CAVAÇÃO
Naquela manhã o
Saldanha estava desesperado: não havia
quinze dias que lhe entrara na algibeira, inesperadamente, uma
bela nota de
quinhentos mil-réis, e
já não lhe
restava um níquel desse dinheiro!
É verdade que ele passou
uma semana de patuscadas, uma semana cheia! A inesperada fortuna coincidira com
o aniversário natalício de um dos pequenos, o Nhô-nhô, e tinha havido peru de
forno e até champanhe à mesa! Que diabo, um dia não são dias!
O semi-conto de réis
voou, sem que
o imprevidente Saldanha
empregasse dez tostões
em qualquer coisa útil. A conta da venda - uma conta de cabelos brancos
- ficou por pagar, não se comprou um trapinho para as crianças, tão precisadas
de roupa!
O dinheiro viera das mãos de certo negociante da rua da Alfândega,
que encomendara ao Saldanha uma série de
artigos metendo à bulha uma companhia em liquidação, isto é, os
respectivos liquidantes. O nosso homem, que tinha dedo para essa
espécie de literatura, fez obra asseada: as descomposturas produziram o
desejado efeito. O prosador contava com cem mil-réis. recebeu quinhentos.
Foi um delírio! O Saldanha subiu radiante a rua do Ouvidor, com
cócegas de comprar tudo quanto via exposto nos mostradores das lojas. Parou
durante cinco minutos diante de um gramofone. – Que surpresa seria para a
pequenada! - Mas resistiu e passou. Foi esse o único movimento bom que teve
depois de endinheirado.
E assim vivia o pobre-diabo, desde que, por negligente e ocioso, perdera sucessivamente dezenove
empregos e desesperara
de obter o
vigésimo. Era um boêmio
incorrigível, um desgraçado,
que chegara aos
trinta e oito
anos sem uma
onça de juízo.
Um dia em
que lhe pareceu,
e pareceu a
todos, que estava
definitiva e solidamente arrumado num cartório de
tabelião, o Saldanha casou-se com uma pobre moça a quem fazia versos, e não de
pé quebrado, porque para esse outro gênero de literatura também não lhe faltavam
aptidões.
Tanto assim que, durante muito tempo, viveu quase exclusivamente
dos seus Gemidos sonoros, coleção de
poesias, cujos dois
mil exemplares passou
um a um
pelos parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos, dizendo sempre que
fazia aquilo apenas para pagar as despesas
de impressão, pois
não mercadejava a
sua musa.
Depois de esgotada completamente a edição, o Saldanha,
freqüentador assíduo de todas as lojas de alfarrábios, comprava por baixo preço
quantos exemplares, e não eram poucos, apareciam, e vendia-os no bairro
comercial, aos negociantes dinheirosos.
O expediente dava o melhor resultado, porque o poeta, frenólogo
intuitivo, conhecia pela cara, ou, segundo a sua própria expressão, "pela
pinta", esses mecenas fortuitos, e, além disso, aprendera de cor uma
infinidade de lábias para impingir o volume. Ou por esses motivos, ou porque as
pessoas a quem se dirigia quisessem se ver livres de um importuno, a colheita
era certa.
Note-se que ninguém duvidava da identidade do poeta, porque o seu
retrato lá estava, litografado pelo A. de Pinho, e parecidíssimo, na primeira página
dos Gemidos sonoros.
Entretanto, esse ardiloso manejo era como o enlevo d'alma da linda
Ignês: não podia durar muito. Os volumes, à força de viajar dos primitivos
donos para os alfarrabistas, dos alfarrabistas para
o Saldanha, do Saldanha
para os protetores
das letras nacionais, e destes
outra vez para os alfarrabistas, ficaram tão ensebados ("fatigados",
como se diz em linguagem bibliográfica), que já não havia meio de lhes dar
saída.
Por isso, a mais séria, a
mais firme preocupação
do industrioso Saldanha era que
uma nova edição dos
Gemidos fizesse gemer os prelos. Por conta dele, já se sabe,
porque não havia editor que se arrojasse à empresa. E essa preocupação de tal
modo absorvia, que ele absolutamente não pensava noutra coisa e
vivia de expedientes.
Como já ficou
dito, naquela manhã
o Saldanha estava desesperado. Durante os três últimos
dias, ele, a mulher e os quatro filhos tinham-se alimentado com as derradeiras
cinco patacas, melancólicos vestígios dos quinhentos mil-réis. O homem da venda
já lhe não fiava mais nada. A cozinheira abandonara-os.
O autor dos Gemidos
sonoros saiu de casa sem um vintém, dizendo: - Vou cavar! - e baixou à
cidade a pé. Morava lá para os lados
de Estácio de
Sá.
Parecia uma fatalidade!
Todas as bolsas
a que recorreu
encontrou implacavelmente fechadas. Já tantas vezes tinham servido.
Não teve coragem de pedir cinco mil-réis ao negociante que dias
antes remunerara com tanta liberalidade a sua prosa agressiva. Chegou a
penetrar no escritório do capitalista, mas limitou-se a comer-lhe o almoço - e
comeu-o com remorsos, porque tinha deixado em casa a prole a fazer cruzes na
boca.
Sem ser bom pai, pois ninguém pode ser bom pai sem ter juízo, o
Saldanha era meigo e carinhoso para os filhos. Pudesse ele e comeriam todos em
pratos de ouro. Em se apanhando com dinheiro, corria logo para casa, embora
pelo caminho fosse esbanjando algum em companhia dos gaudérios que topava.
Depois do almoço, abundantemente regado por um magnífico virgem
"vindo
diretamente", o Saldanha
atirou-se de novo
ao terrível trabalho
de "cavação". Passaram-se duas, passaram-se três horas, e
nada, nada, nada! E os pequenos sem comer!
Ás três e meia, com o cérebro ainda escaldado pelo vinho do almoço, derreado por um calor sufocante, suando por todos os poros, o boêmio sentou-se extenuado nos degraus do chafariz do Largo do Paço, e aí, pela primeira vez na sua vida errante, atravessou-lhe o espírito a idéia nítida da dolorosa situação em que se achava. A miséria apresentou-se diante dos seus olhos com um aspecto até aquele momento estranho à sua percepção moral, e a lembrança do seu inútil passado o oprimiu tanto que as lágrimas lhe saltaram aos olhos.
Ás três e meia, com o cérebro ainda escaldado pelo vinho do almoço, derreado por um calor sufocante, suando por todos os poros, o boêmio sentou-se extenuado nos degraus do chafariz do Largo do Paço, e aí, pela primeira vez na sua vida errante, atravessou-lhe o espírito a idéia nítida da dolorosa situação em que se achava. A miséria apresentou-se diante dos seus olhos com um aspecto até aquele momento estranho à sua percepção moral, e a lembrança do seu inútil passado o oprimiu tanto que as lágrimas lhe saltaram aos olhos.
Passavam, na direção das barcas de Niterói, muitos homens
apressados, e o Saldanha notando que raro era aquele que não levava um embrulho
enfiado no dedo.
- É para
os filhos, pensava;
são homens que
trabalham, que têm
como eu poderia
ter, o ordenado certo no fim do
mês... Não são ociosos nem boêmios, como eu...
Idéias negras acudiram-lhe em tropel ao cérebro avinhado,
produzindo febre. As horas correram sem que ele desse fé, subjugado como estava
pelo sofrimento. Numa espécie de delírio, ouvia apenas rumor
- o choro
dos filhos.
Quando saiu desse
torpor, caia a
tarde. O lusco-fusco
envolvia o mar e os lados da Tijuca estavam coloridos por um
crepúsculo de fogo.
As pernas trôpegas, a cabeça pesada, a língua seca, o Saldanha
levantou-se com a firme resolução de tomar uma barca e, chegando ao meio da
baia, atirar-se ao mar.
- É o melhor que tenho a fazer; a minha gente achará quem a ampare
melhor do que eu. Os órfãos mais infelizes são os que têm pai...
Depois dessa reflexão filosófica, ele encaminhou-se para a estação
das barcas, e só então se lembrou de que não tinha dinheiro para a passagem;
avistou, porém, um sujeito que levava á mesma direção, e dizendo consigo: 'vou
cavar pela última vez", dirigiu-se ao transeunte com toda a resolução:
- O cavalheiro dispõe de trezentos réis? Não tenho dinheiro
comigo, estou doente, e seria para mim um grande transtorno perder esta barca.
O outro mediu-o de alto a
baixo, fez uma careta, introduziu dois dedos no bolso do colete, hesitou,
arrependeu-se, enfiou a mão na algibeira do casaco, tirou um caderninho de
cupons de passagens, destacou um deles, e deu-o ao Saldanha, com uma expressão
no rosto em que se lia perfeitamente o seguinte: "A mim não me enganas tu;
com este pedacinho de papel não irás beber.
"O boêmio agradeceu, sorrindo tristemente à idéia de que o
tal pedacinho de papel era o seupassaporte
para a eternidade.
O sujeito seguiu
o seu caminho,
e ele ia
seguir também quando viu no chão
outro pedaço de papel, de maiores dimensões, dobrado em quatro, que lhe pareceu
- oh, fortuna - uma nota de banco.
Apanhou-o. Era, efetivamente, uma nota de cem mil-réis.
Trêmulo, nervoso, abriu
a nota, percorreu-a no
verso e no reverso,
e, desconfiado de uma alucinação dos
sentidos, examinou-a à
luz de um
lampião aceso naquele
instante.
Depois, meteu-a no bolso, e "tocou á toda" para a rua do
Ouvidor, lépido, contente, como se momentos antes não se houvesse representado
um drama dentro de sua alma.
Entrou no Café do Rio, onde ofereceu cerveja a alguns amigos
depois, na Confeitaria Pascoal, arranjou um opulento farnel de comes e bebes:
frangos assados, empadinhas, doces, vinho do Porto, etc.
Tomou um tílburi no Largo de são Francisco, e ao chegar perto de
casa, ainda na rua, gritou como um possesso:
- Terezinha! Cota! Chiquinha!
Nhô-nhô! Eduardinho! aqui estou eu, aqui esta papai com um banquete
opíparo! Toca a música!
Foi um alvoroço em casa. Era de ver toda aquela criançada a com os
olhos ainda vermelhos de tanto chorar.
O Saldanha abriu o embrulho na sala de jantar e, com um ar
vitorioso, espalhou a comezaina sobre a mesa.
- Mas dize-me: como foi que tu... - ia perguntar a esposa.
- Come! come!, interrompeu o marido; come, depois te contarei. Dá
cá dali o saca-rolhas!
E desarrolhando com um estouro alegre a garrafa de vinho do Porto:
- Ah, Terezinha! decididamente sou a criatura mais feliz que o céu
cobre!
E durante três dias o Saldanha não "cavou".
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Nota:
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
Texto-fonte: Arthur Azevedo: Contos Diversos. Data não identificada
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