domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "A Filosofia do Mendes"


A FILOSOFIA DO MENDES


Decididamente o Fulgêncio não nascera para cavalarias altas: não havia rapaz de trinta anos mais tímido nem mais pacato vivendo só, na sua casinha de solteiro, independente e feliz.

Aconteceu, porém, que um dia o Fulgêncio foi tão provocado pelos bonitos olhos de uma senhora, que se sentara ao seu lado num bondinho da Carris Urbanos, que se deixou arrastar numa aventura de amor.

Quando, depois da primeira entrevista, na casa dele, Bárbara - ela chamava-se Bárbara - lhe confessou que era casada com um sujeito chamado Mendes, o pobre rapaz, que a supunha solteira ou pelo menos viúva, ficou horrorizado de   si   mesmo.   Ficou   horrorizado,   mas   era   tarde:   gostava   dela,   e   não   teve forças para fugir-lhe.

As entrevistas amiudaram-se. Quando Bárbara não ia ter pessoalmente com o Fulgêncio escrevia-lhe cartas inflamadas, e nenhuma ficava sem resposta.

Essa   imprudência   teve   mau   resultado:   um  dia   Bárbara   Mendes   entrou   em casa do amante acompanhada de duas malas, uma trouxa e um baú.

- Que é isto?

- Alegra-te!  Meu marido, que é muito abelhudo, encontrou debaixo do meu travesseiro a tua última carta e expulsou-me de casa.

- Hein?

- Foi melhor assim:  agora sou  tua, só tua, e por toda a vida!...  Não  estás contente?

- Muito...

- Estou te achando assim a modo que...

- É a surpresa... a comoção... a alegria...

- Como  vamos  ser felizes!  Mas olha,  peço-te que  não  te exponhas  nestes primeiros   tempos...   O  Mendes  é  ciumento  e  brutal  e,  mesmo   antes   de   ter certeza de que eu o enganava, andava armado de revólver!

O Fulgêncio, que não tinha sangue de herói, viveu dali por diante em transes terríveis. Saía  de casa  o menos  possível,  e nas  ruas  só andava  de  tílburi, recomendando aos cocheiros que fossem depressa. Quando via ao longe um sujeito qualquer parecido com o Mendes, punha-se a tremer que nem varas verdes.

Um   dia,   tendo   descido   de   um   tílburi   no   Largo   da   Carioca,   para   comprar cigarros, encontrou na charutaria o Mendes, que comprava charutos. Ficou de repente muito  pálido  e trêmulo  e quis fugir, mas o outro agarrou-o por um braço, dizendo-lhe com muita brandura:

- Faça favor... venha cá... não se assuste... não trema... não lhe quero mal... ouça-me... é para o seu bem...

O Fulgêncio caiu das nuvens. O marido continuou:

- Eu sei que o sr. tem medo de mim que se pela: receia que eu o mate, ou que lhe bata... Tranqüilize-se: não lhe farei o menor mal. Pelo contrário!

O pobre Fulgêncio não conseguiu articular um monossílabo. 

As maxilas batiam uma na outra.

- Matá-lo? Bater-lhe? Seria uma ingratidão!  O Sr. Prestou-me um relevante serviço: livrou-me de Bárbara! E não era meu amigo, sim, porque em geral são os amigos que têm a especialidade desses obséquios...

O Fulgêncio continuava a tremer. 

- Não esteja assim nervoso! Depois que o Sr. me libertou daquela peste, sou outro   homem,   vivo   mais   satisfeito,   como   com   mais   apetite,   tudo   me   sabe melhor e durmo que é um regalo... Aqui entre nós, se o amigo quiser uma indenização em dinheiro, uma espécie de luvas, não faça  cerimônia;  estou pronto a pagar - não há nada mais justo... Ande desassombradamente por toda a parte... não receie uma vingança que seria absurda... e se, algum dia, eu lhe puder servir para alguma coisa, disponha de mim. Não sou nenhum ingrato.

Daí por diante, o Fulgêncio nunca mais teve receio de estar na rua, mas em pouco tempo se convenceu de que não podia estar em casa, porque Bárbara era definitivamente insuportável. O Mendes foi o mais feliz dos três.


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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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