— Oh! Secundino!
— Oh! Borges!
— Tu no Rio de Janeiro!
— Há oito dias.
— Vieste a passeio?
— Não, meu amigo; vim tocado pela desgraça.
— Pela desgraça?
— “Desgraça” é talvez forte demais. Pelo caiporismo, se
quiseres.
— E és tão caipora assim?
— Pertenço ao número dos tais que caem de costas e quebram
o nariz!
— Oh, diabo! entremos neste café, e, enquanto tomamos
alguma coisa, conta-me qual tem sido a tua vida nestes doze anos de ausência.
Passava-se isto na rua do Ouvidor, em frente ao Pascoal.
Os dois amigos e comprovincianos entraram no Café do Rio, e sentaram-se a uma
das mesas.
— A minha vida, principiou Secundino, resume-se numa
palavra: miséria. Quando vieste da Vitória e lá me deixaste, eu era ainda, por
bem dizer, uma criança. Vivia em casa de minha família, onde nada me faltava.
Morreu meu pai, morreu minha mãe, minhas irmãs casaram-se, e eu fiz-me sócio de
uma loja de fazendas. Ao fim de seis meses, abriram-me falência. Saí com uma
mão atrás e outra adiante, e fui ser caixeiro de um bruto, um ingrato, que, ao
fim de oito anos, em vez de me dar sociedade, passou a casa a um sujeito meu
desafeto. Desgostoso, abandonei o comércio e quis ser empregado público.
Apresentei-me em quatro concursos, e, apesar de bem classificado, não consegui
que me nomeassem. Fundei uma folha, que acabou logo por falta de assinantes.
Contratei casamento com a filha de um fazendeiro rico de S. Mateus, e a minha
querida noiva, que me estimava muito, morreu um mês antes do dia marcado para o
casamento. Afinal, desesperado, baldo inteiramente de recursos, aceitei um
lugar de contínuo na Tesouraria da Fazenda...
—Tu?! Com as tuas habilitações?!
— É para que vejas, respondeu Secundino com lágrimas na
voz. Mas isso mesmo foi considerado muito para mim. Demitiram-me acintosamente
por não ter votado no candidato oficial nas últimas eleições. Resolvi então vir
para o Rio de Janeiro, ao Deus dará... Arranjei duzentos e tantos mil réis,
vendendo tudo o quanto possuía, e aqui estou sem emprego, sem esperanças, sem
promessa, sem relações, e com sessenta mil réis no bolso. É tudo quanto me
resta da minha fortuna.
— Pois bem , ofereço-te um emprego.
— Deveras.
— Oh! não é coisa para arregalares desse modo os olhos. É
um biscate, que te pode servir enquanto não arranjar coisa melhor.
— Tudo me serve, meu amigo: a minha situação é
desesperadora.
— Pois bem. Conheces a viúva Salgado?
— Não conheço aqui ninguém.
— Tens razão. A viúva Salgado é uma senhora riquíssima.
Tem duas filhas. Quer que elas saibam francês, inglês, e me incumbiu de
contratar um professor que lhe dê lições em casa, duas vezes por semana,
ganhando cento e vinte mil réis
mensais.
— Mas é uma pechincha.
— Não tens que perder tempo. Aqui está um cartão meu para
te apresentares hoje mesmo, agora mesmo, se quiseres, em casa da viúva Salgado.
— Onde é.
— Rua do Catete.
— Número?
— Não sei o número, mas o condutor te indicará a casa. Não
há quem não conheça a viúva Salgado. Olha, toma-se o bonde ali defronte e
para-se mesmo na porta. Sabes onde é o Ministério dos Estrangeiros?
— Não.
— Conheces o Palácio de Nova Friburgo? deves conhecer, que
diabo! já tens oito dias de Rio de Janeiro!
— Conheço.
— Pois é nessas imediações; quase defronte.
— Já sei pouco mais ou menos onde deve ser.
— Pois vais tomar o bonde, e sê feliz.
Daí a dois minutos, Secundino partia para a rua do Catete.
O bonde parou no largo da Carioca.
Uma senhora de meia idade, muito gorda, muito feia, mas
luxuosamente vestida, aproximou-se para entrar no carro. Havia um único lugar
desocupado ao pé de Secundino. Este encolheu-se todo para deixar entrar a
senhora, que só a muito custo conseguiu abrir caminho entre os joelhos do
provinciano e o banco da frente.
Depois de sentada, a senhora gorda encarou o seu vizinho
com um olhar cheio de ódio, e disse bem alto, para que todos ouvissem:
— Com efeito! Sempre há sujeitinhos muito malcriados!
E repetiu, depois de alguns segundos:
— Sujeitinhos muito malcriados!
— Isso é comigo, minha senhora? perguntou Secundino
timidamente.
— Pois com quem há de ser? Se fazia tanto empenho em ficar
na ponta do banco, devia levantar-se um instantinho para deixar-me passar sem
me magoar as pernas nem amarrotar o vestido! Ora vejam como ficou esta saia!
— Minha senhora, quem não quer se sujeitar a estas
contrariedades não anda de bonde: aluga um carro.
— Cale-se! Não seja insolente! Você responde assim por ver
que não tenho um homem a meu lado.
E a senhora gorda percorreu com os olhos todos os
passageiros do bonde, na esperança de que algum tomasse as dores por ela.
— O meu caiporismo! refletiu Secundino. E, enfiado,
apeou-se no largo da Mãe do Bispo.
Veio outro bonde. O provinciano entrou nele, e um quarto e
hora depois, subia a escada da viúva Salgado.
Calcou o botão de uma campainha elétrica, Veio um copeiro
encasacado. Secundino entregou o cartão do seu amigo Borges, e esperou.
Daí a cinco minutos abriram-lhe a porta da sala, uma sala
opulenta, atapetada com luxo, mobiliada suntuosamente, cheia de quadros e
quinquilharias.
Esperou meia hora. Rasgou-se afinal, um reposteiro de
seda, e apareceu a dona da casa.
A viúva, mal encarou Secundino, gritou, cheia de surpresa
e de cólera:
— Pois é você, seu malcriado?! E eu que supunha ser o
senhor Borges! Ponha-se já, já no olho da rua! Já!...
Secundino reconheceu na viúva Salgado a senhora gorda do
bonde. Saiu da sala precipitadamente e desceu a escada aos pulos. Só respirou
na rua.
Foi realmente, muito caiporismo!
---Nota:
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Texto-fonte:
Artur de Azevedo: “Contos Fora de Moda”, de 1901
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