domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Encontros Reveladores"


ENCONTROS REVELADORES


Contarei hoje aos meus leitores um caso que se passou no tempo do Segundo Império. A historieta não será talvez muito divertida, mas é humana. Lá vai: Para mostrar-se agradecido ao ministro da Justiça, que o nomeara juiz de Direito de Niterói,   lembrou-se   o   Dr.   Sales   de   convidá-lo   para   padrinho   de   seu   último pimpolho.

O ministro aceitou o convite, mas como a época era de grande agitação política e não lhe sobravam lazeres para batizados, passou procuração ao seu oficial de gabinete, Dr. Pinheiro, para representá-lo na cerimônia, e levar o pequeno à pia.

À hora aprazada, o Dr. Pinheiro apresentou-se em casa do Dr. Sales, onde o receberam com a mesma solenidade com que receberiam o próprio conselheiro.

O   bom   homem   já   estava,   aliás,   habituado   a   esses   togatés.   Depois   que   o ministro, seu companheiro de infância e amigo íntimo, fizera dele o seu oficial de gabinete,   o  seu  auxiliar   de   imediata   confiança,  quase   o   seu  alter   ego,  o   Dr. Pinheiro verificou, surpreso, que tinha inúmeros amigos de cuja existência nem sequer suspeitava. Antes que ele exercesse aquela posição oficial, pouca gente o cumprimentava; depois que a exercia, todos lhe tiravam o chapéu!

Terminada   a   cerimônia   do   batizado,   o   Dr.   Pinheiro   quis   retirar-se:   estava cumprida a sua missão, mas o Dr. Sales e toda a família instaram com ele para almoçar.

O almoço fez-lhe mal. Na ocasião em que o padrinho por procuração ergueu a sua taça de champanha para agradecer um brinde feito pelo juiz de Direito ao seu ilustre compadre, o Exmo. Sr. conselheiro X, ministro e secretário de Estado dos  negócios  da  Justiça,  o  Sr.  Pinheiro   sentiu  turbar-se-lhe  a vista  e a  casa andar à roda. Caiu sentado sobre a cadeira, quebrando a taça que tinha na mão, e perdeu os sentidos.

Foi um alvoroço. Saíram todos dos seus lugares e cercaram o Sr. Pinheiro, que não dava acordo de si.

Entre os comensais havia, felizmente, um médico. Transportado para um quarto e   estendido   sobre   um   leito,   o   Dr.   Pinheiro   foi   imediatamente   socorrido   e medicado.

- Não há de ser nada, explicou o médico, mas é preciso que o doente fique no mais absoluto repouso; que ninguém lhe fale nem ele fale a ninguém!

- Mas, que foi?

- Um ameaço de congestão.

No mesmo dia o Dr. Sales mandou à casa do Dr. Pinheiro, que era viúvo e não tinha família de espécie alguma e morava com ele apenas um criado, que foi ter logo com o amo enfermo, levando-lhe roupa branca.

No dia seguinte o Dr. Sales procurou o ministro, seu compadre, para participar-lhe que o seu oficial de gabinete adoecera em Niterói, mas S. Exa. não lhe pôde dar ouvidos: preparava-se para responder a uma interpelação na Câmara, e não podia pensar noutra coisa.

O   Dr.   Pinheiro   logo   no   outro   dia   pretendeu   recolher-se   aos   penates,   mas   o médico proibiu-lhe terminantemente, dizendo: - uma imprudência pela qual não me responsabilizo!

Ficou, pois, o Dr. Pinheiro cinco dias em Niterói, metido entre quatro paredes, sem conversar nem ler. Ao sexto dia sentiu-se completamente restabelecido, e teve alta. Durante esse tempo alguma coisa se passara, de certa importância, mas   em   casa   do   Dr.   Sales   nada   disseram   ao   Dr.   Pinheiro,   receando   que qualquer comoção moral lhe produzisse novo ataque.

Seguido pelo seu fiel criado, que o não abandonou um instante, o Dr. Pinheiro tomou  a barca, e chegando ao Pharoux, entrou num  carro que estava à sua espera, indo o criado para a boléia.

Ao passar pelo Largo do Paço, notou que certo pretendente, figura obrigada do gabinete   do   ministro,   sujeito   que   costumava   saudá-lo   com   muitos   rapapés, agora, ao vê-lo, apenas levou a mão à aba do chapéu.

Mais adiante, na Rua da Assembléia, outro importuno olhou para ele e desviou os olhos, fingindo que não o via.

No  Largo da Carioca, um  oficial  da secretaria, que se empenhara, não havia muito, com o Dr. Pinheiro para ser, como foi, promovido, teve para o oficial de gabinete um olhar de proteção. .

- Não há que ver, pensou o Dr. Pinheiro, caiu o ministério!

De   fato,   havia   três   dias   que   o   ministério   caíra,   depois   da   tal   interpelação. Ninguém   o   dissera   ao   Dr.   Pinheiro,   nem   verbalmente   nem   por   escrito:   ele adivinhou-o, graças àqueles três encontros reveladores.


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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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