capital digna de ser vista. A
Europa irás depois comigo, tua mãe e tua irmã se Deus nos der vida e saúde. - O
bacharel contentou-se, pois, com o Rio de Janeiro.
Quando   se   despediu  
do   filho,   na  
plataforma   da   estação,  
o   barão   recomendou-lhe,   pela centésima vez, que tivesse muito
cuidado com as más companhias, o que não impedia que o rapaz, aqui chegado, se
entregasse confiadamente ao Alípio.
É verdade que o Alípio tinha exterioridades que enganavam, e não
vivia senão à custa delas. Delas e do próximo. Era um rapaz da moda, mas passou
pelo serviço antropométrico e ainda hoje tem o retrato na polícia.
Ele e o paulista encontraram-se dir-se-ia que por acaso, sentados
à mesma mesa, para tomar café, num botequim da rua do Ouvidor, e quando as duas
colherinhas, batendo uma na outra, tiniram no açucareiro, o Alípio ergueu os
olhos, apertou-os como para reconhecer o Getúlio, e disse-lhe:
- Cavalheiro, creio que já nos encontramos. 
- É possível. 
- Mas onde? Não me posso lembrar! 
- Em São Paulo?
- Não, não creio.
- Talvez em Poços de Caldas. Estive lá duas vezes.
- É isso. Foi em Poços de Caldas! O cavalheiro é paulista?
- Sim senhor, e é a primeira vez que venho ao Rio.
- Tem gostado?
- Muito, mas ainda não vi nada; cheguei ontem.
- Conquanto não tenha a satisfação de o conhecer, ofereço-lhe os
meus fracos préstimos.
- Muito obrigado, mas não venho aqui fazer outra coisa senão
passear. Há sete anos que me meti na fazenda de meu pai; era tempo de
espairecer.
- Ah! O cavalheiro é lavrador?
- Sim,  senhor,  formei-me 
em  Direito,  mas 
sou um simples  fazendeiro,
sócio  de meu  pai.  O
senhor nunca ouviu falar do barão de Batatais?
- Batatais? Pois não, doutor! Ora essa! É uma das primeiras
fortunas de São Paulo!
- Pois é meu pai.
- Se o doutor vem ao Rio de Janeiro simplesmente para se distrair,
razão de mais para aceitar  os meus
fracos préstimos. Sou carioca da gema, conheço toda a cidade como as palmas das
minhas mãos, e posso mostrar-lhe o que ela tem de mais interessante.
- Oh! Senhor! Não sei a que deva... 
- À simpatia. O doutor não imagina como simpatizei com a sua
pessoa! 
- Mas o senhor naturalmente tem mais que fazer do que me servir de
cicerone. 
- Que fazer? Eu? Ah, meu doutor, infelizmente a minha vida é esta
- andar pelos cafés, pelos teatros, pelos clubes, pelas casas de jogo, pelas
alcovas - enfim, pelo monde ou l'on s'amuse! 
Não sei o que é trabalhar! E não tenho remorsos, porque meu pai
trabalhou por si e por mim. O que faço é gozar o que ele não gozou, para que me
não aconteça o mesmo.
- Então é rico?
- Tenho alguma coisinha, tenho... 
Nesse mesmo dia jantaram juntos no Brito (o Alípio não consentiu
que o Getúlio pagasse), e à noite foram ao Cassino, onde o paulista se divertiu
a valer. Separaram-se amigos às três horas da madrugada, na rua Senador Dantas,
concertando encontrar-se ao meio-dia para almoçarem juntos.
Almoçaram, deram um longo passeio a Botafogo, e foram jantar numa
casa de jogo, que o Alípio quis mostrar ao Getúlio, a título de curiosidade.
- Só a título de curiosidade - repetiu o carioca. - Eu jogo, mas
não te aconselho que jogues. (Já se  
tratavam   por  tu.) 
O  jogo   é 
estúpido:   tira  sempre  
o  necessário  e não 
dá  nunca   senão 
o supérfluo. Tu alguma vez jogaste?
- Já, em Poços de Caldas, mas jurei que nunca mais jogaria! Perdi
uma boa bolada, e o velho ficou furioso!
- Devo prevenir-te de uma coisa: esta casa de jogo é uma das mais
decentes do Rio de Janeiro, mas tem cuidado. Aqui vem de tudo. Vês aquele
sujeito gordo? É um magistrado integérrimo! Vês aquele sujeito magro? Tem o
retrato na polícia!
Depois   do  jantar,  
que  foi  magnífico, 
regado   por  excelentes 
vinhos,  aparelharam   a roleta. 
O banqueiro, ex-advogado sem causa, tomou o seu lugar sobre um estrado,
diante das fichas  multicores alinhadas
em ordem, formando pequenas colunas, e o pessoal do vício abancou-se em volta
do tapete verde.
- Eu vou piabar - disse o Getúlio ao Alípio. 
- Vê, vê só, não jogues! Eu teria remorsos se te trouxesse a esta
casa para perderes dinheiro! 
Começou o jogo. Depois das três primeiras bolas, o bacharel não
resistiu: comprou cem mil-réis de fichas, que voaram logo.
O Alípio lançou-lhe um olhar repreensivo. 
- Não posso ver defunto sem chorar - respondeu o outro, que
insiste e em dez minutos perdeu oitocentos mil-réis.
Acendeu-se-lhe, então toda, a sua coragem de paulista, e fez a
última parada, tão forte, que ressarciu todo o prejuízo e ganhou perto de um
conto de réis.
O Alípio que, jogando, ou antes, fingindo jogar, examinava-o de
soslaio, viu-o aproximar-se do banqueiro, receber um  maço 
de notas,  e arrumá-las  na carteira, que guardou sorridente  no bolso do peito.
- Vou-me embora - disse-lhe o Getúlio. - Preciso recolher-me hoje
um pouco mais cedo: estou com dor de cabeça.
O   Alípio   deixou  
a   sala   do  
jogo   para   acompanhá-lo   até   o  
corredor,   e   perguntou-lhe indiferentemente, ajudando-o a
vestir o sobretudo:
- Ganhaste? 
- Alguma coisa. 
-   Pois   sim,  
mas   não   tornes  
a   jogar,   vai  
com   o   que  
te   digo!   aconselhou,  
abotoando-lhe   o sobretudo. -
Levanta a gola, agasalha-te bem, não brinques com este clima. Eu ainda fico. 
- Precisas de algum dinheiro? 
- Não. 
- Então até amanhã? 
- Decerto. Irei buscar-te ao hotel às mesmas horas de hoje. Adeus!
O paulista desceu as escadas lépido e contente, foi para o hotel,
que não era longe, entrou para o seu quarto, despiu-se e resolveu dar, antes de
dormir, um balanço ao dinheiro para saber ao certo qual tinha sido o seu lucro.
Foi ao bolso: a carteira lá não estava... Escusado é dizer que o Alípio nunca mais
o procurou.
---
Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Nenhum comentário:
Postar um comentário