domingo, 31 de março de 2013

Artur de Azevedo: "Cavação"


CAVAÇÃO 


Naquela  manhã o Saldanha  estava desesperado:  não havia  quinze  dias  que lhe entrara na algibeira,   inesperadamente,   uma   bela   nota   de  quinhentos  mil-réis,   e   já   não  lhe   restava   um níquel  desse dinheiro!

É  verdade que ele passou uma semana de patuscadas, uma semana cheia! A inesperada fortuna coincidira com o aniversário natalício de um dos pequenos, o Nhô-nhô, e tinha havido peru de forno e até champanhe à mesa! Que diabo, um dia não são dias!

O semi-conto   de   réis   voou,   sem   que   o   imprevidente   Saldanha   empregasse   dez   tostões   em qualquer coisa útil. A conta da venda - uma conta de cabelos brancos - ficou por pagar, não se comprou um trapinho para as crianças, tão precisadas de roupa!

O dinheiro viera das mãos de certo negociante da rua da Alfândega, que encomendara ao Saldanha  uma série de artigos metendo à bulha uma companhia em liquidação, isto é, os respectivos  liquidantes.  O nosso homem, que tinha dedo para essa espécie de literatura, fez obra asseada: as descomposturas produziram o desejado efeito. O prosador contava com cem mil-réis. recebeu quinhentos.

Foi um delírio! O Saldanha subiu radiante a rua do Ouvidor, com cócegas de comprar tudo quanto via exposto nos mostradores das lojas. Parou durante cinco minutos diante de um gramofone. – Que surpresa seria para a pequenada! - Mas resistiu e passou. Foi esse o único movimento bom que teve depois de endinheirado.

E assim vivia o pobre-diabo, desde que, por negligente e ocioso, perdera   sucessivamente   dezenove   empregos   e   desesperara   de   obter   o   vigésimo.   Era   um boêmio   incorrigível,   um   desgraçado,   que  chegara   aos   trinta   e  oito   anos   sem   uma   onça   de juízo.

Um   dia   em   que   lhe   pareceu,   e   pareceu   a   todos,   que   estava   definitiva   e   solidamente arrumado num cartório de tabelião, o Saldanha casou-se com uma pobre moça a quem fazia versos, e não de pé quebrado, porque para esse outro gênero de literatura também não lhe faltavam aptidões.

Tanto assim que, durante muito tempo, viveu quase exclusivamente dos seus Gemidos   sonoros,   coleção   de   poesias,   cujos   dois   mil   exemplares   passou   um   a   um   pelos parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos, dizendo sempre que fazia aquilo apenas para pagar   as   despesas   de   impressão,   pois   não   mercadejava   a   sua   musa.

Depois   de   esgotada completamente a edição, o Saldanha, freqüentador assíduo de todas as lojas de alfarrábios, comprava por baixo preço quantos exemplares, e não eram poucos, apareciam, e vendia-os no bairro comercial, aos negociantes dinheirosos.

O expediente dava o melhor resultado, porque o poeta, frenólogo intuitivo, conhecia pela cara, ou, segundo a sua própria expressão, "pela pinta", esses mecenas fortuitos, e, além disso, aprendera de cor uma infinidade de lábias para impingir o volume. Ou por esses motivos, ou porque as pessoas a quem se dirigia quisessem se ver livres de um importuno, a colheita era certa.

Note-se que ninguém duvidava da identidade do poeta, porque o seu retrato lá estava, litografado pelo A. de Pinho, e parecidíssimo, na primeira página dos  Gemidos sonoros.

Entretanto, esse ardiloso manejo era como o enlevo d'alma da linda Ignês: não podia durar muito. Os volumes, à força de viajar dos primitivos donos para os alfarrabistas,   dos   alfarrabistas   para   o  Saldanha,   do   Saldanha  para   os   protetores   das   letras nacionais, e destes outra vez para os alfarrabistas, ficaram tão ensebados ("fatigados", como se diz em linguagem bibliográfica), que já não havia meio de lhes dar saída.

Por isso, a mais séria, a  mais  firme  preocupação  do  industrioso Saldanha  era que  uma   nova  edição dos  Gemidos fizesse gemer os prelos. Por conta dele, já se sabe, porque não havia editor que se arrojasse à empresa. E essa preocupação de tal modo absorvia, que ele absolutamente não pensava noutra coisa   e   vivia   de   expedientes.

Como   já   ficou   dito,   naquela   manhã   o   Saldanha   estava desesperado. Durante os três últimos dias, ele, a mulher e os quatro filhos tinham-se alimentado com as derradeiras cinco patacas, melancólicos vestígios dos quinhentos mil-réis. O homem da venda já lhe não fiava mais nada. A cozinheira abandonara-os.

O autor dos  Gemidos sonoros saiu de casa sem um vintém, dizendo: - Vou cavar! - e baixou à cidade a pé. Morava lá para os lados  de  Estácio  de   Sá.

Parecia   uma  fatalidade!  Todas   as  bolsas  a  que  recorreu  encontrou implacavelmente fechadas. Já tantas vezes tinham servido.

Não teve coragem de pedir cinco mil-réis ao negociante que dias antes remunerara com tanta liberalidade a sua prosa agressiva. Chegou a penetrar no escritório do capitalista, mas limitou-se a comer-lhe o almoço - e comeu-o com remorsos, porque tinha deixado em casa a prole a fazer cruzes na boca.

Sem ser bom pai, pois ninguém pode ser bom pai sem ter juízo, o Saldanha era meigo e carinhoso para os filhos. Pudesse ele e comeriam todos em pratos de ouro. Em se apanhando com dinheiro, corria logo para casa, embora pelo caminho fosse esbanjando algum em companhia dos gaudérios que topava.

Depois do almoço, abundantemente regado por um magnífico   virgem   "vindo   diretamente",   o   Saldanha   atirou-se   de   novo   ao   terrível   trabalho   de "cavação". Passaram-se duas, passaram-se três horas, e nada, nada, nada! E os pequenos sem comer!

Ás três e meia, com o cérebro ainda escaldado pelo vinho do almoço, derreado por um calor sufocante, suando por todos os poros, o boêmio sentou-se extenuado nos degraus do chafariz do Largo do Paço, e aí, pela primeira vez na sua vida errante, atravessou-lhe o espírito a idéia nítida da dolorosa situação em que se achava. A miséria apresentou-se diante dos seus olhos com um aspecto até aquele momento estranho à sua percepção moral, e a lembrança do seu inútil passado o oprimiu tanto que as lágrimas lhe saltaram aos olhos.

Passavam, na direção das barcas de Niterói, muitos homens apressados, e o Saldanha notando que raro era aquele que não levava um embrulho enfiado no dedo. 

-   É   para   os   filhos,   pensava;   são   homens   que   trabalham,   que   têm   como   eu   poderia   ter,   o ordenado certo no fim do mês... Não são ociosos nem boêmios, como eu...

Idéias negras acudiram-lhe em tropel ao cérebro avinhado, produzindo febre. As horas correram sem que ele desse fé, subjugado como estava pelo sofrimento. Numa espécie de delírio, ouvia apenas   rumor   -   o   choro   dos   filhos.

Quando   saiu   desse   torpor,   caia   a   tarde.   O   lusco-fusco
envolvia o mar e os lados da Tijuca estavam coloridos por um crepúsculo de fogo.

As pernas trôpegas, a cabeça pesada, a língua seca, o Saldanha levantou-se com a firme resolução de tomar uma barca e, chegando ao meio da baia, atirar-se ao mar. 

- É o melhor que tenho a fazer; a minha gente achará quem a ampare melhor do que eu. Os órfãos mais infelizes são os que têm pai...

Depois dessa reflexão filosófica, ele encaminhou-se para a estação das barcas, e só então se lembrou de que não tinha dinheiro para a passagem; avistou, porém, um sujeito que levava á mesma direção, e dizendo consigo: 'vou cavar pela última vez", dirigiu-se ao transeunte com toda a resolução:

- O cavalheiro dispõe de trezentos réis? Não tenho dinheiro comigo, estou doente, e seria para mim um grande transtorno perder esta barca.

O outro mediu-o de alto  a baixo, fez uma careta, introduziu dois dedos no bolso do colete, hesitou, arrependeu-se, enfiou a mão na algibeira do casaco, tirou um caderninho de cupons de passagens, destacou um deles, e deu-o ao Saldanha, com uma expressão no rosto em que se lia perfeitamente o seguinte: "A mim não me enganas tu; com este pedacinho de papel não irás beber.

"O boêmio agradeceu, sorrindo tristemente à idéia de que o tal pedacinho de papel era o seupassaporte   para   a   eternidade.

O   sujeito   seguiu   o   seu   caminho,   e   ele   ia   seguir   também quando viu no chão outro pedaço de papel, de maiores dimensões, dobrado em quatro, que lhe pareceu - oh, fortuna - uma nota de banco.

Apanhou-o. Era, efetivamente, uma nota de cem mil-réis. 

Trêmulo,   nervoso,   abriu  a nota,  percorreu-a  no   verso  e no   reverso,   e, desconfiado   de  uma alucinação   dos   sentidos,   examinou-a   à   luz   de   um   lampião   aceso   naquele   instante.

Depois, meteu-a no bolso, e "tocou á toda" para a rua do Ouvidor, lépido, contente, como se momentos antes não se houvesse representado um drama dentro de sua alma.

Entrou no Café do Rio, onde ofereceu cerveja a alguns amigos depois, na Confeitaria Pascoal, arranjou um opulento farnel de comes e bebes: frangos assados, empadinhas, doces, vinho do Porto, etc.

Tomou um tílburi no Largo de são Francisco, e ao chegar perto de casa, ainda na rua, gritou como um possesso:

- Terezinha!  Cota!  Chiquinha!  Nhô-nhô!  Eduardinho!  aqui estou eu, aqui esta papai com um banquete opíparo! Toca a música!

Foi um alvoroço em casa. Era de ver toda aquela criançada a com os olhos ainda vermelhos de tanto chorar.

O Saldanha abriu o embrulho na sala de jantar e, com um ar vitorioso, espalhou a comezaina sobre a mesa.

- Mas dize-me: como foi que tu... - ia perguntar a esposa.

- Come! come!, interrompeu o marido; come, depois te contarei. Dá cá dali o saca-rolhas!

E desarrolhando com um estouro alegre a garrafa de vinho do Porto:

- Ah, Terezinha! decididamente sou a criatura mais feliz que o céu cobre!

E durante três dias o Saldanha não "cavou".


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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada

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