domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Denúncia Involuntária"


DENÚNCIA INVOLUNTÁRIA 


O Lustosa era muito boa pessoa, mas tinha um defeito: gostava de intrometer-se na vida alheia, e bisbilhotar o que se passava em casa dos outros.

Ele observou que uma bonita senhora, que morava defronte da casa dele, na Rua São Francisco Xavier, era regularmente visitada por dois amantes - um, já de meia-idade, gordo, calvo, pesado, feio, e outro, muito novo ainda, bonito e elegante.

O Lustosa imaginou logo, e imaginou muito bem, que o primeiro era o pagador e o segundo o amant de coeur.

O primeiro, além de ser mais velho, tinha uns ares de dono de casa que não enganava   a   ninguém;   as   suas   visitas   eram   mais   demoradas,   duravam   às  vezes toda a noite; ao passo que o outro aparecia de fugida, e não saía para a rua sem primeiro examinar se não passava alguém.

Ora, aconteceu que certa noite, achando-se numa soirée familiar em casa de um amigo que fazia anos, o Lustosa foi apresentado ao rapaz, que também lá estava.

A pessoa que fez a apresentação afastou-se, e o nosso indiscreto disse logo ao Peixoto que já o conhecia. O moço chamava-se Peixoto.

- Já me conhecia? De onde? - perguntou este muito intrigado.

- Da Rua São Francisco Xavier...

- Cale-se!  Por  amor   de  Deus,  não  me  comprometa!  Eu   tenho  família,  sou casado, e minha mulher está aqui! Olhe, é aquela senhora vestida de azul.

- Pois eu supunha-o solteiro; mas descanse; por mim ninguém saberá.

- Aquilo é um contrabando. São destas coisas em que a gente se mete não sabe como, e de que é muito difícil livrar-se.

- Ora! O amigo ainda está na idade, não acabou ainda de pagar o seu tributo; mas tenha cuidado: sexta-feira passada, quando o senhor entrou, o outro mal tinha acabado de sair! Por mais dois ou três minutos encontravam-se à porta.

Eu moro defronte, e vi tudo por trás da veneziana.

- O senhor disse "o outro". Que outro?

- O dono.

- Como o dono? O dono sou eu!

- Quero dizer: o "marchante".

- Não há outro marchante senão este seu criado! Dar-se-á caso que aquela mulher receba um homem quando eu lá não estou? Dar-se-á que me engane?

- Não! Não creio que ela o engane com um homem feio, que podia ser pai do senhor... um sujeito barrigudo... careca...

O Lustosa reconheceu a asneira que tinha feito, mas era tarde.

- Meu caro senhor, disse o Peixoto, as mulheres são capazes de tudo. Tenho aí um carro à porta. Vou até lá. Quero verificar agora mesmo se sou traído por aquele diabo. A ocasião e excelente. Ela não me espera, porque sabe que vim a esta reunião... minha mulher está distraída... Até logo!

O Peixoto saiu, e pouco depois ouvia-se rodar o carro.

O Lustosa ficou perguntando a si mesmo quando se corrigiria daquele mau costume de intrometer-se na vida alheia.

O Peixoto voltou ao cabo de uma hora, e foi logo ter com ele.

- Obrigado pelo serviço que me prestou. Surpreendi lá dentro o careca em ceroulas. Ela quis me convencer que era um tio. Desavergonhada! Estou livre daquela péla!

- Pois, senhores, disse o Lustosa, dei rata, dei: mas quem podia supor que o senhor, com essa mocidade e com esses olhos, era o marchante, e o outro, com   aquela   cara,   o   coió!   Decididamente,   em   se   tratando   de   mulheres, devemos sempre contar com o absurdo e o inverossímil!


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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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