Eram sete horas da manhã. Braga
Lopes, sentado numa deliciosa chaise-longue, brunia as unhas e contemplava, pela
janela do gabinete, o Pão de Açúcar, que por um belo efeito de luz parecia de
madrepérola.
Angélica entrou no gabinete, e
bateu de leve no ombro do marido.
— Preciso de quinhentos mil réis.
— Já?
— Já.
Por única resposta, Braga Lopes
apontou para uma carta aberta sobre a secretária de pau-rosa.
Angélica leu: o senhorio reclamava
em termos violentos, não sei quantos meses atrasados do aluguel do prédio
nobre.
A moça encolheu os ombros, saiu
arrebatadamente e mandou atrelar. Fez ligeira, mas elegante toilette de
passeio, e, calçando as luvas de pele da Suécia, recomendou ao engravatado
copeiro que não a esperasse para almoçar.
O marido ouviu rodar o coupé e
chegou à janela. Acompanhou com a vista o trajeto do carro em quase toda a
curva da praia de Botafogo, até que o viu desaparecer na rua Marques de
Abrantes.
— Aonde irá ela arranjar quinhentos
mil réis a esta hora? pensou, e, sentando-se e novo, recomeçou a sua ocupação
predileta - brunir as unhas
Ao entrar no coupé, Angélica dissera
ao boleeiro:
— Vamos à baronesa.
A baronesa ainda estava no leito.
Angélica foi introduzida no dormitório.
— Preciso e quinhentos mil réis.
— Já?
— Já.
— Impossível, minha amiga; o barão
está em Petrópolis.
— Petrópolis em junho!
— Foi a negócio e não a passeio. O
dinheiro está com ele, bem sabes. Sinto não te poder servir nesse momento, como
noutras ocasiões o tenho feito. Não é a primeira
vez que tu...
— Bem... desculpe... adeus,
baronesa.
Angélica a sair e o barão a entrar.
— Oh! madame Braga Lopes! a que
feliz acaso devemos tão matinal visita?
— Não tinha ido para Petrópolis,
barão?
— Petrópolis em junho! Jamais de la
vie! Seria ridículo! Saí muito cedo por necessidade e só contava estar de volta
ao meio dia. Esteve com a baronesa?
— Sim, senhor barão; passe bem.
E Angélica, mordendo os beiços de
raiva, entrou rapidamente no coupé, cuja portinhola o barão abriu pressuroso
com a mão esquerda, enquanto a direita fazia o chapéu descrever uma pequena
reta, muito graciosa, à inglesa. O boleeiro voltou-se para receber as ordens da
patroa.
— Vamos às Guedes.
O barão fechou a portinhola, e o
carro pôs-se em movimento. As Guedes eram três irmãs solteironas. Moravam na
rua do Conde, perto do Catumbi.
Angélica esperou por elas durante
quarenta minutos. Empregou todo esse tempo a passear de um lado para o outro,
muito contrariada por se ver ali, numa rua tão burguesa, naquela velha sala sem
tapeçarias, nem reposteiros, nem bibelôs, fastidiosa com sua esmagadora mobília
de jacarandá e os seus venerandos castiçais de prata, resguardados em
monstruosas mangas de vidro. Numa velhíssima tela, o pai das Guedes, pintado a
óleo, muito sério, inteiramente barbeado, de óculos, o pescoço escondido numa
abundante gravata de cinco voltar, as mangas da casaca muito apertadas, as mãos
a emergirem das rendas dos manguitos, olhava fixamente para Angélica, e parecia
dizer-lhe:
— Que vens aqui fazer? Não arranjas
nada!
Afinal apareceram as Guedes.
Entraram as três ao mesmo tempo, com pequeninos gritos de surpresa alegre,
fazendo um gasto enorme de beijos, abraços, pancadinhas de amor e frases
candongueiras: Mas que milagre é este? Por isso é que o dia está tão bonito!
Vou mandar repicar os sinos!
— Sente-se, dona Angélica.
— Não; a demora é pequena. Vinha
pedir-lhe um grande obséquio. Preciso de quinhentos mil réis.
As Guedes entreolharam-se
estupefatas.
A recusa foi categórica e formal.
Não podiam naquela ocasião dispor nem de quinhentos réis, quanto mais de
quinhentos mil réis. A “pouca vergonha” de 13 de Maio deixara-as quase na
miséria. Se não possuíssem aquela “humilde choupana” e mais dois sobrados na
rua dos Pescadores, estariam reduzidas à miséria. Angélica saiu
despeitadíssima; entretanto, não desanimou. O passivo e solícito cocheiro levou-a
ainda à presença de seis amigas ricas, e todas lhe disseram não! Em toda parte
a mísera encontrava esse monossílabo terrível! Ao meio-dia, humilhada,
indisposta, em jejum, com os nervos excitados por aquela violenta caçada, por
aquele perseguir uma quantia miserável, que lhe fugia das mãos obstinadamente,
a pobre Angélica teve um gesto expressivo e supremo de resolução e coragem.
Alguns minutos depois, o coupé
deixava-a no largo de S. Francisco. Ela tomou a pé a rua do Rosário, atravessou
a da Quitanda, dobrou a da Alfândega, e, sobressaltada, palpitante, com muito medo de que a vissem, entrou precipitadamente num casarão de
dois andares.
No corredor hesitou alguns segundos
antes de subir; mas enchendo-se de ânimo, galgou ligeiramente as escadas até o
segundo andar. Abriram-lhe logo a porta, e ela, trêmula, ofegante, com as mãos
muito frias, sem poder proferir uma palavra, caiu nos braços de um homem, que a
recebeu com um beijo, e lhe disse:
— Estava escrito que mais dia menos
dia a senhora se compadeceria dos meus tormentos...
— O que me trás à sua casa é um
questão de honra; conto com sua discrição e seu cavalheirismo. Preciso de...
Angélica envergonhou-se de se
vender por tão pouco, e quadruplicou a quantia:
— Preciso de dois contos de réis.
— Já?
— Já.
O relógio da Candelária batia duas
horas quando madame Braga Lopes, perfeitamente almoçada, desceu as escadas da
casa da rua da Alfândega. Pode ser que o arrependimento aparecesse mais tarde;
naquele momento ela era toda satisfação e triunfo.
A gentil pecadora entrou radiante
na rua do Ouvidor, e foi ter ao Palais-Royal.
— Ainda aí está? perguntou a um dos
caixeiros da loja com receio de que mais uma vez lhe dissessem não.
— Ainda, e às suas ordens.
— Bom, acrescentou ela, depois de
um prolongado suspiro; aqui estão os quinhentos mil réis. Mande-lo à casa.
— Com efeito! exclamou Braga Lopes
quando Angélica lhe apareceu às três horas. Com efeito! passaste o dia inteiro
na rua!...
— Sim, vê lá se achas que uma mulher,
que só tem brilhantes falsos e jóias de
pechisbeque, possa facilmente arranjar quinhentos mil réis...
— Mas para que precisavas tu desse
dinheiro? perguntou indiferentemente o extraordinário marido.
— Uma questão de honra, meu amigo.
Imagina que me apaixonei por um vestido que vi ontem na vitrine do
Palais-Royak; imagina que a Laurita Lobo queria por força ficar com ele;
imagina que o dono da loja declarou que o entregaria à primeira das duas que
lhe levasse quinhentos mil réis!...
— Ah! bom! assim, sim, obtemperou
Braga Lopes, que recomeçou fleumaticamente a sua ocupação predileta — brunir
unhas.
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Nota:
Texto-fonte: Artur de Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901
Texto-fonte: Artur de Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901
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