domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Ingenuidade"


INGENUIDADE


O Vaz desejava a Ernestina Friandes, não porque ela não tivesse todas as aparências   de   uma   senhora   honesta;   desejava-a,   porque   o   marido,   o Friandes, era um pax vobis, que estava mesmo a pedir que o enganassem.

Quando,   após   quatro   meses   de.   perseguições   incessantes,   o   sedutor conseguiu a promessa de uma entrevista, ficou muito atrapalhado, por não saber aonde levar a moça. Em casa dela era impossível um encontro: havia a tia Chiquinha Friandes, velhinha esperta e desconfiada; em casa dele também não podia ser, porque ele não tinha casa; apesar dos seus trinta anos, vivia ainda sob o teto e às sopas do pai.

* * *

O nosso herói lembrou-se, afinal, de um amigalhaço muito dado a cavalarias altas; foi ter com ele, expôs-lhe a situação e pediu-lhe que lhe arranjasse um ninho.

-   Tu   compreendes!   Não   posso   nem   devo   levá-la   a   uma   dessas   casas   de alugar quartos, que toda a gente conhece! Seria abusar da sua inocência!

- Então a pequena é tão inocente assim?

- Se é! Não fala senão de pálpebras caídas, e qualquer coisa lhe faz subir o rubor às faces! Sou o seu primeiro amante!

- Deixa-te dessas pretensões! A gente nunca é o primeiro amante!

- Falas assim porque não a conheces.

- Vou indicar-te um lugar aonde podes levá-la com toda a segurança, porque é uma casa que ainda não está conhecida. Rua tal, número tantos. Vai até lá e procura de minha parte a D. Efigênia, que te servirá perfeitamente. Olha, leva-lhe o meu cartão.

O Vaz foi à casa indicada e obteve o que desejava: um bom quarto, espaçoso, bem mobiliado, arejado, com todos os requisitos, inclusive o de ficar logo no topo  da   escada,  de  modo  que  ele  e  a  Ernestina  poderiam  entrar sem  ser vistos.

* * *

No  dia  da entrevista,  correu tudo às mil  maravilhas.  O Vaz esperou  a sua presa na esquina; ele entrou primeiro, ela depois, e lá se demoraram perto de hora e meia.

Por que tanto tempo? Por que uma virtude não cai com a mesma facilidade que as paredes do Hospital da Penitência!

Arrependida   de   haver   subido   aquela   escada   infame,   a   Ernestina   resistiu quanto pôde.

- Não! Não! Não!... eu quero conservar-me fiel aos meus deveres!... Que juízo estará o senhor a fazer de mim?...

O Vaz - justiça se lhe faça - não respondeu como Pedro I, que era um bruto.

- E o Friandes?... e o meu pobre Friandes que tem tanta confiança em mim?...

* * *

A Ernestina saiu primeiro. O Vaz ainda ficou, e D. Efigênia veio perguntar-lhe com o mais amável dos seus sorrisos:

- Então?, agradou-lhe o quarto?

- Muito e, se a senhora quisesse, eu ficaria com ele só para mim.

- Ah!, isso não pode ser.

- Por quê?

- Porque há um cavalheiro e uma dama que têm este cômodo tomado para todas as quartas e sábados, às quatro horas. Não sendo nesses dias e a essa hora, o quarto é seu.

- Bom.

O Vaz pagou generosamente a hospedagem e saiu.

* * *

No dia seguinte lembrou-se que era sábado, e, sendo um desocupado, sentiu desejos de conhecer a dama e o cavalheiro das 4 horas. Para isso, postou-se, no momento aprazado, bem defronte da casa hospitaleira, arranjando, por trás de uma árvore um magnífico posto de observação.

O cavalheiro foi o primeiro a chegar. Era um velho com todas as aparências de respeitável.

A  dama   pouco   se demorou:  era  a  própria  Ernestina  Friandes.  Imaginem  a surpresa   do   Vaz,   que   daquele   momento   em   diante,   convencido   de   que   o ingênuo fora ele, nunca mais se fiou na ingenuidade das mulheres.


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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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