SABINA
I
Havia três anos que o Bacharel Figueiredo era o amante da viúva
Fontes. E marido seria se ela quisesse; mas Sabina - Sabina era o seu nome -
dera-se mal com o casamento, e não queriaexperimentá-lo de novo.
Um mês depois do seu primeiro encontro com o Bacharel Figueiredo,
este dizia-lhe:
- Eu amo-te, tu amas-me, eu sou livre, tu livre és: case-mo-nos!
- Não! respondia ela, não! não! não!...
- Por quê, meu amor?
- Porque esse fogo, esse ímpeto, esse entusiasmo que te lançou nos
meus braços, tudo isso desapareceria desde que eu fosse tua mulher!
- Mas a sociedade...
- Ora a sociedade! Sou bastante independente para me não importar
com ela.
- Tua filhinha...
- Tem apenas quatro anos! está na idade em que se olha sem ver.
Demais, não quero dar-lheum padrasto. Amemo-nos, e deixemos em paz o padre e o
pretor.
II
Ficaram efetivamente em paz o ministro de Deus e o representante
da lei, mas nem por isso o bacharel deixou de enfarar-se ao cabo de dois anos,
agradecendo aos céus o haver a viúva recusado o casamento que ele lhe propusera
num momento de verdadeira alucinação.
Havia muitos meses já que o moço ruminava um plano de separação
definitiva, mas não sabia de que pretexto lançar mão para chegar a esse
resultado. Sabina guardava-lhe, ou, pelo menos, parecia guardar-lhe absoluta
fidelidade, e nunca lhe dera motivo de queixa.
Nestas condições lembrou-se o bacharel de consultar o velho Matos,
que o honrava com a sua amizade.
III
O velho Matos era um solteirão rico e viajado, que na sua tempestuosa
mocidade tivera um número considerável de aventuras galantes, e era ainda
considerado um oráculo em questões de amor. Muitos mancebos inexperientes
recorriam aos seus conselhos, e tais e tão discretos eram estes, que eles
alcançavam quanto pretendiam.
O Bacharel Figueiredo foi ter a uma velha chácara da Gávea, onde o
avisado conselheiro vivia das suas recordações e de alguns prédios e apólices
milagrosamente salvos do naufrágio dos seus haveres.
O moço foi recebido com muita amabilidade, e sem preâmbulos expôs
a situação:
- Há três anos sou o amante de uma senhora viúva, distinta e bem
educada; quero acabar com essa ligação; que devo fazer?
- Antes de mais nada, é preciso que eu saiba o motivo que o
desgostou. Tem ciúmes dela?
- Ciúme... - Oh! se a conhecesse!... É um modelo de meiguice,
fidelidade e constância!
- Existe alguma particularidade que o afaste desse modelo?...
quero dizer: uma enfermidade... - um defeito físico... o mau hálito, por
exemplo?
- Pelo amor de Deus!... É uma mulher sadia, limpa, cheirosa.
- Então, é feia?
- Feia?! Uma das caras mais bonitas do Rio de Janeiro!
- Tem mau gênio?
- Uma pombinha sem fel!
- Então é tola, vaidosa, pedante, presumida, afetada,
asneirona...?
- Nada disso! é uma mulher de espírito, instruída e perfeitamente
educada.
- É devota? Anda metida nas igrejas?... passa horas esquecidas a
rezar diante de uni oratório?...
- Apenas vai ouvir missa aos domingos.
- Talvez abuse do piano, ou desafine a cantar...
- Não canta; toca piano, mas não abusa. Digo-lhe mais: interpreta
admiravelmente Chopin.
- Você gosta de outra mulher?
- Juro-lhe que não.
- Bom; sei o que isso é; você aborreceu-se dela porque nunca lhe
descobriu defeitos. É boa demais.
- Talvez. O caso é que esta ligação já durou mais tempo do que
devia, e urge acabar com ela. A Sabina tem uma filha que está crescendo a olhos
vistos, e não é conveniente fazer com que essa criança algum dia a obrigue a
corar.. . Depois, eu sou moço.. . tenho um grande horizonte diante de mim...
enceto agora a minha carreira de advogado... esta ligação pode prejudicar seriamente o meu
futuro - não acha?
O velho Matos calou-se, e, passados alguns momentos, perguntou:
- Quer então você separar-se dessa mulher ideal?
- Quero.
- A sua resolução é inabalável?
- Inabalável.
- Só há um meio de o conseguir.
- Qual?
- Desapareça.
- Ela irá procurar-me onde quer que eu esteja.
- Boa dúvida, mas faça-se invisível, vá para a roça, e volte ao
cabo de oito dias. Naturalmente ela aparece, e pergunta em termos ásperos, ou
sentidos, o motivo do seu procedimento. Muna-se então de um pouco de coragem, e
responda-lhe o seguinte: "Á vista de um fato que chegou ao meu
conhecimento, nada mais pode haver de comum entre nós. Nã0 me peça explicações: meta a mão na
consciência, e meça a extensão do meu ressentimento!"
- Mas que fato? Pois eu já não lhe disse que a Sabina e um modelo
de...
- Meu jovem amigo, interrompeu o velho Matos, não há mulher, por
mais amante, por mais dedicada, por
mais virtuosa que
seja, que não
tenha alguma coisa
de que a
acuse a consciência. A sua Sabina,
em que pese
às aparências, não deve, não
pode escapar à lei comum; desde que você
se refira positivamente a um fato, embora não declare que fato é, ela ficará
persuadida de que o seu amante veio ao conhecimento de alguma coisa que se
passou, e que a pobrezinha supunha coberta pelo véu de impenetrável mistério.
- Mas a Sabina, quando mesmo tenha algum pecadinho na consciência
(eu juro-lhe que o não tem!) com certeza há de protestar energicamente e exigir
que eu ponha os pontos nos ii; há de querer que eu diga francamente a que fato
aludo, e... - e vamos lá! como acusá-la sem consentir que ela se defenda?
- Ah! meu
amigo! se você
pretende aplicar razões
jurídicas ao caso,
não arranja nada.
A jurisprudência do amor e extravagante e absurda. Acuse, retire-se,
e não entre em explicações. Afianço-lhe que o êxito é seguro.
IV
Se bem o disse o velho Matos, melhor o fez o Bacharel Figueiredo.
Retirou-se durante alguns dias para uma fazenda sem dizer adeus nem dar
satisfações a viuva.
Imagine-se o desespero
dela. Quando soube
que o seu
amante voltara dessa
misteriosa viagem, foi - e era a primeira vez que lá ia - foi à casa de
pensão em que ele morava e entrou como uma doida no seu quarto.
- Então? que
quer isto dizer?...
exclamou a mísera
caind0 numa cadeira,
a soluçar desesperadamente.
Ele até então nunca a tinha visto chorar. A viúva
apresentava-se-lhe sob um aspecto estranho; parecia-lhe agora mais apetitosa.
Entretanto, fazendo um
esforço violento sobre
si mesmo, o bacharel franziu os
sobrolhos e repetiu as palavras d0 velho
Matos:
- Á vista de um fato que chegou ao meu conhecimento, nada mais
pode haver de comum entre nós!...
Sabina ergueu-se como tocada por uma mola. Ele continuou:
- Não me peça explicações; eu não lhas daria! Meta a mão na consciência, e compreenda o meu
eterno ressentimento...
Dizendo isto, saiu
do quarto batendo
com estrondo a
porta, e deixando
a pobre Sabina aparvalhada.
V
No dia seguinte o bacharel recebeu uma carta concebida nos
seguintes termos:
"Figueiredo - Tens razão: nada mais pode haver de
comum entre nós; aprecio e respeito a delicadeza dos teus sentimentos.
"Eu vivia na
ilusão de que
tudo ignorarias, de
que jamais virias
ao conhecimento de
uma
fraqueza que tão desgraçada me faz neste instante. Vejo que o
miserável não guardou segredo, e fez chegar aos teus ouvidos a história de uma
vergonhosa aventura a que fui arrastada num momento de desvario e de que logo
me arrependi amargamente.
"Não me perdoes, porque o teu perdão seria um atestado de
péssimo caráter, mas ao menos sabe que foi a tua frieza, o teu desprendimento,
o pouco caso com que então começavas a tratar-me, que me determinaram a dar o
mau passo que dei e que tantas lágrimas me tem custado.
"Adeus; lembra-te sempre da infeliz Sabina, que te ama ainda
como sempre te amou, mas não procures tornar a vê-la, porque ela é a primeira a
confessar que não é digna de ti. Console-te a certeza de que a minha vida vai
ser de agora em diante um inferno de remorsos e de saudades. Adeus para
sempre... - Sabina."
VI
Essa carta produziu terrível efeito no espírito do Bacharel
Figueiredo.
Era então certo?... ela pertencera a outro homem?...
E o seu
amor extinto despertou
mais violento, mais
impetuoso que nunca.
Passavam-lhe rapidamente pela memória, num turbilhão demoníaco, todos os
deliciosos momentos que lhe proporcionara a meiga viúva, e o ciúme, um ciúme
implacável, que o aniquilava e embrutecia, excitava-o tiranicamente.
Ele correu à casa de Sabina, e encontrou fechadas todas as portas
e janelas. Informou-o um vizinho de que a viúva se retirara na véspera, com a
menina e as criadas, levando malas e embrulhos.
Durante oito dias o bacharel, desesperado, enfurecido, mortificado
pela insônia, pelos ciúmes, pelas saudades, correu á casa dela: tudo
fechado!...
Ninguém lhe dava notícias de Sabina! Aonde iria ela?.. - onde
estava?...
Afinal, um dia encontrou a porta aberta e entrou como um doido,
tal qual Sabina entrara na casa de pensão. Encontrou-a no seu quarto, e, sem
dizer palavra, sufocado pelo pranto, beijou-lhe sofregamente a boca, os olhos,
o nariz, as orelhas, beijou-a toda, e, rasgando-lhe o vestido, atirou-a brutalmente
sobre o leito,
sequioso por entrar
de novo na
posse daquele corpo
e daquele sangue.
Mas a viúva, debatendo-se heroicamente, conseguiu repeli-lo, e
pôs-se de pé, gritando:
- Não! não! não, Figueiredo!... Tudo acabou entre nós! Eu não sou
digna de ti!...
- Não digas isso pelo amor de Deus! Eu perdôo-te! Eu amo-te! Eu
adoro-te!...
- Se realmente me amas, se me adoras, então és tu que não és digno
de mim!
Dizendo isto, fugiu do quarto e foi para junto da filha, onde se
julgou a coberto das perseguições do bacharel.
Efetivamente, este deixou-se ficar no quarto, atirado sobre o leito e soluçando convulsivamente.
VII
Durante alguns dias a mesma cena se reproduziu, mas afinal
restabeleceram-se as pazes.
Sabina cedeu sob duas condições: primeira, - o bacharel só
entraria no quarto dela com escala pela
pretoria e pela igreja:
segunda, - jamais
lhe pediria explicações
sobre o fato
que determinara a crise.
VIII
Três meses depois do casamento, o velho Matos, que se tornara
íntimo da casa, achando-se a sós com Sabina, contou-lhe a história do conselho
dado ao bacharel, conselho que foi a causa imediata de tão extraordinários
acontecimentos, e que tão negativo efeito produzira.
- Mas o que o senhor não sabe, disse ela, é que eu nunca tive
outro amante senão o Figueiredo.
- Que me diz, minha senhora?
- Juro-lhe pela vida de minha filha que falo verdade.
- Mas valha-me Deus! o pobre rapaz está convencido de...
- Deixá-lo estar. É um pobre-diabo, feito da mesma lama que os
outros homens. Confessei-lhe uma culpa que não tinha, porque adivinhei que só
assim poderia reconquistá-lo.
- Mas agora estão casados e muito bem casados; é preciso
dissuadi-lo.
- Não; ainda é cedo; mais tarde.. . Esse homem que ele não sabe quem é... essa aventura misteriosa....
essa ignóbil mentira é a garantia da minha felicidade. Enquanto ele supuser que
não fui dele só, será só meu.
- Parabéns, minha senhora; pode gabar-se de ter embrulhado o velho
Matos.
- Ora, o velho Matos! Quem é o velho Matos? Quem é o senhor? Algum
psicólogo? Saiba que uma mulher inteligente é capaz de embrulhar Paul
Bourget...
- Upa! upa! É capaz de enfiar pelo fundo de uma agulha o próprio
Balzac! Repito: parabéns, minha senhora!
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Nota:
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: “Contos Efêmeros”, de 1897
Texto-fonte: Arthur de Azevedo: “Contos Efêmeros”, de 1897
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