domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "A Nota de Cem Mil-Réis"


A NOTA DE CEM MIL-RÉIS


O Cavalcânti era um marido incorreto, para não empregar um adjetivo mais forte;   imaginem   que   os   seus   recursos   não   davam   para   acudir   a   todas   as necessidades da família e, no entanto, era ele um dos amantes da Josephine Leveau, uma cocotte  francesa, cujo nome era   muito conhecido nas rodas alegres, e se prestava aos trocadilhos mais interessantes, quer em francês, quer em português.

Como   a   esposa   do   Cavalcanti   era   uma   hábil   costureira,   recorreu   à   sua  habilidade para ajudar nas despesas de casa. Um  dia fez um vestido para uma amiga, e, tão bem feito, tão elegante, que a sua fama correu de boca em boca, e valeu-lhe uma freguesia certa, que lhe dava algum dinheiro a ganhar. Havia meses em que ela fazia trezentos mil-réis.

O Cavalcanti não protestou, pelo contrário aprovou. Fez mais, como vão ver.

Uma   bela   manhã,   a   Josephine   mandou-lhe   pedir   cem   mil-réis   para   uma necessidade urgente, e ele não os tinha, nem sabia onde ir buscá-los. Hesitou durante algum tempo em cometer uma baixeza, mas acabou cometendo-a. Já o leitor adivinhou que o miserável pediu à esposa o dinheiro que devia mandar à amante.

A pobre senhora não manifestou a menor contrariedade:  foi ao seu quarto, abriu uma gaveta onde guardava o fruto do seu trabalho, e tirou uma nota de cem mil-réis, ainda nova. Antes de levá-la ao marido, que esperava na sala de jantar, contemplou-a durante algum tempo como para despedir-se dela para sempre, e então notou que alguém escrevera num canto estas palavras com letra miúda: "Nunca mais te verei, querida nota!" E como D. Margarida – ela chamava-se Margarida - tivesse um lápis à mão, escreveu por baixo daquelas palavras "Nem eu!".

O Cavalcanti empalmou os cem mil-réis com um estremeção de alegria.

- Este dinheiro faz-te muita falta? - perguntou ele.

- Não - respondeu ela - hoje mesmo espero receber igual quantia.

Meia hora depois, o Cavalcânti entregava a nota, dentro de um envelope, a Josephine Leveau.

Nesse mesmo dia D. Margarida recebeu os outros cem mil-réis que esperava. Contra o seu costume, o Cavalcânti estava em casa.

- Olha, disse-lhe ela, aqui estão os cem mil-réis que eu contava receber. A freguesa é boa.

- Quem ela é? perguntou o marido.

- Não a conheço; veio ter comigo e pediu-me que lhe fizesse um vestido de seda, riquíssimo. Tinham-lhe dito que eu trabalhava bem e barato.

- Mas é senhora séria?

-   Parece.   É   francesa,   e   casada   com   um   banqueiro,   disse-me   ela. Naturalmente   o   marido   é   também   francês,   porque   ela   chama-se   Madame Leveau.

- Leveau! repetiu o Cavalcânti empalidecendo.

- Conheces?

- Não.

- Então, por que fizeste essa cara espantada? Boa freguesa! O vestido foi hoje de manhã cedo, e hoje mesmo veio o dinheiro.

- Onde mora essa Madame Leveau?

- Na Rua do Catete.

Dizendo isto D. Margarida abriu o envelope e retirou os cem mil-réis.

- Que coincidência! disse ela; a nota é da mesma estampa da qual te dei hoje de manhã! Por sinal que a outra tinha no canto... Oh!...

Este grito quer dizer que D. Margarida tinha lido a frase "Nunca mais te verei", e o seu acréscimo: "Nem eu!".

- Que foi? perguntou o Cavalcanti.

- A nota é a mesma!...

- A mesma? repetiu o marido gaguejando.

-   A   mesmíssima!   Reconheço-a   por   causa   destas   palavras...   Vê!   a   minha letra!...

O  Cavalcanti  arranjou   uma   desculpa  esfarrapada:  disse  que  tinha  pago  os cem mil-réis ao banqueiro Leveau, a quem os pedira emprestados; mas D. Margarida não engoliu a pílula, e foi à casa de Josephine certificar-se de que esta era uma cocotte freqüentada por seu marido.

A pobre senhora separou-se do desgraçado, e abriu casa de modista. Ganha muito dinheiro.


---
Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

Nenhum comentário:

Postar um comentário