CONJUGO VOBIS
A formosa Angelina,
filha do Seabra,
tinha um namorado
misterioso, que via passar todas
as tardes por baixo das suas janelas. Era um bonito rapaz, dos seus trinta
anos, esbelto, elegante,
sempre muito bem
trajado, sobrecasaca, chapéu
alto, botinas de bico finas, bengala de castão de prata, pincenez de ouro. Limitava-se
a cumprimentá-la sorrindo. Ela sorria também, para animá-lo, mas, qual!, o moço
parecia de uma timidez invencível, e o romance não passava do primeiro
capítulo.
- Com certeza um rapaz bem colocado, pensava Angelina, mas o diabo
é que não se explica, e não hei de ser eu a primeira a chegar à fala!
Afinal, um dia, passando, como de costume, ele atirou para dentro
do corredor da moça um bilhete em que estavam estas palavras: "Amo-a, e
desejava saber se sou correspondido."
No dia seguinte ele apanhou a resposta, que ela atirou à rua:
"Não posso dizer que o amo, porque não o conheço, mas simpatizo muito com a
sua pessoa. Diga-me quem é."
* * *
Nessa mesma tarde,
por uma dessas
fatalidades a que
estão sujeitos os corações
humanos, o Seabra,
pai de Angelina,
entrou em casa
como uma bomba, esbaforido,
carregado com muitos
embrulhos, suando por
todos os poros, e intimou a
esposa e a filha (eram toda a sua família) a fazerem as malas, porque no dia
seguinte, às 5 horas da manhã, partiam para Caxambu.
- Mas isto assim de repente! - protestou a velha. - Vai ser uma
atrapalhação!
- Não quero
saber de nada!
O médico disse-me
que, se eu
não partisse imediatamente para
Caxambu, era um homem morto! Eu devia até seguir pelo noturno! Estou com uma
congestão de fígado em perspectiva!.
Angelina ficou desesperada por não ter meios de prevenir o moço e
lá partiu para Caxambu com o coração amargurado.
* * *
Não a lastimem compadecidas leitoras: com 10 dias de Caxambu
Angelina tinha se esquecido completam ente do namorado. Isso não foi devido aos
efeitos das águas, que não
servem para o
coração como servem
para o fígado,
mas à presença de um
rapaz que estava hospedado no mesmo
hotel que a família Seabra e, em correção e elegância, nada ficava a
dever ao outro.
Era um médico do Rio de Janeiro, recentemente formado, moço de
talento e de futuro, que, de mais a mais, tinha fortuna própria.
O Seabra, que estava satisfeito da vida, porque o seu fígado
melhorava a olhos vistos, acolheu com entusiasmo a idéia de um casamento entre
Angelina e o jovem doutor, e era o primeiro a meter-lhe a filha à cara.
Em conclusão, o casamento foi tratado lá mesmo, sob o formoso e
poético céu do sul de Minas, para realizar-se, o mais breve possível, na
Capital Federal.
* * *
Regressando das águas,
onde se demorou
um mês, Angelina
viu passar o primeiro namorado, que olhou para ela com
uma expressão de surpresa e de alegria, mas a moça fechou o semblante. O
semblante e a janela. E, para nunca mais ver passar o importuno, deixou dali em
diante de debruçar-se no peitoril.
* * *
No dia do casamento, os noivos, as famílias dos noivos, as
testemunhas e os convidados lá foram para a pretoria.
- Tenham a bondade de esperar - disse-lhes o escrivão. - O doutor
não tarda aí.
Sentaram-se todos em
silêncio, e pouco
depois o pretor
fazia a sua
entrada solene.
Angelina, ao vê-lo, tornou-se lívida e esteve a ponto de perder os
sentidos. Ele estava atônito e surpreso. Era o primeiro namorado.
O mísero disfarçou como pôde a comoção, e resignou-se ao destino
singular que o escolhia, a ele, para unir a outro à mulher que o seu coração
desejava.
* * *
Quando todos os estranhos se retiraram, ficando na sala da pretoria
apenas o juiz e o escrivão, este
perguntou àquele:
- Que foi isso, doutor? O senhor sofreu qualquer abalo! Não
parecia o mesmo! Que lhe sucedeu?
O moço confiou-lhe tudo.
O escrivão, que era um velhote retrógrado e carola, ponderou:
- Ora, aí está um fato que só se pode dar no casamento civil; no
religioso é impossível.
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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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