sexta-feira, 29 de março de 2013

Artur de Azevedo: "O Galã"


O GALÃ


Um belo dia, naquela pacata e honesta capital da província de segunda ordem, apareceram, pregados   nas   esquinas,   enormes   cartazes  anunciando   a   próxima   estréia   de  uma   excelente companhia dramática, vinda do Rio de Janeiro.

Há muito tempo o velho teatro não abria as portas ao público, e este, enfarado de peloticas e cavalinhos, andava sequioso de drama e comédia.

Havia, portanto, na cidade uma animação e rebuliço desusados.

Falara-se   na   vinda   da   companhia,   mas   ninguém   tinha   absoluta   certeza   de   que   ela   viesse, porque o empresário receava não fazer para s despesas. Agora, os cartazes, impressos em letras garrafais, confiram a auspiciosa notícia, provocando um entusiasmo indizível. Muita gente saía de casa só para os ver, certificando-se, pelos próprios olhos, de tão grata novidade.

A companhia anunciada era, efetivamente, a melhor, talvez, de quantas até então se tinham aventurado às incertezas de uma temporada naquela tranqüila cidade.

Dois artistas, pelo menos, a primeira dama e o galã, vinham precedidos de grande fama. Ela já lá   tinha   estado,   quando   menos   célebre,   porém,   era   a   primeira   vez   que   lá   ia,   e  por   isso   o esperavam com uma ansiedade fácil de imaginar.

Quando a companhia chegou, foi uma verdadeira festa. Grande massa de povo aguardava-a no cais de desembarque; houve música, foguetes e aclamações.

Tanto a primeira dama como o galã foram acompanhados ao hotel por inúmeros admiradores - e ele, solicitado pelo povo, teve que aparecer à janela, onde, visivelmente comovido, expectorou algumas palavras com mais entusiasmo que sintaxe.

A estréia foi um delírio. O teatro encheu-se completamente: não havia um lugar desocupado.

O presidente da província (era no tempo do Império) estava presente, e os camarotes, ocupados pelas primeiras famílias, apresentavam magnífico aspecto.

Representou-se a Morgadinha de Valflor.

A primeira dama agradou muito, mas sem causar grande impressão, porque já tinha sido vista no   papel   da   protagonista   e   não   parecia   agora   superior   ao   que   dantes   fora.   Quem   triunfou verdadeiramente, quem teve as honras da noite, foi o galã, o melhor Luís Fernandes que até então pisara naquele palco.

Era um artista experimentado, com todas as qualidades e defeitos indispensáveis para agradar às platéias provincianas; bom órgão, gesto largo e abundante, porte esbelto, grande cabeleira encaracolada, bigodes   fartos e retorcidos, olhos  pisados,  bons  dentes -  nada  faltava a Luís Fernandes   para   ser   desejado,   não   só   pela   morgadinha   de   Valflor,   como   por   todas   as espectadoras sentimentais.

Entre estas, havia uma, a sinhazinha Brites, cujo espírito enfermiço aquele formoso intérprete de Pinheiro Chagas impressionou singularmente.

Ela sentia-se fascinada pela figura garbosa e varonil do palavroso pintor, em quem tão bem assentavam os calções e as botas do tempo do diretório - e, por mais que tentasse disfarçar, não pôde encobrir ao marido os violentos resultados daquela fascinação.

Ele, o marido, o Brites, era um sujeito observador e inteligente, a quem não deixava de inquietar o caráter romanesco de sinhazinha. Estudara-a a fundo, atentando nas suas longas cismas em noites de luar, ou examinando cuidadosamente os livros cuja leitura ela preferia.

Houvera certa desigualdade naquele casamento: o marido era quinze anos mais velho que a mulher; ele, um homem positivo, encarando a vida como a vida é, procurando o lado prático de todas as coisas; ela, com uns ares vaporosos de femme incomprise, divagando continuamente pelos intermúndios da quimera e do sonho. Ele, criatura comum, homem feio como todos os homens sem educação física; ela, uma das moças mais bonitas da terra.

Demais, faltava-lhes a maior ventura dos casais felizes: faltava-lhes um filho, que reprimisse na senhora as fantasias da senhorita.

Com  uma  boa posição no  comércio, rico ou, pelo  menos, remediado, honesto,  escrupuloso, solícito, amável, e, como já ficou dito, inteligente, o Brites era, entretanto, um marido ideal.

O segundo espetáculo da companhia foi com o Romance de um moço pobre.

Observou   o   sobressaltado   marido   que   Máximo   Odiot   causava   à  sinhazinha   uma   impressão ainda mais pecaminosa que a produzida por Luís Fernandes.

Quando o pano desceu depois da famosa cena das ruínas do castelo abandonado, em que o herói de Octave Feuillet se atira num precipício, exclamando: - Vou salvar a honra! – sinhazinha ficou uns bons cinco minutos estática, sem articular um som, os lábios entreabertos num quase sorriso voluptuoso, o olhar úmido perdido no vago.

O   público   aplaudiu   calorosamente,  chamando   três   vezes   os  artistas   à  cena  e   ela  não   saiu
daquele êxtase.

- Que tens?... Estás incomodada?... - perguntou o Brites.

A   moça   estremeceu,   passou   as   mãos   pelos   olhos,   como   se   despertasse   de   um   sonho,   e suspirou, dizendo:

- Não, não tenho nada.

Na   manhã   seguinte   o   Brites   experimentou   o   maior   desgosto   da   sua   vida   conjugal:   ouviu perfeitamente sinhazinha, dormindo, pronunciar o nome do gala...

Isto resolveu-o a atacar de frente o minotauro.

Não   deixou   perceber   coisa   alguma.   Almoçou   alegremente   e   foi   para   o   trabalho   à   hora costumada.

Quando voltou à tarde, aproximou-se de sinhazinha, deu-lhe um beijo, e disse-lhe:

- Trago-te uma notícia que talvez te contrarie...

- Qual?

- O galã da companhia dramática vem cá jantar amanhã.

- O galã!

- Sim; aquele que ontem fez com tanto talento o papel do moço pobre. Foi hoje levar-me ao escritório uma carta de recomendação, e eu, não sabendo como obsequiá-lo, convidei-o para jantar. Amanhã não há espetáculo: ele está livre.

Sinhazinha, que, enquanto o marido falava, tivera tempo de preparar a dissimulação, limitou-se a responder:

- Que maçada!

Ela mal dormiu durante a noite e, no dia seguinte, agitada pela idéia de que ia ver de perto, apertar a mão e falar ao irresistível galã, passou as horas febricitante, nervosa, mudando de lugar   a   cada   momento.   Felizmente   os   preparativos   do   jantar   ofereceram   uma   espécie   de derivativo àquele acesso nervoso.

Quando, às seis horas da tarde, chegou o galã, ela não quis acreditar que fosse ele: olhou para a porta como se esperasse outra visita; mas o marido, que lhe percebeu a surpresa, insistiu na apresentação e sinhazinha dobrou-se à evidência.

Tinha diante de si um homem feio, marcado de bexigas, os dentes postiços, o cabelo cortado à escovinha e a cara inteiramente raspada... de véspera.

A   alvura   da   camisa   era   suspeita,   as   botinas   eram   cambraias,   as   unhas   não   eram irrepreensíveis, a sobrecasaca tinha nódoas e as calças joelheiras.

A  desilusão   continuou   durante  o  jantar.  O galã,  aliás  boa  pessoa,   não  tinha  absolutamente conversação,  nem  de outro assunto traque não fosse da sua vida de teatro. Disse mal dos colegas, arrastou a primeira dama pela rua da amargura, e afirmou que não faria parte daquela tropa fandanga, se não tivesse que sustentar mulher e cinco filhos, em véspera de seis.

E não sabia estar à mesa: repetia todos os pratos, metia a faca na boca, palitava os dentes, limpava a testa no guardanapo, escarrava, cuspia!

Sinhazinha estava pasmada, e o Brites radiante.

Quando o galã saiu, logo depois do café, a mulher do engenhoso Brites sentia-se curada de todos os devaneios da sua imaginação doentia.

- Que diferença!... Não parece o mesmo!...

- Pudera! Quem tu viste no teatro não foi ele: foi o Luís Fernandes, foi o Máximo Odiot.

Alguns meses depois havia naquela casa o que até então lhe faltava: um filho que reprimisse na senhora todas as fantasias da senhorita.
---
---
Nota:

Texto-fonte: Artur de Azevedo: “Vida Alheia”, de 1929

Nenhum comentário:

Postar um comentário