
CASADA E VIÚVA
CAPÍTULO PRIMEIRO
No dia em
que José de Meneses recebeu por mulher Eulália Martins, diante do altar-mor da
matriz do Sacramento, na presença das respectivas famílias, aumentou-se com
mais um a lista dos casais felizes.
Era
impossível amar-se mais do que se amavam aqueles dois. Nem me atrevo a descrevê-lo.
Imagine-se a fusão de quatro paixões amorosas das que a fábula e a história nos
dão conta e ter-se-á a medida do amor de José de Meneses por Eulália e de
Eulália por José de Meneses.
As
mulheres tinham inveja à mulher feliz, e os homens riam dos sentimentos, um tanto piegas, do apaixonado marido. Mas os
dois filósofos do amor relevaram à humanidade as suas fraquezas e resolveram
protestar contra elas amando-se ainda mais.
Mal
contava um mês de casado, sentiu José de Meneses, em seu egoísmo de noivo feliz, que devia fugir à companhia e ao
rumor da cidade. Foi procurar uma chácara na Tijuca, e lá se encafuou com
Eulália.
Ali viam
correr os dias no mais perfeito descuido, respirando as auras puras da montanha, sem inveja dos maiores potentados da
terra.
Um ou
outro escolhido conseguiu às vezes penetrar no santuário em que os dois viviam,
e de cada vez que de lá saía vinha com a convicção mais profunda de que a
felicidade não podia estar em outra parte senão no amor.
Acontecia,
pois, que, se as mulheres invejavam Eulália e se os homens riam de José de
Meneses, as mães, as mães previdentes, a espécie santa, no dizer de E.
Augier, nem riam nem se deixavam dominar pelo
sexto pecado mortal: pediam simplesmente
a Deus que lhes deparasse às filhas um marido da estofa e da capacidade de José de Meneses.
Augier, nem riam nem se deixavam dominar pelo
sexto pecado mortal: pediam simplesmente
a Deus que lhes deparasse às filhas um marido da estofa e da capacidade de José de Meneses.
Mas cumpre
dizer, para inspirar amor a maridos tais como José de Meneses, era preciso
mulheres tais como Eulália Martins. Eulália em alma e corpo era o que há de
mais puro unido ao que há de mais belo. Tanto era um milagre de beleza carnal,
como era um prodígio de doçura, de elevação e de sinceridade de sentimentos. E, sejamos francos, tanta coisa
junta não se encontra a cada passo.
Nenhuma
nuvem sombreava o céu azul da existência do casal Meneses. Minto, devez em
quando, uma vez por semana apenas, e isto só depois de cinco meses de casados,
Eulália derramava algumas lágrimas de impaciência por se demorar mais do que
costumava o amante José de Meneses. Mas não passava isso de uma chuva de
primavera, que, mal assomava o sol à porta, cessava para deixar aparecer as
flores do sorriso e a verdura do amor. A explicação do marido já vinha
sobreposse; mas ele não deixava de dá-la apesar dos protestos de Eulália; era
sempre excesso de trabalho que pedia a presença dele na cidade até uma parte da
noite.
Ano e meio
viveram assim os dois, ignorados do resto do mundo, ébrios da felicidade e da
solidão.
A família
tinha aumentado com uma filha no fim de dez meses. Todos que são pais sabem o
que é esta felicidade suprema. Aqueles quase enlouqueceram. A criança era um
mimo de graça angélica. Meneses via nela o riso de Eulália, Eulália achava que
os olhos eram os de Meneses. E neste combate de galanteios passavam as horas e
os dias.
Ora, uma
noite, como o luar estivesse claro e a noite fresquíssima, os dois, marido e
mulher, deixaram a casa, onde a pequena ficara adormecida, e foram conversar junto ao portão, sentados em
cadeiras de ferro e debaixo de uma viçosa latada, sub tegmine fagi.
Meia hora
havia que ali estavam, lembrando o passado, saboreando o presente e construindo
o futuro, quando parou um carro na estrada.
Voltaram
os olhos e viram descer duas pessoas, um homem e uma mulher.
— Há de
ser aqui, disse o homem olhando para a chácara de Meneses.
Neste
momento o luar deu em cheio no rosto da mulher. Eulália exclamou:
— É
Cristiana!
E correu
para a recém-chegada.
Os dois
novos personagens eram o Capitão Nogueira e Cristina Nogueira, mulher do
capitão.
O encontro
foi o mais cordial do mundo. Nogueira era já amigo de José de Meneses, cujo pai
fora colega dele na escola militar, andando ambos a estudar engenharia. Isto
quer dizer que Nogueira era já homem dos seus quarenta e seis anos.
Cristiana
era uma moça de vinte e cinco anos, robusta, corada, uma dessas belezas da
terra, muito apreciáveis, mesmo para quem goza uma das belezas do céu, como acontecia a José de Meneses.
Vinham de
Minas, onde se haviam casado.
Nogueira,
cinco meses antes, saíra para aquela província a serviço do Estado e ali encontrou
Cristiana, por quem se apaixonou e a quem soube inspirar uma estima respeitosa. Se eu dissesse amor, mentia, e eu
tenho por timbre contar as coisas como as coisas são.
Cristiana,
órfã de pai e mãe, vivia na companhia de um tio, homem velho e impertinente,
achacado de duas moléstias gravíssimas: um reumatismo crônico e uma saudade do
regímen colonial. Devo explicar esta última enfermidade; ele não sentia que o
Brasil se tivesse feito independente; sentia que, fazendo-se independente, não tivesse conservado a forma
de governo absoluto. Gorou o ovo, dizia ele, logo depois de adotada a
constituição. E protestando interiormente contra o que se fizera, retirou-se
para Minas Gerais, donde nunca mais saiu. A esta ligeira notícia do tio de
Cristiana acrescentarei que era rico como um Potosi e avarento como Harpagão.
Entrando
na fazenda do tio de Cristiana e sentindo-se influído pela beleza desta, Nogueira
aproveitou-se da doença política do fazendeiro para lisonjeá-la com umas fomentações de louvor do passado e
indignação pelo presente. Em um servidor do Estado atual das coisas, achou o
fazendeiro que era aquilo uma prova de rara independência, e o estratagema do
capitão surtiu duas vantagens: o fazendeiro deu-lhe a sobrinha e mais um bom
par de contos de réis. Nogueira, que só
visava a primeira, achou-se felicíssimo por ter alcançado ambas. Ora, é certo
que, sem as opiniões forjadas no momento pelo capitão, o velho fazendeiro não
tiraria à sua fortuna um ceitil que fosse.
Quanto a
Cristiana, se não sentia pelo capitão um amor igual ou mesmo inferior ao que
lhe inspirava, votava-lhe uma estima respeitosa. E o hábito, desde Aristóteles
todos reconhecem isto, e o hábito, aumentando a estima de Cristiana, dava à
vida doméstica do Capitão Nogueira uma paz, uma tranqüilidade, um gozo brando,
digno de tanta inveja como era o amor sempre violento do casal Meneses.
Voltando à
corte, Cristiana esperava uma vida mais própria aos seus anos de moça do que a passada
na fazenda mineira na companhia fastidiosa do reumático legitimista. Pouco que
pudessem alcançar as suas ilusões, era já muito em comparação com o passado.
Dadas
todas estas explicações, continuo a minha história.
CAPÍTULO II
Deixo ao
espírito do leitor ajuizar como seria o encontro de amigos que se não vêem há
muito.
Cristiana
e Eulália tinham muito que contar uma à outra, e, em sala à parte, ao pé do
berço em que dormia a filha de José de Meneses, deram largas à memória, ao
espírito e ao coração. Quanto a Nogueira e José de Meneses, depois de narrada a
história do respectivo casamento e suas esperanças de esposos, entraram, um na exposição das suas impressões
de viagem, o outro na das impressões que
deveria ter em uma viagem que projetava.
Passaram-se
deste modo as horas até que o chá reuniu a todos quatro à roda da mesa de
família. Esquecia-me dizer que Nogueira e Cristiana declararam desde o princípio
que, tendo chegado pouco havia, tencionavam demorar-se uns dias em casa de
Meneses até que pudessem arranjar na cidade ou nos arrabaldes uma casa
conveniente.

Meneses e
Eulália ouviram isto, pode-se dizer que de coração alegre. Foi decretada a
instalação dos dois viajantes. Tarde se levantaram da mesa, onde o prazer de se
verem juntos os prendia insensivelmente. Guardaram o muito que ainda havia a
dizer para os outros dias e recolheram-se.
— Conhecia
José de Meneses? perguntou Nogueira a Cristiana ao retirar-se para os seus
aposentos.
— Conhecia
de casa de meu pai. Ele ia lá há oito anos.
— É uma
bela alma!
— E
Eulália!
— Ambos!
ambos! É um casal feliz!
— Como
nós, acrescentou Cristiana abraçando o marido.
No dia
seguinte, foram os dois maridos para a cidade, e ficaram as duas mulheres entregues aos seus corações.
De volta,
disse Nogueira ter encontrado casa; mas era preciso arranjá-la, e foi marcado para os arranjos o prazo de oito dias.
Os seis
primeiros dias deste prazo correram na maior alegria, na mais perfeita intimidade.
Chegou-se a aventar a idéia de ficarem os quatro habitando juntos. Foi Meneses
o autor da idéia. Mas Nogueira alegou ter necessidade de casa própria e
especial, visto como esperava alguns parentes do Norte.
Enfim, no
sétimo dia, isto é, na véspera de se separarem os dois casais, estava Cristiana
passeando no jardim, à tardinha, em companhia de José de Meneses, que lhe dava
o braço. Depois de trocarem muitas palavras sobre coisas totalmente
indiferentes à nossa história, José de Meneses fixou o olhar na sua interlocutora
e aventurou estas palavras:
— Não tem
saudade do passado, Cristiana?
A moça
estremeceu, abaixou os olhos e não respondeu.
José de
Meneses insistiu. A resposta de Cristiana foi:
— Não sei;
deixe-me!
E forcejou
por tirar o braço do de José de Meneses; mas este reteve-a.
— Que
susto pueril! Onde quer ir? Meto-lhe medo?
Nisto
parou ao portão um moleque com duas cartas para José de Meneses. Os dois
passavam neste momento em frente do portão. O moleque fez entrega das cartas e
retirou-se sem exigir resposta.
Meneses
fez os seguintes raciocínios: — Lê-las imediatamente era dar lugar a que Cristiana
se evadisse para o interior da casa; não sendo as cartas de grande urgência,
visto que o portador não exigira resposta, não havia grande necessidade de lê-las imediatamente. Portanto guardou as cartas cuidadosamente para lê-las depois.
E de tudo
isto conclui o leitor que Meneses tinha mais necessidade de falar a Cristiana
do que curiosidade de ler as cartas.

Acrescentarei,
para não dar azo aos esmerilhadores de inverossimilhanças, que Meneses conhecia
muito bem o portador e sabia ou presumia saber de que tratavam as cartas em
questão.
Guardadas
as cartas, e sem tirar o braço a Cristiana, Meneses continuou o passeio e a
conversação.
Cristiana
estava confusa e trêmula. Durante alguns passos não trocaram uma palavra.
Finalmente,
Meneses rompeu o silêncio perguntando a Cristiana:
— Então,
que me responde?
— Nada,
murmurou a moça.
— Nada!
exclamou Meneses. Nada! era então esse o amor que me tinha?
Cristiana
levantou os olhos espantados para Meneses. Depois, procurando de novo tirar o
braço do de Meneses, murmurou:
— Perdão,
devo recolher-me.
Meneses
reteve-a de novo.
— Ouça-me
primeiro, disse. Não lhe quero fazer mal algum. Se me não ama, pode dizê-lo,
não me zangarei; receberei essa confissão como o castigo do passo que dei,
casando minha alma que se não achava solteira.
— Que
estranha linguagem é essa? disse a moça. A que vem essa recordação de uma curta fase da nossa vida, de um puro
brinco da adolescência?
— Fala de
coração?
— Pois,
como seria?
— Ah! não
me faça crer que um perjúrio...
—
Perjúrio!...
A moça
sorriu-se com desdém. Depois continuou:
— Perjúrio
é isto que faz. Perjúrio é trazer enganada a mais casta e a mais digna das mulheres, a mais digna, ouve? Mais digna
do que eu, que ainda o ouço e lhe respondo.
E dizendo
isto Cristiana tentou fugir.
— Onde
vai? perguntou Meneses. Não vê que está agitada? Poderia fazer nascer suspeitas.
Demais, pouco tenho a dizer-lhe. É uma despedida. Nada mais, em nenhuma
ocasião, ouvirá de minha boca. Supunha que através dos tempos e das adversidades
tivesse conservado pura e inteira a lembrança de um passado que nos fez
felizes. Vejo que me enganei. Nenhum dos caracteres superiores que eu enxergava
em seu coração tinha existência real. Eram simples criações do meu espírito
demasiado crédulo. Hoje que se desfaz o encanto, e que eu posso ver toda a
enormidade da fraqueza humana, deixe-me dizer-lhe, perdeu um oração e uma existência que não merecia.
Saio-me com honra de um combate em que não havia igualdade de forças. Saio
puro. E se no meio do desgosto em que me fica a alma, é-me lícito trazê-la à
lembrança, será como um sonho esvaecido, sem objeto real na terra.

Estas
palavras foram ditas em um tom sentimental e como que estudado para a ocasião.
Cristiana
estava aturdida. Lembrava-se que em vida de seu pai, tinha ela quinze anos,
houvera entre ela e José de Meneses um desses namoros de criança, sem conseqüência,
em que o coração empenha-se menos que a fantasia.
Com que
direito vinha hoje Meneses reivindicar um passado cuja lembrança, se alguma havia, era indiferente e sem alcance?
Estas
reflexões pesaram no espírito de Cristiana. A moça expô-las em algumas palavras
cortadas pela agitação em que se achava, e pelas interrupções dramáticas de
Meneses.
Depois,
como aparecesse Eulália à porta da casa, a conversa foi interrompida.
A presença
de Eulália foi um alívio para o espírito de Cristiana. Mal a viu, correu para
ela, e convidou-a a passear pelo jardim, antes que anoitecesse.
Se Eulália
pudesse nunca suspeitar da fidelidade de seu marido, veria na agitação de
Cristiana um motivo para indagações e atribulações. Mas a alma da moça era límpida
e confiante, dessa confiança e limpidez que só dá o verdadeiro amor.
Deram as
duas o braço, e dirigiram-se para uma alameda de casuarinas, situada na parte
oposta àquela em que ficara passeando José de Meneses.
Este,
perfeitamente senhor de si, continuou a passear como que entregue a suas reflexões. Seus passos, em aparência vagos e
distraídos, procuravam a direção da alameda em que andavam as duas.
Depois de
poucos minutos encontraram-se como que por acaso.
Meneses,
que ia de cabeça baixa, simulou um ligeiro espanto e parou.
As duas
pararam igualmente.
Cristiana
tinha a cara voltada para o lado. Eulália, com um divino sorriso, perguntou:
— Em que
pensas, meu amor?
— Em nada.
— Não é
possível, retorquiu Eulália.
— Penso em
tudo.
— O que é
tudo?
— Tudo? É
o teu amor.
— Deveras?
E
voltando-se para Cristiana, Eulália acrescentou:
— Olha,
Cristiana, já viste um marido assim? É o rei dos maridos. Traz sempre na boca
uma palavra amável para sua mulher. É assim que deve ser. Não esqueça nunca
estes bons costumes, ouviu?

Estas
palavras alegres e descuidosas foram ouvidas distraidamente por Cristiana. Meneses tinha os olhos cravados na pobre moça.
— Eulália,
disse ele, parece que D. Cristiana está triste.
Cristiana
estremeceu.
Eulália
voltou-se para a amiga e disse:
— Triste!
Já assim me pareceu. É verdade, Cristiana? Estarás triste?
— Que idéia!
Triste por quê?
— Ora,
pela conversa que há pouco tivemos, respondeu Meneses.
Cristiana
fitou os olhos em Meneses. Não podia compreendê-lo e não adivinhava onde queria ir o marido de Eulália.
Meneses,
com o maior sangue frio, acudiu à interrogação muda que as duas pareciam fazer.
— Eu
contei a D. Cristiana o assunto da única novela que li em minha vida. Era um
livro interessantíssimo. O assunto é simples, mas comovente. É uma série de torturas
morais por que passa uma moça a quem esqueceu juramentos feitos na mocidade. Na vida real este fato é uma coisa
mais que comum; mas tratado pelo romancista toma um tal caráter que chega a
assustar o espírito mais refratário às impressões. A análise das atribulações
da ingrata é feita por mão de mestre. O fim do romance é mais fraco. Há uma
situação forçada... uma carta que aparece... Umas coisas... enfim, o melhor é o
estudo profundo e demorado da alma da formosa perjura. D. Cristiana é muito
impressível...
— Oh! meu
Deus! exclamou Eulália. Só por isto?
Cristiana
estava ofegante. Eulália, assustada por vê-la em tal estado, convidou-a a
recolher-se. Meneses apressou-se a dar-lhe o braço e dirigiram-se os três para casa.
Eulália entrou antes dos dois. Antes de pôr pé no primeiro degrau da escada de
pedra que dava acesso à casa, Cristiana disse a Meneses, em voz baixa e
concentrada:
— É um
bárbaro!
Entraram
todos. Era já noite. Cristiana reparou que a situação era falsa e tratou de
desfazer os cuidados, ou porventura as más impressões que tivessem ficado a Eulália
depois do desconchavo de Meneses. Foi a ela, com o sorriso nos lábios:
— Pois,
deveras, disse ela, acreditaste que eu ficasse magoada com a história? Foi uma
impressão que passou.
Eulália
não respondeu.
Este
silêncio não agradou nem a Cristiana, nem a Meneses. Meneses contava com a boa
fé de Eulália, única explicação de ter adiantado aquela história tão fora de propósito.
Mas o silêncio de Eulália teria a significação que lhe deram os dois? Parecia
ter, mas não tinha. Eulália achou estranha a história e a comoção de Cristiana;
mas, entre todas as explicações que lhe ocorressem, a infidelidade de Meneses
seria a última, e ela nem passou da primeira. Sancta simplicitas!
A conversa
continuou fria e indiferente até a chegada de Nogueira. Seriam então nove
horas. Serviu-se o chá, depois do que, todos se recolheram. Na manhã seguinte,
como disse acima, deviam partir Nogueira e Cristiana.
A
despedida foi como é sempre a despedida de pessoas que se estimam. Cristiana
fez os esforços maiores para que no espírito de Eulália não surgisse o menor
desgosto; e Eulália, que não
usava mal, mal não cuidou na
história da noite anterior. Despediram-se todos com
promessa jurada de se visitarem a miúdo.
CAPÍTULO III
Passaram-se
quinze dias depois das cenas que narrei acima. Durante esse tempo nenhum dos
personagens que nos ocupam tiveram ocasião de se falarem. Não obstante pensavam
muito uns nos outros, por saudade sincera, por temor do futuro e por frio cálculo de egoísmo, cada
qual pensando segundo os seus sentimentos.
Cristiana
refletia profundamente sobre a sua situação. A cena do jardim era para ela um
prenúncio de infelicidade, cujo alcance não podia avaliar, mas que lhe pareciam
inevitáveis. Entretanto, que tinha ela no passado? Um simples amor de criança, desses amores passageiros e sem
conseqüências. Nada dava direito a Meneses para reivindicar juramentos firmados
por corações extremamente juvenis, sem consciência da gravidade das coisas. E
demais, o casamento de ambos não
invalidara esse passado invocado agora?
Refletindo
deste modo, Cristiana era levada às últimas conseqüências. Ela estabelecia em
seu espírito o seguinte dilema: ou a reivindicação do passado feita por Meneses
era sincera ou não. No primeiro caso era a paixão concentrada que fazia irrupção
no fim de tanto tempo, e Deus sabe onde poderiam ir os seus efeitos. No segundo
caso, era simples cálculo de abjeta lascívia; mas então, se mudara a natureza
dos sentimentos do marido de Eulália, não mudava a situação nem desapareciam as
apreensões do futuro. Era preciso ter a alma profundamente mirrada para iludir
daquele modo uma mulher virtuosa tentando contra a virtude de outra mulher.
Em honra
de Cristiana devo acrescentar que os seus temores eram menos por ela que por
Eulália. Estando segura de si, o que ela temia era que a felicidade de Eulália
se anuviasse, e a pobre moça viesse a perder aquela paz do coração que a fazia
invejada de todos.
Apreciando
estes fatos à luz da razão prática, se julgarmos legítimos os temores de
Cristiana, julgaremos exagerada as proporções que ela dava ao ato de Meneses. O
ato de Meneses reduz-se, afinal de contas, a um ato comum, praticado todos os
dias, no meio da tolerância geral e até do aplauso de muitos. Certamente que
isso não lhe dá virtude, mas tira-lhe o mérito da originalidade.
No meio
das preocupações de Cristiana tomara lugar a carta a que Meneses aludira. Que
carta seria essa? Alguma dessas confidências que o coração da adolescência
facilmente traduz no papel. Mas os termos dela? Em qualquer dos casos do dilema
apresentado acima Meneses podia usar da carta, a que talvez faltasse a data e
sobrassem expressões ambíguas para supô-la de feitura recente.
Nada disto
escapava a Cristiana. E com tudo isto entristecia. Nogueira reparou na mudança
que apresentava sua mulher e interrogou-a carinhosamente. Cristiana nada lhe
quis confiar, porque uma leve esperança lhe fazia crer às vezes que a consciência de sua honra teria por prêmio a
tranqüilidade e a felicidade. Mas o marido,
não alcançando nada e vendo-a continuar na mesma tristeza, entristecia-se
também e desesperava. Que podia desejar Cristiana? pensava ele. Na incerteza e
na angústia da situação lembrou-se de ter com Eulália para que esta
ou o informasse, ou, como mulher, alcançasse
de Cristiana o segredo das suas concentradas mágoas. Eulália marcou o dia em
que iria à casa de Nogueira, e este saiu da chácara da Tijuca animado por
algumas esperanças.
ou o informasse, ou, como mulher, alcançasse
de Cristiana o segredo das suas concentradas mágoas. Eulália marcou o dia em
que iria à casa de Nogueira, e este saiu da chácara da Tijuca animado por
algumas esperanças.
Ora, nesse
dia apresentou-se pela primeira vez em casa de Cristiana o exemplar José de
Meneses. Apareceu como a estátua do comendador. A pobre moça, ao vê-lo, ficou
aterrada. Estava só. Não sabia que dizer quando à porta da sala assomou a
figura mansa e pacífica de Meneses. Nem se levantou. Olhou-o fixamente e
esperou.
Meneses
parou à porta e disse com um sorriso nos lábios:
— Dá
licença?
Depois,
sem esperar resposta, dirigiu-se para Cristiana; estendeu- lhe a mão e recebeu
a dela fria e trêmula. Puxou cadeira e sentou-se ao pé dela familiarmente.
— Nogueira
saiu? perguntou depois de alguns instantes, descalçando as luvas.
— Saiu,
murmurou a moça.
— Tanto
melhor. Tenho então tempo para dizer-lhe duas palavras.
A moça fez
um esforço e disse:
— Também
eu tenho para dizer-lhe duas palavras.
— Ah! sim.
Ora bem, cabe às damas a precedência. Sou todo ouvidos.
— Possui
alguma carta minha?
— Possuo
uma.
— É um
triste documento, porque, respondendo a sentimentos de outro tempo, se eram sentimentos dignos deste nome, de nada
pode valer hoje. Todavia, desejo possuir esse escrito.
— Vejo que
não tem hábito de argumentar. Se a carta em questão não vale nada, por que
deseja possuí-la?
— É um
capricho.
—
Capricho, se existe algum é o de tratar por cima do ombro um amor sincero e ardente.
— Falemos
de outra coisa.
— Não;
falemos disto, que é essencial.
Cristiana
levantou-se.
— Não
posso ouvi-lo, disse ela.
Meneses
segurou-lhe em uma das mãos e procurou retê-la. Houve uma pequena luta.
Cristiana ia tocar a campainha que se achava sobre uma mesa, quando Meneses
deixou-lhe a mão e levantou-se.
— Basta,
disse ele; escusa de chamar seus fâmulos. Talvez que ache grande prazer em pô-los na confidência de um amor que
não merece. Mas eu é que me
não exponho ao ridículo depois de me expor à
baixeza. É baixeza, sim; não devia mendigar para o coração o amor de quem não
sabe compreender os grandes sentimentos. Paciência; fique com a sua traição; eu
ficarei com o meu amor; mas procurarei esquecer o objeto dele para lembrar-me
da minha dignidade.
não exponho ao ridículo depois de me expor à
baixeza. É baixeza, sim; não devia mendigar para o coração o amor de quem não
sabe compreender os grandes sentimentos. Paciência; fique com a sua traição; eu
ficarei com o meu amor; mas procurarei esquecer o objeto dele para lembrar-me
da minha dignidade.
Depois
desta tirada dita em tom sentimental e lacrimoso, Meneses encostou-se a uma
cadeira como para não cair. Houve um silêncio entre os dois. Cristiana falou em
primeiro lugar.
— Não
tenho direito, nem dever, nem vontade de averiguar a extensão e a sinceridade
desse amor; mas deixe que eu lhe observe; o seu casamento e a felicidade que
parece gozar nele protestam contra as alegações de hoje.
Meneses
levantou a cabeça, e disse:
— Oh! não
me exprobre o meu casamento! Que queria que eu fizesse quando uma pobre moça me
caiu nos braços declarando amar-me com delírio? Apoderou-se de mim um
sentimento de compaixão; foi todo o meu crime. Mas neste casamento não empenhei
tudo; dei a Eulália o meu nome e minha proteção; não lhe dei nem o meu coração
nem o meu amor.
— Mas essa
carta?
— A carta
será para mim uma lembrança, nada mais; uma espécie de espectro do amor que
existiu, e que me consolará no meio das minhas angústias.
— Preciso
da carta!
— Não!
Neste
momento entrou precipitadamente na sala a mulher de Meneses. Vinha pálida e
trêmula. Ao entrar trazia na mão duas cartas abertas. Não pôde deixar de dar um
grito ao ver a atitude meio suplicante de Cristiana e o olhar terno de Meneses.
Deu um grito e caiu sobre o sofá. Cristiana correu para ela.
Meneses,
lívido como a morte, mas cheio de uma tranqüilidade aparente, deu dois passos e
apanhou as cartas que caíram da mão de Eulália. Leu-as rapidamente. Descompuseram-se-lhe as feições.
Deixou Cristiana prestar os seus cuidados
de mulher a Eulália e foi para a janela. Aí fez em tiras miúdas as duas cartas,
e esperou, encostado à grade, que passasse a crise de sua mulher.
Eis aqui o
que se passara.
Os
leitores sabem que era aquele dia destinado à visita de Eulália a Cristina, visita
de que só Nogueira tinha conhecimento.
Eulália
deixou que Meneses viesse para a cidade e mandou aprontar um carro para ir à
casa de Cristiana. Entretanto, assaltou-lhe uma idéia. Se seu marido voltasse
para casa antes dela? Não queria causar-lhe impaciências ou cuidados, e arrependia-se
de nada lhe ter dito com antecipação. Mas era forçoso partir. Enquanto se
vestia ocorreu-lhe um meio. Deixar escritas duas linhas a Meneses dando-lhe
parte de que saíra, e dizendo-lhe para que fim. Redigiu a cartinha mentalmente
e dirigiu-se para o gabinete de Meneses.
Sobre a
mesa em que Meneses costumava trabalhar não havia papel. Devia haver na gaveta,
mas a chave estava seguramente com ele. Ia saindo para ir ver papel a outra parte, quando viu junto da porta
uma chave; era a da gaveta. Sem escrúpulo algum, travou da chave, abriu a
gaveta e tirou um caderno de papel. Escreveu
algumas linhas em uma folha, e deixou a folha sobre a mesa debaixo de um
pequeno globo de bronze. Guardou o resto do papel, e ia fechar a gaveta, quando
reparou em duas cartinhas que, entre outras muitas, se distinguiam por um
sobrescrito de letra trêmula e irregular, de caráter puramente feminino.
Olhou para
a porta a ver se alguém espreitava a sua curiosidade e abriu as cartinhas, que,
aliás, já se achavam descoladas. A primeira carta dizia assim:
Meu caro
Meneses. Está tudo acabado. Lúcia contou-me tudo. Adeus; esquece-te de mim. — MARGARIDA.
A segunda
carta era concebida nestes termos:
Meu caro
Meneses. Está tudo acabado. Margarida contou-me tudo. Adeus; esquece-te de mim.
— LÚCIA.
Como o
leitor adivinha, estas cartas eram as duas que Meneses recebera na tarde em que
andou passeando com Cristiana no jardim.
Eulália,
lendo estas duas cartas, quase teve uma síncope. Pôde conter-se, e, aproveitando
o carro que a esperava, foi buscar a Cristiana as consolações da amizade e os
conselhos da prudência.
Entrando
em casa de Cristiana pôde ouvir as últimas palavras do diálogo entre esta e
Meneses. Esta nova traição de seu marido quebrara-lhe a alma.
O resto
desta simples história conta-se em duas palavras.
Cristiana
conseguira acalmar o espírito de Eulália e inspirar-lhe sentimentos de perdão.
Entretanto, contou-lhe tudo o que ocorrera entre ela e Meneses, no presente e
no passado.
Eulália
mostrou ao princípio grandes desejos de separar-se de seu marido e ir viver com
Cristiana; mas os conselhos desta, que, entre as razões de decoro que apresentou
para que Eulália não tornasse pública a história das suas desgraças domésticas,
alegou a existência de uma filha do casal, que cumpria educar e proteger, esses
conselhos desviaram o espírito de Eulália dos seus primeiros projetos e
fizeram-na resignada ao suplício.
Nogueira
quase nada soube das ocorrências que acabo de narrar; mas soube quanto era
suficiente para esfriar a amizade que sentia por Meneses.
Quanto a
este, enfiado ao princípio com o desenlace das coisas, tomou de novo o ar
descuidoso e aparentemente singelo com que tratava tudo. Depois de uma mal alinhavada
explicação dada à mulher a respeito dos fatos que tão evidentemente o acusavam,
começou de novo a tratá-la com as mesmas carícias e cuidados do tempo em que merecia a confiança de Eulália.
Nunca mais
voltou ao casal Meneses a alegria franca e a plena satisfação dos primeiros
dias. Os afagos de Meneses encontravam sua mulher fria e indiferente, e se
alguma coisa mudava era o desprezo íntimo e crescente que Eulália votava a seu
marido.
A pobre
mãe, viúva da pior viuvez desta vida, que é aquela que anula o casamento
conservando o cônjuge, só vivia para sua filha.
Dizer como
acabaram ou como vão acabando as coisas não entra no plano deste escrito: o
desenlace ainda é mais vulgar que o corpo da ação.
Quanto ao
que há de vulgar em tudo o que acabo de contar, sou eu o primeiro a reconhecê-lo.
Mas que querem? Eu não pretendo senão esboçar quadros ou caracteres, conforme
me ocorrem ou vou encontrando. É isto e nada mais.
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Nota:
Texto-fonte: Obra
Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994,
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, novembro de 1864Disponível
digitalmente no site: Domínio Público
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