A FILOSOFIA DO MENDES
Decididamente o Fulgêncio não nascera para cavalarias altas: não
havia rapaz de trinta anos mais tímido nem mais pacato vivendo só, na sua
casinha de solteiro, independente e feliz.
Aconteceu, porém, que um dia o Fulgêncio foi tão provocado pelos
bonitos olhos de uma senhora, que se sentara ao seu lado num bondinho da Carris
Urbanos, que se deixou arrastar numa aventura de amor.
Quando, depois da primeira entrevista, na casa dele, Bárbara - ela
chamava-se Bárbara - lhe confessou que era casada com um sujeito chamado
Mendes, o pobre rapaz, que a supunha solteira ou pelo menos viúva, ficou
horrorizado de si mesmo.
Ficou horrorizado, mas
era tarde: gostava
dela, e não
teve forças para fugir-lhe.
As entrevistas amiudaram-se. Quando Bárbara não ia ter
pessoalmente com o Fulgêncio escrevia-lhe cartas inflamadas, e nenhuma ficava
sem resposta.
Essa imprudência teve
mau resultado: um
dia Bárbara Mendes
entrou em casa do amante
acompanhada de duas malas, uma trouxa e um baú.
- Que é isto?
- Alegra-te! Meu marido,
que é muito abelhudo, encontrou debaixo do meu travesseiro a tua última carta e
expulsou-me de casa.
- Hein?
- Foi melhor assim: agora
sou tua, só tua, e por toda a
vida!... Não estás contente?
- Muito...
- Estou te achando assim a modo que...
- É a surpresa... a comoção... a alegria...
- Como vamos ser felizes!
Mas olha, peço-te que não te
exponhas nestes primeiros tempos...
O Mendes é
ciumento e brutal
e, mesmo antes
de ter certeza de que eu o
enganava, andava armado de revólver!
O Fulgêncio, que não tinha sangue de herói, viveu dali por diante
em transes terríveis. Saía de casa o menos
possível, e nas ruas
só andava de tílburi, recomendando aos cocheiros que
fossem depressa. Quando via ao longe um sujeito qualquer parecido com o Mendes,
punha-se a tremer que nem varas verdes.
Um dia, tendo
descido de um
tílburi no Largo
da Carioca, para
comprar cigarros, encontrou na charutaria o Mendes, que comprava charutos.
Ficou de repente muito pálido e trêmulo
e quis fugir, mas o outro agarrou-o por um braço, dizendo-lhe com muita
brandura:
- Faça favor... venha cá... não se assuste... não trema... não lhe
quero mal... ouça-me... é para o seu bem...
O Fulgêncio caiu das nuvens. O marido continuou:
- Eu sei que o sr. tem medo de mim que se pela: receia que eu o
mate, ou que lhe bata... Tranqüilize-se: não lhe farei o menor mal. Pelo
contrário!
O pobre Fulgêncio não conseguiu articular um monossílabo.
As maxilas batiam uma na outra.
- Matá-lo? Bater-lhe? Seria uma ingratidão! O Sr. Prestou-me um relevante serviço:
livrou-me de Bárbara! E não era meu amigo, sim, porque em geral são os amigos
que têm a especialidade desses obséquios...
O Fulgêncio continuava a tremer.
- Não esteja assim nervoso! Depois que o Sr. me libertou daquela
peste, sou outro homem, vivo
mais satisfeito, como
com mais apetite,
tudo me sabe melhor e durmo que é um regalo... Aqui
entre nós, se o amigo quiser uma indenização em dinheiro, uma espécie de luvas,
não faça cerimônia; estou pronto a pagar - não há nada mais
justo... Ande desassombradamente por toda a parte... não receie uma vingança
que seria absurda... e se, algum dia, eu lhe puder servir para alguma coisa,
disponha de mim. Não sou nenhum ingrato.
Daí por diante, o Fulgêncio nunca mais teve receio de estar na
rua, mas em pouco tempo se convenceu de que não podia estar em casa, porque
Bárbara era definitivamente insuportável. O Mendes foi o mais feliz dos três.
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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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