
VIRGINIUS
CAPÍTULO PRIMEIRO
(NARRATIVA
DE UM ADVOGADO)
Não me
correu tranqüilo o S. João de 185...
Duas
semanas antes do dia em que a Igreja celebra o evangelista, recebi pelo correio o seguinte bilhete, sem
assinatura e de letra desconhecida:
O Dr. ***
é convidado a ir à vila de... tomar conta de um processo. O objeto é digno do
talento e das habilitações do advogado. Despesas e honorários ser-lhe-ão satisfeitos
antecipadamente, mal puser pé no estribo. O réu está na cadeia da mesma vila e
chama-se Julião. Note que o Dr. é
convidado a ir defender o réu.
Li e reli
este bilhete; voltei-o em todos os sentidos; comparei a letra com todas as
letras dos meus amigos e conhecidos... Nada pude descobrir.
Entretanto,
picava-me a curiosidade. Luzia-me um romance através daquele misterioso e anônimo bilhete. Tomei
uma resolução definitiva. Ultimei uns
negócios, dei de mão outros, e oito dias depois de receber o bilhete tinha à
porta um cavalo e um camarada para seguir viagem. No momento em que me dispunha a sair, entrou-me
em casa um sujeito desconhecido, e entregou-me
um rolo de papel contendo uma avultada soma, importância aproximada das
despesas e dos honorários. Recusei apesar das instâncias, montei a cavalo e
parti.
Só depois
de ter feito algumas léguas é que me lembrei de que justamente na vila a que eu
ia morava um amigo meu, antigo companheiro da academia, que se votara, oito anos antes, ao
culto da deusa Ceres como se diz em
linguagem poética.
Poucos
dias depois apeava eu à porta do referido amigo. Depois de entregar o cavalo aos cuidados do camarada,
entrei para abraçar o meu antigo
companheiro de estudos, que me recebeu alvoroçado e admirado.
Depois da
primeira expansão, apresentou-me ele à sua família, composta de mulher e uma
filhinha, esta retrato daquela, e aquela retrato dos anjos.
Quanto ao
fim da minha viagem, só lho expliquei depois que me levou para a sala mais
quente da casa, onde foi ter comigo uma chávena de excelente café. O tempo
estava frio; lembro que estávamos em junho. Envolvi-me no meu capote, e a cada gota de café que tomava
fazia uma revelação.
— A que
vens? a que vens? perguntava-me ele.
— Vais
sabê-lo. Creio que há um romance para deslindar. Há quinze dias recebi no meu escritório, na corte, um bilhete
anônimo em que se me convidava com
instância a vir a esta vila para tomar conta de uma defesa. Não pude conhecer a letra; era desigual e
trêmula, como escrita por mão cansada...
— Tens o
bilhete contigo?
— Tenho.
Tirei do
bolso o misterioso bilhete e entreguei-o aberto ao meu amigo. Ele, depois de lê-lo, disse:
— É a
letra de Pai de todos.
— Quem é Pai de todos?
— É um
fazendeiro destas paragens, o velho Pio. O povo dá-lhe o nome de Pai de todos, porque o velho Pio o é na verdade.
— Bem
dizia eu que há romance no fundo!... Que faz esse velho para que lhe dêem
semelhante título?
— Pouca
coisa. Pio é, por assim dizer, a justiça e a caridade fundidas em uma só
pessoa. Só as grandes causas vão ter às autoridades judiciárias, policiais ou municipais; mas tudo o que não
sai de certa ordem é decidido na fazenda de Pio, cuja sentença todos acatam e
cumprem. Seja ela contra Pedro ou contra
Paulo, Paulo e Pedro submetem-se, como se fora uma decisão divina. Quando dois contendores saem
da fazenda de Pio, saem amigos. É caso de consciência aderir ao julgamento de Pai de todos.
— Isso é
como juiz. O que é ele como homem caridoso?
— A
fazenda de Pio é o asilo dos órfãos e dos pobres. Ali se encontra o que é necessário à vida: leite e instrução às
crianças, pão e sossego aos adultos.
Muitos lavradores nestas seis léguas cresceram e tiveram princípio de vida na
fazenda de Pio. É a um tempo Salomão e S. Vicente de Paulo.
Engoli a
última gota de café, e fitei no meu amigo olhos incrédulos.
— Isto é
verdade? perguntei.
— Pois
duvidas?
— É que me
dói sair tantas léguas da Corte, onde esta história encontraria incrédulos, para vir achar neste recanto do
mundo aquilo que devia ser comum em toda a parte.
— Põe de
parte essas reflexões filosóficas. Pio não é um mito: é uma criatura de carne e
osso; vive como vivemos; tem dois olhos, como tu e
eu...
— Então
esta carta é dele?
— A letra
é.
— A
fazenda fica perto?
O meu
amigo levou-me à janela.
— Fica
daqui a um quarto de légua, disse. Olha, é por detrás daquele morro.
Nisto
passava por baixo da janela um preto montado em uma mula, sobre cujas ancas saltavam duas canastras. O meu
amigo debruçou-se e perguntou ao negro:
— Teu
senhor está em casa?
— Está,
sim, Sr.; mas vai sair.
O negro
foi caminho, e nós saímos da janela.
— É
escravo de Pio?
— Escravo
é o nome que se dá; mas Pio não tem escravos, tem amigos. Olham-no todos como se fora um Deus. É que em
parte alguma houve nunca mais brando e cordial tratamento a homens
escravizados. Nenhum dos instrumentos de
ignomínia que por aí se aplicam para corrigi-los existem na fazenda de Pio. Culpa capital
ninguém comete entre os negros da fazenda; a alguma falta venial que haja, Pio
aplica apenas uma repreensão tão cordial
e tão amiga, que acaba por fazer chorar o delinqüente. Ouve mais: Pio estabeleceu entre
os seus escravos uma espécie de concurso que permite a um certo número
libertar-se todos os anos. Acreditarás tu que lhes é indiferente viver livres
ou escravos na fazenda, e que esse estímulo não decide nenhum deles, sendo que,
por natural impulso, todos se portam dignos de elogios?
O meu
amigo continuou a desfiar as virtudes do fazendeiro. Meu espírito apreendia-se cada vez mais de que eu ia entrar
em um romance. Finalmente o meu amigo dispunha-se a contar-me a história do
crime em cujo conhecimento devia eu entrar daí a poucas horas. Detive-o.
— Não,
disse-lhe, deixa-me saber de tudo por boca do próprio réu. Depois compararei com o que me contarás.
— É
melhor. Julião é inocente...
—
Inocente?
— Quase.
Minha
curiosidade estava excitada ao último ponto. Os autos não me tinham tirado o
gosto pelas novelas, e eu achava-me feliz por encontrar no meio da prosa judiciária, de que andava
cercado, um assunto digno da
pena de um
escritor.
— Onde é a
cadeia? perguntei.
— É perto,
respondeu-me; mas agora é quase noite; melhor é que descanses; amanhã é tempo.
Atendi a
este conselho. Entrou nova porção de café. Tomamo-lo entre recordações do
passado, que muitas eram. Juntos vimos florescer as primeiras ilusões, e juntos
vimos dissiparem-se as últimas. Havia de que encher, não uma, mas cem noites.
Aquela passou-se rápida, e mais ainda depois
que a família toda veio tomar parte em nossa íntima confabulação. Por uma exceção, de que fui causa, a hora de
recolher foi a meia-noite.
— Como é
doce ter um amigo! dizia eu pensando no Conde de Maistre, e retirando-me para o quarto que me foi
destinado.
CAPÍTULO II
No dia
seguinte, ainda vinha rompendo a manhã, já eu me achava de pé. Entrou no meu quarto um escravo com um grande
copo de leite tirado minutos antes. Em poucos goles o devorei. Perguntei pelo
amigo; disse-me o escravo que já se
achava de pé. Mandei-o chamar.
— Será
cedo para ir à cadeia? perguntei mal o vi assomar à porta do quarto.
— Muito
cedo. Que pressa tamanha! É melhor aproveitarmos a manhã, que está fresca, e
irmos dar um passeio. Passaremos pela fazenda de Pio.
Não me
desagradou a proposta. Acabei de vestir-me e saímos ambos. Duas mulas nos
esperavam à cancela, espertas e desejosas de trotar. Montamos e partimos.
Três horas
depois, já quando o sol dissipara as nuvens de neblina que cobriam os morros como grandes lençóis,
estávamos de volta, tendo eu visto a
bela casa e as esplêndidas plantações da fazenda do velho Pio. Foi este o
assunto do almoço.
Enfim,
dado ao corpo o preciso descanso, e alcançada a necessária licença, dirigi-me à
cadeia para falar ao réu Julião.
Sentado em
uma sala onde a luz entrava escassamente, esperei que chegasse o misterioso delinqüente. Não se
demorou muito. No fim de um quarto de
hora estava diante de mim. Dois soldados ficaram à porta.
Mandei
sentar o preso, e, antes de entrar em interrogatório, empreguei uns cinco minutos em examiná-lo.
Era um
homem trigueiro, de mediana estatura, magro, débil de forças físicas, mas com uma cabeça e um olhar indicativos
de muita energia moral e alentado ânimo.
Tinha um
ar de inocência, mas não da inocência abatida e receosa; parecia antes que se glorificava com a prisão, e
afrontava a justiça humana, não com a
impavidez do malfeitor, mas com a daquele que confia na justiça divina.
Passei a
interrogá-lo, começando pela declaração de que eu ia para defendê-lo. Disse-lhe
que nada ocultasse dos acontecimentos que o levaram à prisão; e ele, com uma
rara placidez de ânimo, contou-me toda a
história do seu crime.
Julião
fora um daqueles a quem a alma caridosa de Pio dera sustento e trabalho. Suas
boas qualidades, a gratidão, o amor, o respeito com que falava e adorava o
protetor não ficaram sem uma paga valiosa. Pio, no fim de certo tempo, deu a Julião um sítio que
ficava pouco distante da fazenda, para lá fora morar Julião com uma filha
menor, cuja mãe morrera em conseqüência
dos acontecimentos que levaram Julião a recorrer à proteção do fazendeiro.
Tinha a
pequena sete anos. Era, dizia Julião, a mulatinha mais formosa daquelas dez léguas em redor. Elisa, era o
nome da pequena, completava a trindade do culto de Julião, ao lado de Pio e da
memória da mãe finada.
Laborioso
por necessidade e por gosto, Julião bem depressa viu frutificar o seu trabalho. Ainda assim não descansava.
Queria, quando morresse, deixar um
pecúlio à filha. Morrer sem deixá-la amparada era o sombrio receio que o perseguia. Podia acaso contar com
a vida do fazendeiro esmoler?
Este tinha
um filho, mais velho três anos que Elisa. Era um bom menino, educado sob a vigilância de seu pai, que desde
os tenros anos inspirava-lhe aqueles sentimentos a que devia a sua imensa
popularidade.
Carlos e
Elisa viviam quase sempre juntos, naquela comunhão da infância que não conhece desigualdades nem condições.
Estimavam-se deveras, a ponto de sentirem profundamente quando foi necessário a
Carlos ir cursar as primeiras aulas.
Trouxe o
tempo as divisões, e anos depois, quando Carlos apeou à porta da fazenda com
uma carta de bacharel na algibeira, uma esponja se passara sobre a vida anterior. Elisa, já
mulher, podia avaliar os nobres esforços
de seu pai, e concentrara todos os afetos de sua alma no mais respeitoso amor filial. Carlos era homem.
Conhecia as condições da vida social, e desde os primeiros gestos mostrou que
abismo separava o filho do protetor da filha do protegido.
O dia da
volta de Carlos foi dia de festa na fazenda do velho Pio. Julião tomou parte na alegria geral, como toda a
gente, pobre ou remediada, dos arredores. E a alegria não foi menos pura em
nenhum: todos sentiam que a presença do filho do fazendeiro era a felicidade
comum.
Passaram-se
os dias. Pio não se animava a separar-se de seu filho para que este seguisse
uma carreira política, administrativa ou judiciária. Entretanto, notava-lhe muitas diferenças em
comparação com o rapaz que, anos antes, lhe saíra de casa. Nem idéias, nem
sentimentos, nem hábitos eram os mesmos. Cuidou que fosse um resto da vida
escolástica, e esperou que a diferença da atmosfera que voltava a respirar e o
espetáculo da vida simples e chã da
fazenda o restabelecessem.
O que o
magoava sobretudo, é que o filho bacharel não buscasse os livros, onde pudesse, procurando novos conhecimentos, entreter uma
necessidade indispensável para o gênero de vida que ia encetar. Carlos não tinha mais que uma ocupação e uma
distração: a caça. Levava dias e dias a correr o mato em busca de animais para
matar, e nisso fazia consistir todos os cuidados, todos os pensamentos, todos
os estudos.
Ao
meio-dia era certo vê-lo chegar ao sítio de Julião, e aí descansar um bocado, conversando sobranceiro com a filha do
infatigável lavrador. Este chegava,
trocava algumas palavras de respeitosa estima com o filho de Pio, oferecia-lhe
parte do seu modesto jantar, que o moço não aceitava, e discorria, durante a refeição, sobre os
objetos relativos à caça.
Passavam
as coisas assim sem alteração de natureza alguma.
Um dia, ao
entrar em casa para jantar, Julião notou que sua filha parecia triste. Reparou,
e viu-lhe os olhos vermelhos de lágrimas. Perguntou o que era. Elisa respondeu
que lhe doía a cabeça; mas durante o jantar, que foi silencioso, Julião
observou que sua filha enxugava furtivamente algumas lágrimas. Nada disse; mas,
terminado o jantar, chamou-a para junto de si, e com palavras brandas e amigas
exigiu-lhe que dissesse o que tinha. Depois de muita relutância, Elisa falou:
— Meu pai,
o que eu tenho é simples. O Sr. Carlos, em quem comecei a notar mais amizade
que ao princípio, declarou-me hoje que gostava de mim, que eu devia ser dele, que só ele me
poderia dar tudo quanto eu desejasse, e muitas outras coisas que eu nem pude
ouvir, tal foi o espanto com que ouvi as
suas primeiras palavras. Declarei-lhe que não pensasse coisas tais. Insistiu;
repeli-o... Então tomando um ar carrancudo, saiu, dizendo-me:
— Hás de
ser minha!
Julião
estava atônito. Inquiriu sua filha sobre todas as particularidades da conversa
referida. Não lhe restava dúvida acerca dos maus intentos de Carlos. Mas como
de um tão bom pai pudera sair tão mau filho? perguntava ele. E esse próprio filho não era
bom antes de ir para fora? Como
exprobrar-lhe a sua má ação? E poderia fazê-lo? Como evitar a ameaça? Fugir do lugar em que morava o pai não
era mostrar-se ingrato? Todas estas
reflexões passaram pelo espírito de Julião. Via o abismo a cuja borda estava, e não sabia como escapar-lhe.
Finalmente,
depois de animar e tranqüilizar sua filha, Julião saiu, de plano feito, na direção da fazenda, em busca de
Carlos.
Este,
rodeado por alguns escravos, fazia limpar várias espingardas de caça. Julião,
depois de cumprimentá-lo alegremente, disse que lhe queria falar em particular. Carlos estremeceu; mas
não podia deixar de ceder.
— Que me
queres, Julião? disse depois de se afastar um pouco do grupo.
Julião
respondeu:
— Sr.
Carlos, venho pedir-lhe uma coisa, por alma de sua mãe!... Deixe minha filha
sossegada.
— Mas que
lhe fiz eu? titubeou Carlos.
— Oh! não
negue, porque eu sei.
— Sabe o
quê?
— Sei da
sua conversa de hoje. Mas o que passou, passou. Fico sendo seu amigo, mais
ainda, se me não perseguir a pobre filha que Deus me deu...
Promete?
Carlos
esteve calado alguns instantes. Depois:
— Basta,
disse; confesso-te, Julião, que era uma loucura minha de que me arrependo. Vai
tranqüilo: respeitarei tua filha como se fosse morta.
Julião, na
sua alegria, quase beijou as mãos de Carlos. Correu à casa e referiu a sua
filha a conversa que tivera com o filho de Pai de todos. Elisa não só por si como
por seu pai, estimou o pacífico desenlace.
Tudo
parecia ter voltado à primeira situação. As visitas de Carlos eram feitas nas
horas em que Julião se achava em casa, e além disso, a presença de uma parenta
velha, convidada por Julião, parecia tornar impossível nova tentativa de parte de Carlos.
Uma tarde,
quinze dias depois do incidente que narrei acima, voltava Julião da fazenda do velho Pio. Era já perto da
noite. Julião caminhava vagarosamente,
pensando no que lhe faltaria ainda para completar o pecúlio de sua filha.
Nessas divagações, não reparou que anoitecera. Quando deu por si, ainda se achava umas boas
braças distante de casa. Apressou o passo. Quando se achava mais perto, ouviu
uns gritos sufocados. Deitou a correr e penetrou no terreiro que circundava a
casa. Todas as janelas estavam fechadas; mas os gritos continuavam cada vez mais angustiosos. Um vulto passou-lhe pela
frente e dirigiu-se para os fundos.
Julião quis segui-lo; mas os gritos eram muitos, e de sua filha. Com uma força difícil de crer em corpo tão
pouco robusto, conseguiu abrir uma das janelas. Saltou, e eis o que viu:
A parenta
que convidara a tomar conta da casa estava no chão, atada, amordaçada, exausta. Uma cadeira quebrada,
outras em desordem.
— Minha
filha! exclamou ele.
E
atirou-se para o interior.
Elisa
debatia-se nos braços de Carlos, mas já sem forças nem esperanças de obter misericórdia.
No momento
em que Julião entrava por uma porta, entrava por outra um indivíduo mal conceituado no lugar, e até
conhecido por assalariado nato de todas as violências. Era o vulto que Julião
vira no terreiro. E outros haviam ainda, que apareceram a um sinal dado pelo
primeiro, mal Julião entrou no lugar em
que se dava o triste conflito da inocência com a perversidade.
Julião
teve tempo de arrancar Elisa dos braços de Carlos. Cego de raiva, travou de uma cadeira e ia atirar-lha, quando
os capangas, entrados a este tempo, o detiveram.
Carlos
voltara a si da surpresa que lhe causara a presença de Julião. Recobrando o sangue frio, cravou os olhos
odiendos no desventurado pai, e
disse-lhe com voz sumida:
— Hás de
pagar-me!
Depois,
voltando-se para os ajudantes das suas façanhas, bradou:
—
Amarrem-no!
Em cinco
minutos foi obedecido. Julião não podia lutar contra cinco.
Carlos e
quatro capangas saíram. Ficou um de vigia.
Uma chuva
de lágrimas rebentou dos olhos de Elisa. Doía-lhe na alma ver seu pai atado
daquele modo. Não era já o perigo a que escapara o que a comovia; era não poder
abraçar seu pai livre e feliz. E por que estaria atado? Que intentava Carlos fazer? Matá-lo?
Estas lúgubres e aterradoras idéias
passaram rapidamente pela cabeça de Elisa. Entre lágrimas comunicou-as a Julião.
Este,
calmo, frio, impávido, tranqüilizou o espírito de sua filha, dizendo-lhe que Carlos poderia ser tudo, menos um
assassino.
Seguiram-se
alguns minutos de angustiosa espera. Julião olhava para sua filha e parecia refletir. Depois de algum
tempo, disse:
— Elisa,
tens realmente a tua desonra por uma grande desgraça?
— Oh! meu
pai! exclamou ela.
—
Responde: se te faltasse a pureza que recebeste do céu, considerar-te- ias a
mais infeliz de todas as mulheres?
— Sim,
sim, meu pai!
Julião
calou-se.
Elisa
chorou ainda. Depois voltou-se para a sentinela deixada por Carlos e quis
implorar-lhe misericórdia. Foi atalhada por Julião.
— Não
peças nada, disse este. Só há um protetor para os infelizes: é Deus. Há outro
depois dele; mas esse está longe... Ó Pai de todos, que filho te deu o
Senhor!...
Elisa
voltou para junto de seu pai.
— Chega-te
para mais perto, disse este.
Elisa obedeceu.
Julião
tinha os braços atados; mas podia mover, ainda que pouco, as mãos. Procurou afagar Elisa, tocando-lhe as
faces e beijando-lhe a cabeça. Ela inclinou-se e escondeu o rosto no peito de
seu pai.
A
sentinela não dava fé do que se passava. Depois de alguns minutos do abraço de
Elisa e Julião, ouviu-se um grito agudíssimo. A sentinela correu aos dois. Elisa caíra completamente, banhada
em sangue.
Julião
tinha procurado a custo apoderar-se de uma faca de caça deixada por Carlos
sobre uma cadeira. Apenas o conseguiu, cravou-a no peito de Elisa. Quando a
sentinela correu para ele, não
teve tempo de
evitar o segundo golpe, com que Julião tornou mais
profunda e mortal a primeira ferida. Elisa rolou no chão nas últimas
convulsões.
— Assassino!
clamou a sentinela.
—
Salvador!... salvei minha filha da desonra!
— Meu
pai!... murmurava a pobre pequena expirando.
Julião,
voltando-se para o cadáver, disse, derramando duas lágrimas, duas só, mas duas
lavas rebentadas do vulcão de sua alma:
— Dize a
Deus, minha filha, que te mandei mais cedo para junto dele para salvar-te da
desonra.
Depois
fechou os olhos e esperou.
Não tardou
que entrasse Carlos, acompanhado de uma autoridade policial e vários soldados.
Saindo da
casa de Julião, teve a idéia danada de ir declarar à autoridade que o velho
lavrador tentara contra a vida dele, razão por que teve de lutar, o conseguira
deixá-lo amarrado.
A surpresa
de Carlos e dos policiais foi grande. Não cuidavam encontrar o espetáculo que a seus olhos se ofereceu.
Julião foi preso. Não negou o crime.
Somente reservou-se para contar as circunstâncias dele na ocasião competente.
A velha
parenta foi desatada, desamordaçada e conduzida à fazenda de Pio.
Julião,
depois de contar-me toda a história cujo resumo acabo de fazer, perguntou-me:
— Diga-me,
Sr. doutor, pode ser meu advogado? Não sou criminoso?
— Serei
seu advogado. Descanse, estou certo de que os juízes reconhecerão as
circunstâncias atenuantes do delito.
— Oh! não
é isso que me aterroriza. Seja ou não condenado pelos homens, é coisa que nada monta para mim. Se os juízes
não forem pais, não me compreenderão, e
então é natural que sigam os ditames da lei. Não matarás, é dos mandamentos eu
bem sei...
Não quis
magoar a alma do pobre pai continuando naquele diálogo. Despedi-me dele e disse que voltaria depois.
Saí da
cadeia alvoroçado. Não era romance, era tragédia o que eu acabava de ouvir.
No caminho as
idéias se me
clarearam. Meu espírito
voltou-se vinte e três séculos
atrás, e pude ver, no seio da sociedade romana, um caso idêntico ao que se dava
na vila de ***.
Todos
conhecem a lúgubre tragédia de Virginius. Tito Lívio, Diodoro de Sicília e outros antigos falam dela
circunstanciadamente. Foi essa tragédia a precursora da queda dos decênviros.
Um destes, Ápio Cláudio, apaixonou-se
por Virgínia, filha de Virginius. Como fosse impossível de tomá-la por simples simpatia, determinou o
decênviro empregar um meio violento. O
meio foi escravizá-la. Peitou um sicofanta, que apresentou-se aos tribunais reclamando a entrega de
Virgínia, sua escrava. O desventurado
pai, não conseguindo comover nem por seus rogos, nem por suas ameaças, travou de uma faca de açougue e
cravou-a no peito de Virgínia.
Pouco
depois caíam os decênviros e restabelecia-se o consulado.
No caso de
Julião não haviam decênviros para abater nem cônsules para levantar; mas havia
a moral ultrajada e a malvadez triunfante. Infelizmente
estão ainda longe, esta da geral repulsão, aquela do respeito
universal.
CAPÍTULO III
Fazendo
todas estas reflexões, encaminhava-me eu para a casa do amigo em que estava
hospedado. Ocorreu-me uma idéia, a de ir à fazenda de Pio, autor do bilhete que me chamara da corte, e de
quem eu podia saber muita coisa mais.
Não
insisto em observar a circunstância de ser o velho fazendeiro quem se interessava pelo réu e pagava as despesas da
defesa nos tribunais. Já o leitor terá feito essa observação, realmente honrosa
para aquele deus da terra.
O sol,
apesar da estação, queimava suficientemente o viandante. Ir a pé à fazenda, quando podia ir a cavalo, era ganhar
fadiga e perder tempo sem proveito. Fui à casa e mandei aprontar o cavalo. O
meu hóspede não
estava em
casa. Não quis esperá-lo, e sem mais companhia dirigi-me para a fazenda.
Pio estava
em casa. Mandei-lhe dizer que uma pessoa da corte desejava falar-lhe. Fui recebido incontinente.
Achei o
velho fazendeiro em conversa com um velho padre. Pareciam, tanto o
secular como o eclesiástico, dois verdadeiros soldados do Evangelho combinando-se para a mais extensa
prática do bem. Tinham ambos a cabeça branca, o olhar sereno, a postura grave e
o gesto despretensioso. Transluzia-lhes
nos olhos a bondade do coração. Levantaram-se
quando apareci e vieram cumprimentar-me.
O fazendeiro
era quem chamava mais a minha atenção, pelo que ouvira dizer dele ao meu amigo e ao pai de Elisa.
Pude observá-lo durante alguns minutos. Era impossível ver aquele homem e não
adivinhar o que ele era. Com uma palavra
branda e insinuante disse-me que diante do capelão não tinha segredos, e que eu
dissesse o que tinha para dizer. E começou por me
perguntar quem era eu. Disse-lho; mostrei-lhe o bilhete, declarando que sabia
ser dele, razão por que o procurara.
Depois de
algum silêncio disse-me:
— Já falou
ao Julião?
— Já.
— Conhece
então toda a história?
— Sei do
que ele me contou.
— O que
ele lhe contou é o que se passou. Foi uma triste história que me envelheceu
ainda mais em poucos dias. Reservou-me o céu aquela tortura para o último
quartel da vida. Soube o que fez. É sofrendo que se aprende. Foi melhor. Se meu filho havia de esperar que
eu morresse para praticar atos tais com
impunidade, bom foi que o fizesse antes, seguindo-se assim ao delito o castigo
que mereceu.
A palavra castigo impressionou-me.
Não me pude ter e disse-lhe:
— Fala em
castigo. Pois castigou seu filho?
— Pois
então? Quem é o autor da morte de Elisa?
— Oh!...
isso não, disse eu.
— Não foi
autor, foi causa. Mas quem foi o autor da violência à pobre pequena? Foi decerto
meu filho.
— Mas esse
castigo?...
—
Descanse, disse o velho adivinhando a minha indiscreta inquietação. Carlos recebeu um castigo honroso, ou, por
outra, sofre como castigo aquilo que devia receber como honra. Eu o conheço. Os
cômodos da vida que teve, a carta que alcançou pelo estudo, e certa dose de
vaidade que todos nós recebemos do berço, e que o berço lhe deu a ele em grande
dose, tudo isso é que o castiga neste momento, porque tudo foi desfeito pelo gênero de vida que lhe fiz adotar. Carlos
é agora soldado.
— Soldado!
exclamei eu.
— É
verdade. Objetou-me que era doutor. Disse-lhe que devia lembrar-se de que o era
quando penetrou na casa de Julião. A muito pedido, mandei-o para o Sul, com
promessa jurada, e avisos particulares e reiterados, de que, mal chegasse ali, assentasse praça em um
batalhão de linha. Não é um castigo honroso? Sirva a sua pátria, e guarde a
fazenda e a honra dos seus concidadãos: é o melhor meio de aprender a guardar a
honra própria.
Continuamos
em nossa conversa durante duas horas quase. O velho fazendeiro mostrava-se
magoadíssimo sempre que volvíamos a falar do caso de Julião. Depois que lhe
declarei que tomava conta da causa em defesa
do réu, instou comigo para que nada poupasse a fim de alcançar a diminuição da
pena de Julião. Se for preciso, dizia ele, apreciar com as considerações devidas o ato de meu filho, não
se acanhe: esqueça-se de mim, porque eu também me esqueço de meu filho.
Cumprimentei
aquela virtude romana, despedi-me do padre, e saí, depois de prometer tudo o que me foi pedido.
CAPÍTULO IV
— Então,
falaste a Julião? perguntou o meu amigo quando me viu entrar em casa.
— Falei, e falei também ao Pai de todos... Que história, meu amigo!... Parece um sonho.
— Não te
disse?... E defendes o réu?
— Com toda
a certeza.
Fui
jantar, e passei o resto da tarde conversando acerca do ato de Julião e das
virtudes do fazendeiro.
Poucos
dias depois instalou-se o júri onde tinha de comparecer Julião.
De todas
as causas, era aquela a que mais medo me fazia; não que eu duvidasse das
atenuantes do crime, mas porque receava não estar na altura da causa.
Toda a
noite da véspera foi para mim de verdadeira insônia. Enfim raiou o dia marcado para o julgamento de Julião.
Levantei-me, comi pouco e distraído, e vesti-me.
Entrou-me no quarto o meu amigo.
— Lá te
vou ouvir, disse-me ele abraçando.
Confessei-lhe
os meus receios; mas ele, para animar-me, entreteceu uma grinalda de elogios
que eu mal pude ouvir, no meio das minhas preocupações.
Saímos.
Dispenso
os leitores da narração do que se passou no júri. O crime foi provado pelo
depoimento das testemunhas; nem Julião o negou nunca. Mas apesar de tudo, da confissão e da prova
testemunhal, auditório, jurados, juiz e
promotor, todos tinham pregados no réu olhos de simpatia, admiração e compaixão.
A acusação
limitou-se a referir o depoimento das testemunhas, e quando, terminando o seu
discurso, teve de pedir a pena para o réu, o promotor mostrava-se envergonhado
de estar trêmulo e comovido.
Tocou-me a
vez de falar. Não sei o que disse. Sei que as mais ruidosas provas de adesão surgiam no meio do silêncio
geral. Quando terminei, dois homens
invadiram a sala e abraçaram-me comovidos: o fazendeiro e o meu amigo.
Julião foi
condenado a dez anos de prisão. Os jurados tinham ouvido a lei, e igualmente, talvez, o coração.
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CAPÍTULO V
No momento
em que escrevo estas páginas, Julião, tendo já cumprido a sentença, vive na
fazenda de Pio. Pio não quis que ele voltasse ao lugar em que se dera a catástrofe, e fá-lo residir
ao pé de si.
O velho
fazendeiro tinha feito recolher as cinzas de Elisa em uma urna, ao pé da qual vão ambos orar todas as semanas.
Aqueles
dois pais, que assistiram ao funeral das suas esperanças, acham-se ligados
intimamente pelos laços do infortúnio.
Na fazenda
fala-se sempre de Elisa, mas nunca de Carlos. Pio é o primeiro a não magoar o coração de Julião com a
lembrança daquele que o levou a matar
sua filha.
Quanto a
Carlos, vai resgatando como pode o crime com que atentou contra a honra de uma
donzela e contra a felicidade de dois pais.
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado originalmente em Jornal das Famílias,
julho a agosto de 1864. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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