A NOTA DE CEM MIL-RÉIS
O Cavalcânti era um marido incorreto, para não empregar um
adjetivo mais forte; imaginem que
os seus recursos
não davam para
acudir a todas
as necessidades da família e, no entanto, era ele um dos amantes da
Josephine Leveau, uma cocotte
francesa, cujo nome era muito conhecido nas rodas alegres, e se prestava
aos trocadilhos mais interessantes, quer em francês, quer em português.
Como a esposa
do Cavalcanti era
uma hábil
costureira, recorreu à
sua habilidade para ajudar nas
despesas de casa. Um dia fez um vestido
para uma amiga, e, tão bem feito, tão elegante, que a sua fama correu de boca
em boca, e valeu-lhe uma freguesia certa, que lhe dava algum dinheiro a ganhar.
Havia meses em que ela fazia trezentos mil-réis.
O Cavalcanti não protestou, pelo contrário aprovou. Fez mais, como
vão ver.
Uma bela manhã,
a Josephine mandou-lhe
pedir cem mil-réis
para uma necessidade urgente, e
ele não os tinha, nem sabia onde ir buscá-los. Hesitou durante algum tempo em
cometer uma baixeza, mas acabou cometendo-a. Já o leitor adivinhou que o
miserável pediu à esposa o dinheiro que devia mandar à amante.
A pobre senhora não manifestou a menor contrariedade: foi ao seu quarto, abriu uma gaveta onde
guardava o fruto do seu trabalho, e tirou uma nota de cem mil-réis, ainda nova.
Antes de levá-la ao marido, que esperava na sala de jantar, contemplou-a
durante algum tempo como para despedir-se dela para sempre, e então notou que
alguém escrevera num canto estas palavras com letra miúda: "Nunca mais te
verei, querida nota!" E como D. Margarida – ela chamava-se Margarida -
tivesse um lápis à mão, escreveu por baixo daquelas palavras "Nem
eu!".
O Cavalcanti empalmou os cem mil-réis com um estremeção de
alegria.
- Este dinheiro faz-te muita falta? - perguntou ele.
- Não - respondeu ela - hoje mesmo espero receber igual quantia.
Meia hora depois, o Cavalcânti entregava a nota, dentro de um
envelope, a Josephine Leveau.
Nesse mesmo dia D. Margarida recebeu os outros cem mil-réis que
esperava. Contra o seu costume, o Cavalcânti estava em casa.
- Olha, disse-lhe ela, aqui estão os cem mil-réis que eu contava
receber. A freguesa é boa.
- Quem ela é? perguntou o marido.
- Não a conheço; veio ter comigo e pediu-me que lhe fizesse um
vestido de seda, riquíssimo. Tinham-lhe dito que eu trabalhava bem e barato.
- Mas é senhora séria?
- Parece. É
francesa, e casada
com um banqueiro,
disse-me ela. Naturalmente o
marido é também
francês, porque ela
chama-se Madame Leveau.
- Leveau! repetiu o Cavalcânti empalidecendo.
- Conheces?
- Não.
- Então, por que fizeste essa cara espantada? Boa freguesa! O
vestido foi hoje de manhã cedo, e hoje mesmo veio o dinheiro.
- Onde mora essa Madame Leveau?
- Na Rua do Catete.
Dizendo isto D. Margarida abriu o envelope e retirou os cem
mil-réis.
- Que coincidência! disse ela; a nota é da mesma estampa da qual
te dei hoje de manhã! Por sinal que a outra tinha no canto... Oh!...
Este grito quer dizer que D. Margarida tinha lido a frase
"Nunca mais te verei", e o seu acréscimo: "Nem eu!".
- Que foi? perguntou o Cavalcanti.
- A nota é a mesma!...
- A mesma? repetiu o marido gaguejando.
- A
mesmíssima! Reconheço-a por
causa destas palavras...
Vê! a minha letra!...
O Cavalcanti arranjou
uma desculpa esfarrapada:
disse que tinha
pago os cem mil-réis ao banqueiro
Leveau, a quem os pedira emprestados; mas D. Margarida não engoliu a pílula, e
foi à casa de Josephine certificar-se de que esta era uma cocotte freqüentada
por seu marido.
A pobre senhora separou-se do desgraçado, e abriu casa de modista.
Ganha muito dinheiro.
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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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