domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Barca"


"BARCA" 


Há   maridos   e   mulheres,   dizem   as   más   línguas,   que   passam   o   verão   em Petrópolis para fazer das suas à vontade. Não sei se é isso exato quanto às mulheres; quanto aos maridos, tenho certeza de que o é.

D.   Senhorinha,   esposa   exemplar,   exemplaríssima,   era   casada   com   um negociante rico, o João Saraiva, que todos os anos, em fins de novembro, dava com ela em Petrópolis até abril, sob pretexto de que a cidade do Rio de Janeiro se tornava inabitável durante a canícula.

O que ele queria era estar como o boi solto que, segundo o rifão, se lambe todo. Havia   na   Rua   do   Riachuelo   uma   francesa   que   lhe   dava   volta   ao   miolo   e constantemente o obrigava a perder a barca.

Nessas  ocasiões,  D.  Senhorinha  recebia  sempre um telegrama,  e acreditava, coitada, porque tinha a mais cega confiança no marido, e sabia que ele era muito ocupado. Por fim, João Saraiva tantas e tão repetidas vezes perdia a barca, por este  ou   aquele   motivo,   que   marido   e   mulher  resolveram   adotar   uma   palavra convencional para cada vez que isso acontecesse. Adotaram a palavra "barca".

* * *

Uma vez, D. Senhorinha, ali por volta das 2 horas da tarde, bocejava na sua solidão petropolitana, quando lhe levaram um telegrama.

Ela  abriu-o um pouco  sobressaltada, pois  o marido não  costumava telegrafar àquela   hora,   e   qual   não   foi   a   sua   surpresa   vendo   que   o   telegrama   dizia simplesmente: "Barca".

- Não pode ser! pensou D. Senhorinha. A barca sai da Prainha às 4 horas e são apenas 2!  Com duas horas de antecedência meu marido não podia adivinhar que perderia a barca! Aqui há coisa.

* * *

Naquele dia o marido não apareceu em Petrópolis, e no dia imediato, quando a senhora   lhe   pediu   uma   explicação,   ele   não   se   atreveu   a   dizer-lhe   que   o progresso agora era tal que os telegramas chegavam ao seu destino antes de mandados, ou que houvesse duas horas de diferença entre o meridiano do Rio de Janeiro e o de Petrópolis.

João Saraiva deu a D. Senhorinha uma razão esfarrapada, que ela fingiu aceitar, e na manhã seguinte entrou furioso no escritório, dirigindo-se imediatamente a um dos empregados.

- Ó seu Barros, a que horas você passou anteontem aquele telegrama?

- Logo que o senhor m'o deu.

- Fê-la bonita!  Pode limpar a mão à parede!  Pois eu não lhe disse que só o passasse depois das 4 horas?

- Disse, disse; mas como tive que ir lá para os lados do Telégrafo, julguei que não houvesse inconveniente.

-   Ora   valha-o   Deus,   seu   Barros!   Você   deu   cabo   da   minha   tranqüilidade doméstica.

* * *

D. Senhorinha desceu imediatamente de Petrópolis e nunca mais quis saber de vilegiaturas, receando que o marido continuasse a perder a barca.


---
"BARCA"



Há   maridos   e   mulheres,   dizem   as   más   línguas,   que   passam   o   verão   em Petrópolis para fazer das suas à vontade. Não sei se é isso exato quanto às mulheres; quanto aos maridos, tenho certeza de que o é.

D.   Senhorinha,   esposa   exemplar,   exemplaríssima,   era   casada   com   um negociante rico, o João Saraiva, que todos os anos, em fins de novembro, dava com ela em Petrópolis até abril, sob pretexto de que a cidade do Rio de Janeiro se tornava inabitável durante a canícula.

O que ele queria era estar como o boi solto que, segundo o rifão, se lambe todo. Havia   na   Rua   do   Riachuelo   uma   francesa   que   lhe   dava   volta   ao   miolo   e constantemente o obrigava a perder a barca.

Nessas  ocasiões,  D.  Senhorinha  recebia  sempre um telegrama,  e acreditava, coitada, porque tinha a mais cega confiança no marido, e sabia que ele era muito ocupado. Por fim, João Saraiva tantas e tão repetidas vezes perdia a barca, por este  ou   aquele   motivo,   que   marido   e   mulher  resolveram   adotar   uma   palavra convencional para cada vez que isso acontecesse. Adotaram a palavra "barca".

* * *

Uma vez, D. Senhorinha, ali por volta das 2 horas da tarde, bocejava na sua solidão petropolitana, quando lhe levaram um telegrama.

Ela  abriu-o um pouco  sobressaltada, pois  o marido não  costumava telegrafar àquela   hora,   e   qual   não   foi   a   sua   surpresa   vendo   que   o   telegrama   dizia simplesmente: "Barca".

- Não pode ser! pensou D. Senhorinha. A barca sai da Prainha às 4 horas e são apenas 2!  Com duas horas de antecedência meu marido não podia adivinhar que perderia a barca! Aqui há coisa.

* * *

Naquele dia o marido não apareceu em Petrópolis, e no dia imediato, quando a senhora   lhe   pediu   uma   explicação,   ele   não   se   atreveu   a   dizer-lhe   que   o progresso agora era tal que os telegramas chegavam ao seu destino antes de mandados, ou que houvesse duas horas de diferença entre o meridiano do Rio de Janeiro e o de Petrópolis.

João Saraiva deu a D. Senhorinha uma razão esfarrapada, que ela fingiu aceitar, e na manhã seguinte entrou furioso no escritório, dirigindo-se imediatamente a um dos empregados.

- Ó seu Barros, a que horas você passou anteontem aquele telegrama?

- Logo que o senhor m'o deu.

- Fê-la bonita!  Pode limpar a mão à parede!  Pois eu não lhe disse que só o passasse depois das 4 horas?

- Disse, disse; mas como tive que ir lá para os lados do Telégrafo, julguei que não houvesse inconveniente.

-   Ora   valha-o   Deus,   seu   Barros!   Você   deu   cabo   da   minha   tranqüilidade doméstica.

* * *

D. Senhorinha desceu imediatamente de Petrópolis e nunca mais quis saber de vilegiaturas, receando que o marido continuasse a perder a barca.

Nenhum comentário:

Postar um comentário