Capítulo I
Araújo entrou em casa alegre como passarinho. Atravessou o
corredor cantarolando a Mascote, penetrou na sala de jantar, e atirou para cima
do aparador de vieux-chêne um grande embrulho quadrado; mas, de repente, deixou
de cantarolar e ficou muito sério: a mesa não estava posta! Consultou o
relógio: era cinco e meia.
— Então que é isto? São estas horas e a mesa ainda neste
estado! - Maricas!
Maricas entrou, arrastando lentamente uma elegante bata de
seda.
Araújo deu-lhe o beijo conjugal, que há três anos estalava
todo dia à mesma hora, invariavelmente - e interpelou-a:
— Então, o jantar
— Pois sim, espera por ele!
— Alguma novidade?
— A Josefa tomou um pileque onça, e foi-se embora sem ao
menos deitar as panelas no fogo!
Araújo caiu aniquilado na cadeira de balanço. Já tardava!
A Josefa servia-os há dois meses, e as outras cozinheiras não tinham lá parado
nem oito dias!
— Diabo! dizia ele irritadíssimo; diabo!
E lembrava-se da terrível estopada que o esperava no dia
seguinte: agarrar no Jornal do Comércio, meter-se num tílburi, e subir
cinqüenta escadas à procura de uma cozinheira!
Ainda da última vez tinha sido um verdadeiro inferno! —
Papapá! — Quem bate! — Foi aqui que anunciaram uma cozinheira? — Foi, mas já
está alugada. — Repetiu-se esta cena um ror de vezes!
— Vai a uma agência, aconselhou Maricas.
— Ora muito obrigado! — bem sabes o que temos sofrido com
as tais agências. Não há nada pior.
E enquanto Araújo, muito contrariado, agitava nervosamente
a ponta do pé e dava pequenos estalidos de língua, Maricas abria o embrulho que
ele ao entrar deixara sobre o aparador...
— Oh! como é lindo! exclamou extasiada diante de uma
magnífico chapéu de palha, com muitas fitas e muitas flores. Há de me ficar
muito bem. Decididamente és um homem de gosto!
E, sentando-se no colo de Araújo, agradecia-lhe com beijos
e carícias o inesperado mimo. Ele deixava-se beijar friamente, repetindo
sempre:
— Diabo! diabo!...
— Não te amofines assim por causa de uma cozinheira.
— Dizes isso porque não és tu que vais correr a via sacra
à procura de outra.
— Se queres, irei; não me custa.
— Não! Deus me livre de dar-te essa maçada. Irei eu mesmo.
Ergueram-se ambos. Ele parecia agora mais resignado, e
disse:
— Ora, adeus! Vamos jantar num hotel!
— Apoiado! Em qual há de ser?
— No Daury. É o que está mais perto. Ir agora à cidade
seria uma grande maçada.
— Está dito: vamos ao Daury.
— Vai te vestir
Às oito horas da noite Araújo e Maricas voltaram do Daury
perfeitamente jantados e puseram-se à fresca.
Ela mandou iluminar a sala, e foi para o piano assassinar
miseravelmente a marcha da Aída; ele, deitado num soberbo divã estofado,
saboreando o seu Rondueles, contemplava uma finíssima gravura de Goupil, que
enfeitava a parede fronteira, e lembrava-se do dinheirão que gastara para
mobiliar a ornar aquele bonito chalé da rua do Matoso.
Às dez horas recolheram-se ambos. Largo e suntuoso leito
de jacarandá e pau-rosa, sob um dossel de seda, entre cortinas de rendas,
oferecia-lhes o inefável conchego das suas colchas adamascadas.
À primeira pancada da meia-noite, Araújo ergue-se de um
salto, obedecendo a um movimento instintivo. Vestiu-se, pôs o chapéu, deu um
beijo de despedida em Maricas, que dormia profundamente, e saiu de casa com mil
cuidados para não despertá-la.
A uns cinqüenta passos de distância, dissimulado na
sombra, estava um homem cujo vulto se aproximou à medida que o dono da casa se
afastava...
Quando o som dos passos de Araújo se perdeu de todo no
silêncio e ele desapareceu na escuridão da noite, o outro tirou uma chave do
bolso, abriu a porta do chalé, e entrou...
Na ocasião em que se voltava para fechar a porta, a luz do
lampião fronteiro bateu-lhe em cheio no rosto; se alguém houvesse defronte,
veria no misterioso noctívago um formoso rapaz de vinte anos.
Entretanto, Araújo desceu a rua Matriz e Barros, subiu a
de São Cristóvão, e um quarto de hora depois entrava numa casinha de aparência
pobre.
Capítulo II
Dormiam as crianças, mas dona Ernestina de Araújo ainda
estava acordada.
O esposo deu-lhe o beijo convencional , um beijo
apressado, que tinha uma tradição de quinze anos, e começou a despir-se para
deitar-se. Araújo levava grande parte da vida a mudar de roupa.
— Venho achar-te acordada: isso é novidade!
— É novidade, é. A Jacinta deu-lhe hoje para embebedar-se,
e saiu sem aprontar o jantar. Fiquei em casa sozinha com as crianças.
— Oh, senhor! é sina minha andar atrás de cozinheiras!
— Não te aflijas: eu mesma irei amanhã procurar outra.
— Naturalmente, pois se não fores, nem eu, que não estou
para maçadas!
Depois que o marido se deitou, dona Ernestina,
timidamente:
— E o meu chapéu? perguntou; compraste-o?
— Que chapéu?
— O chapéu que te pedi.
— Ah? já não me lembrava... Daqui a uns dias... Ando muito
arrebentado...
— É que o outro já está tão velho...
— Vai-te arranjando com ele, e tem paciência... Depois,
depois...
— Bom... quando puderes.
E adormeceram.
Logo pela manhã a pobre senhora pôs o seu chapéu velho e
saiu por um lado, enquanto o seu marido saía por outro, ambos à procura de
cozinheira.
Os pequenos ficaram na escola.
Os rendimentos de Araújo davam-lhe para sustentar aquelas
duas casas. Ele almoçava com a mulher e jantava com a amante. Ficava até a
meia-noite em casa desta, e entrava de madrugada no lar doméstico.
A amante vivia num bonito chalé, a família morava numa
velha casinha arruinada e suja. Na casa da mão esquerda havia o luxo, o
conforto, o bem estar; na casa da mão direita reinava a mais severa economia.
Ali os guardanapos eram de linho; aqui os lençóis de algodão. Na rua do Matoso
havia sempre o supérfluo; na rua de São Cristóvão muitas vezes faltava o
necessário.
Araújo prontamente arranjou cozinheira para a rua do
Matoso, e à meia noite encontrou a esposa muito satisfeita:
— Queres saber, Araújo? Dei no vinte! Achei uma excelente
cozinheira!
— Sério?
— Que jantar esplêndido! Há muito tempo não comia tão bem!
Esta não me sai mais de casa.
Pela manhã, a nova cozinheira veio trazer o café para o
patrão, que se achava ainda recolhido, lendo a Gazeta. A senhora estava no
banho; os meninos tinham ido para a escola.
— Eh! eh! meu amo, é vosmecê que é dono da casa?
Araújo levantou os olhos; era a Josefa, a cozinheira que
tinha estado em casa de Maricas!
— Cala-te, diabo! Não digas que me conheces!
— Sim, sinhô.
— Com que então tomaste anteontem um pileque onça e nos
deixaste sem jantar, hein?
— Mentira sé, meu amo; Josefa nunca tomou pileque. Minha
ama foi que me botou pra fora!
— Oras essa! Por que?
— Ela me xingou pro via das compra, e eu ameacei ela de
dizê tudo a vosmecê.
— Tudo, o que?
— A história do estudante que entra em casa à meia-noite
quando vosmecê sai.
— Cala-te! disse vivamente Araújo, ouvindo os passos de
dona Ernestina, que voltava do banho.
O nosso herói prontamente se convenceu que a Josefa lhe
havia dito a verdade. Em poucos dias desembaraçou-se da amante, deu melhor casa
à mulher e aos filhos, começou a jantar em família, e hoje não saí à noite sem
dona Ernestina. Tomou juízo e vergonha.
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Nota:
Texto-fonte:
Artur de Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901
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