
O País das quimeras
(Conto fantástico)
Arrependera-se
Catão de haver ido algumas vezes por mar quando podia ir por erra. O virtuoso romano tinha razão. Os
carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas vezes funestos. Os feitos
marítimos dobram e valia por esta
circunstância, e é também por esta circunstância que se esquivam de navegar as
almas pacatas, ou, para falar mais decentemente, os espíritos prudentes e
seguros.
Mas, para
justificar o provérbio que diz: debaixo dos pés se levantam os trabalhos — a
via terrestre não é absolutamente mais segura que a via marítima, e a história
dos caminhos de ferro, pequena embora, conta já não poucos e tristes episódios.
Absorto
nestas e noutras reflexões estava o meu amigo Tito, poeta aos vinte anos, sem
dinheiro e sem bigode, sentado à mesa carunchosa do trabalho, onde ardia
silenciosamente uma vela.
Devo
proceder ao retrato físico e moral do meu amigo Tito.
Tito não é
nem alto nem baixo, o que equivale a dizer que é de estatura mediana, a qual
estatura é aquela que se pode chamar francamente elegante na minha opinião.
Possuindo um semblante angélico, uns olhos meigos e profundos, o nariz descendente
legítimo e direto do de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o
verdadeiro trono do pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e de
objeto amado aos corações de quinze e mesmo de vinte anos.
Como as
medalhas, e como todas as coisas deste mundo de compensações, Tito tem um
reverso. Oh! triste coisa que é o reverso das medalhas! Podendo ser, do colo
para cima, modelo à pintura, Tito é uma lastimosa pessoa no que toca ao resto.
Pés prodigiosamente tortos, pernas zambras, tais são os contras que a pessoa do
meu amigo oferece a quem se extasia diante dos magníficos prós da cara e da
cabeça. Parece que a natureza se
dividira para dar a Tito o que tinha de melhor e o que tinha de pior, e pô-lo
na miserável e desconsoladora condição do pavão, que se enfeita e contempla
radioso, mas cujo orgulho se abate e desfalece quando olha para as pernas e
para os pés.
No moral
Tito apresenta o mesmo aspecto duplo do físico. Não tem vícios, mas tem
fraquezas de caráter que quebram, um tanto ou quanto, as virtudes que o enobrecem.
É bom e tem a virtude evangélica da caridade; sabe, como o divino Mestre,
partir o pão da subsistência e dar de comer ao faminto, com verdadeiro júbilo
de consciência e de coração. Não consta, além disso, que jamais fizesse mal ao
mais impertinente bicho, ou ao mais insolente homem, duas coisas idênticas, nos
curtos dias da sua vida. Pelo contrário, conta-se que a sua piedade e bons
instintos o levaram uma vez a ficar quase esmagado, procurando salvar da morte
uma galga que dormia na rua, e sobre a qual ia quase passando um carro. A
galga, salva por Tito, afeiçoou-se-lhe tanto que
nunca mais o deixou; à hora em que o vemos
absorto em pensamentos vagos está ela estendida sobre a mesa a contemplá-lo
grave e sisuda.
nunca mais o deixou; à hora em que o vemos
absorto em pensamentos vagos está ela estendida sobre a mesa a contemplá-lo
grave e sisuda.
Só há que censurar
em Tito as
fraquezas de caráter, e deve-se crer que elas são filhas mesmo das suas
virtudes. Tito vendia outrora as produções da sua musa, não por meio de uma
permuta legítima de livro e moeda, mas por um meio desonroso e nada digno de um
filho de Apolo. As vendas que fazia eram absolutas, isto é, trocando por dinheiro os
seus versos, o poeta perdia o direito da paternidade sobre essas produções. Só
tinha um freguês; era um sujeito rico, maníaco pela fama de poeta, e que,
sabendo da facilidade com que Tito rimava,
apresentou-se um dia no modesto albergue do poeta e entabulou a negociação por
estes termos:
— Meu
caro, venho propor-lhe um negócio da China...
— Pode
falar, respondeu Tito.
— Ouvi
dizer que você fazia versos... É verdade?
Tito
conteve-se a custo diante da familiaridade do tratamento, e respondeu:
— É
verdade.
— Muito
bem. Proponho-lhe o seguinte: compro-lhe por bom preço todos os seus versos,
não os feitos, mas os que fizer de hoje em diante, com a condição de que os hei
de dar à estampa como obra da minha lavra. Não ponho outras condições ao
negócio: advirto-lhe, porém, que prefiro as odes e as poesias de sentimento.
Quer?
Quando o
sujeito acabou de falar, Tito levantou-se e com um gesto mandou-o sair. O sujeito pressentiu que, se não saísse
logo, as coisas poderiam acabar mal.
Preferiu tomar o caminho da porta, dizendo entre dentes: “Hás de procurar-me,
deixa estar!”
O meu
poeta esqueceu no dia seguinte a aventura da véspera, mas os dias passaram-se e
as necessidades urgentes apresentaram-se à porta com o olhar suplicante e as
mãos ameaçadoras. Ele não tinha recursos; depois de uma noite atribulada,
lembrou-se do sujeito, e tratou de procurá-lo; disse-lhe quem era, e que estava disposto a aceitar o
negócio; o sujeito, rindo-se com um riso diabólico, fez o primeiro adiantamento, sob a
condição de que o poeta lhe levaria no dia seguinte uma ode aos Polacos. Tito
passou a noite a arregimentar palavras sem idéia, tal era seu estado, e no dia
seguinte levou a obra ao freguês, que a achou boa e dignou-se apertar-lhe a
mão.
Tal é a
face moral de Tito. A virtude de ser pagador em dia levava-o a mercar com os
dons de Deus; e ainda assim vemos nós que ele resistiu, e só foi vencido quando
se achou com a corda ao pescoço.
A mesa à
qual Tito estava encostado era um traste velho e de lavor antigo; herdara-a de
uma tia que lhe havia morrido fazia dez anos. Um tinteiro de osso, uma pena de ave, algum papel, eis os
instrumentos de trabalho de Tito. Duas cadeiras e uma cama completavam a sua
mobília. Já falei na vela e na galga.
À hora em
que Tito se engolfava em reflexões e fantasias era noite alta. A chuva caía com
violência, e os relâmpagos que de instante a instante rompiam o céu deixavam
ver o horizonte pejado de nuvens negras e túmidas. Tito nada via, porque estava com a cabeça encostada nos
braços, e estes sobre a mesa; e é
provável que não ouvisse, porque se entretinha em refletir nos perigos que oferecem
os diferentes modos de viajar.

Mas qual o
motivo destes pensamentos em que se engolfava o poeta? É isso que eu vou
explicar à legitima curiosidade dos leitores. Tito, como todos os homens de
vinte anos, poetas e não poetas, sentia-se afetado da doença do amor. Uns olhos
pretos, um porte senhoril, uma visão, uma criatura celestial, qualquer coisa por este teor, havia influído
por tal modo no coração de Tito, que o pusera, pode-se dizer, à beira da
sepultura. O amor em Tito começou por uma febre; esteve três dias de cama, e
foi curado (da febre e não do amor) por uma velha da vizinhança, que conhecia o
segredo das plantas virtuosas, e que pôs o meu poeta de pé, com o que adquiriu
mais um título à reputação de feiticeira, que os seus milagrosos curativos lhe
haviam granjeado.
Passado o
período agudo da doença, ficou-lhe este resto de amor, que, apesar da calma e
da placidez, nada perde da sua intensidade. Tito estava ardentemente
apaixonado, e desde então começou a defraudar o freguês das odes,
subtraindo-lhe algumas estrofes inflamadas, que dedicava ao objeto dos seus
íntimos pensamentos, tal qual como aquele Sr. d’Ofayel, dos amores leais e
pudicos, com quem se pareceu, não na sensaboria dos versos, mas no infortúnio
amoroso.
O amor
contrariado, quando não leva a um desdém sublime da parte do coração, leva à
tragédia ou à asneira. Era nesta alternativa que se debatia o espírito do meu
poeta. Depois de haver gasto em vão o latim das musas, aventurou uma declaração oral à dama dos seus
pensamentos. Esta ouviu-o com dureza d’alma, e quando ele acabou de falar
disse-lhe que era melhor voltar à vida real, e deixar musas e amores, para
cuidar do alinho da própria pessoa. Não presuma o leitor que a dama de quem lhe
falo tinha a vida tão desenvolta como a língua. Era, pelo contrário, um
modelo da mais
seráfica pureza e do mais
perfeito recato de costumes; recebera a educação austera de seu pai, antigo
capitão de milícias, homem de incrível boa fé, que, neste século desabusado,
ainda acreditava em duas coisas: nos programas políticos e nas cebolas do
Egito.
Desenganado
de uma vez nas suas pretensões, Tito não teve força de ânimo para varrer da
memória a filha do militar; e a resposta crua e desapiedada da moça estava-lhe
no coração como um punhal frio e penetrante. Tentou arrancá-lo, mas a
lembrança, viva sempre, como ara de Vesta, trazia-lhe as fatais palavras ao
meio das suas horas mais alegres ou menos tristes da sua vida, como aviso de
que a sua satisfação não podia durar e que a tristeza era o fundo real dos seus
dias. Era assim que os egípcios mandavam pôr um sarcófago no meio de um festim,
como lembrança de que a vida é transitória, e que só na sepultura existe a
grande e eterna verdade.
Quando,
depois de voltar a si, Tito conseguiu encadear duas idéias e tirar delas uma
conseqüência, dois projetos se lhe apresentaram, qual mais próprio a granjear-lhe a vilta de pusilânime; um
concluía pela tragédia, outro pela asneira;
triste alternativa dos corações não compreendidos! O primeiro desses projetos era simplesmente deixar este mundo; o
outro, limitava-se a uma viagem, que o poeta faria por mar ou por terra, a fim
de deixar por algum tempo a capital. Já o poeta abandonava o primeiro por
achá-lo sanguinolento definitivo;
o segundo parecia-lhe melhor, mais consentâneo com a sua dignidade e sobretudo
com os seus instintos de conservação. Mas qual o meio de mudar de sítio? Tomaria por terra? tomaria
por mar? Qualquer destes dois meios tinha seus inconvenientes. Estava o poeta
nestas averiguações, quando ouviu que batiam à porta três pancadinhas. Quem
seria? Quem poderia ir procurar o poeta àquela hora? Lembrou-se que tinha umas
encomendas do homem das odes e foi abrir a porta disposto a ouvir resignado a
muito plausível sarabanda que ele lhe vinha naturalmente pregar. Mas, ó pasmo!
mal o poeta abriu a porta, eis que uma sílfide, uma criatura celestial,
vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem de
névoas, uma coisa entre
as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e
insinuante, olhos negros e cintilantes, cachos loiros do mais leve e delicado cabelo,
a caírem-lhe graciosos pelas espáduas nuas, divinas, como as tuas, ó Afrodite!
eis que uma criatura assim invade o aposento do poeta e, estendendo a mão,
ordena-lhe que feche a porta e tome assento à mesa.
Tito
estava assombrado. Maquinalmente voltou ao seu lugar sem tirar os olhos da
visão. Esta sentou-se defronte dele e começou a brincar com a galga que dava
mostras de não usado contentamento. Passaram-se nisto dez minutos; depois do
que a peregrina singular criatura cravando os seus olhos nos do poeta,
perguntou-lhe com uma doçura de voz nunca ouvida:
— Em que
pensas, poeta? Pranteias algum amor mal parado? Sofres com a injustiça dos
homens? Dói-te a desgraça alheia, ou é a própria que te sombreia a fronte?
Esta
indagação era feita de um modo tão insinuante que Tito, sem inquirir o motivo
da curiosidade, respondeu imediatamente:
— Penso na
injustiça de Deus.
— É
contraditória a expressão; Deus é a justiça.
— Não é.
Se fosse teria repartido irmãmente a ternura pelos corações e não consentiria que
um ardesse inutilmente pelo outro. O fenômeno da simpatia devia ser sempre recíproco, de maneira que a
mulher não pudesse olhar com frieza para o homem, quando o homem levantasse
olhos de amor para ela.
— Não és
tu quem fala, poeta. É o teu amor-próprio ferido pela má paga do teu afeto. Mas
de que te servem as musas? Entra no santuário da poesia, engolfa- te no seio da
inspiração, esquecerás aí a dor da chaga que o mundo te abriu.
— Coitado
de mim, respondeu o poeta, que tenho a poesia fria, e apagada a inspiração!
— De que
precisas tu para dar vida à poesia e à inspiração?
— Preciso
do que me falta... e falta-me tudo.
— Tudo? És
exagerado. Tens o selo com que Deus te distinguiu dos outros homens e isso te basta. Cismavas em deixar
esta terra?
— É
verdade.
— Bem;
venho a propósito. Queres ir comigo?
— Para
onde?
— Que
importa? Queres vir?
— Quero.
Assim me distrairei. Partiremos amanhã. É por mar, ou por terra?
— Nem
amanhã, nem por mar, nem por terra; mas hoje, e pelo ar.
Tito
levantou-se e recuou. A visão levantou-se também.
— Tens
medo? perguntou ela.
— Medo,
não, mas...

— Vamos.
Faremos uma deliciosa viagem.
— Vamos.
Não sei se
Tito esperava um balão para a viagem aérea a que o convidava a inesperada
visita; mas, o que é certo, é que os seus olhos se arregalaram prodigiosamente
quando viu abrirem-se das espáduas da visão duas longas e brancas asas que ela
começou a agitar e das quais caía uma poeira de ouro.
— Vamos,
disse a visão.
Tito
repetiu maquinalmente:
— Vamos!
E ela
tomou-o nos braços, subiu com ele até o teto, que se rasgou, e passaram ambos,
visão e poeta. A tempestade tinha, como por encanto, cessado; estava o céu
limpo, transparente, luminoso, verdadeiramente celeste, enfim. As estrelas
fulgiam com a sua melhor luz, e um luar branco e poético caía sobre os telhados
das casas e sobre as flores e a relva dos campos.
Os dois
subiram.
Durou a
ascensão algum tempo. Tito não podia pensar; ia atordoado, e subia sem saber
para onde, nem a razão por quê. Sentia que o vento agitava os cabelos loiros da
visão, e que eles lhe batiam docemente na face, do que resultava uma exalação
celeste que embriagava e adormecia. O ar estava puro e fresco. Tito, que se
havia distraído algum tempo da ocupação das musas no estudo das leis físicas,
contava que, naquele subir continuado, breve chegariam a sentir os efeitos da
rarefação da atmosfera. Engano dele! Subiam sempre, e muito, mas a atmosfera
conservava-se sempre a mesma, e quanto mais ele subia melhor respirava.
Isto
passou rápido pela mente do poeta. Como disse, ele não pensava; ia subindo sem olhar para a terra. E para que
olharia para a terra? A visão não podia conduzi-lo senão ao céu.
Em breve
começou Tito a ver os planetas fronte por fronte. Era já sobre a madrugada. Vênus,
mais pálida e loira que de costume, ofuscava as estrelas com o seu clarão e com
a sua beleza. Tito teve um olhar de admiração para a deusa da manhã. Mas subia,
subiam sempre. Os planetas passavam à ilharga do poeta, como se fossem corcéis
desenfreados. Afinal penetraram em uma região inteiramente diversa das que
haviam atravessado naquela assombrosa viagem. Tito sentiu expandir-se-lhe a
alma na nova atmosfera. Seria aquilo o céu? O poeta não ousava perguntar, e
mudo esperava o termo da viagem. À proporção que penetravam nessa região ia-se
a alma do poeta rompendo em júbilo; daí a algum tempo entravam em um planeta; a
fada depôs o poeta e começaram a fazer o trajeto a pé.
Caminhando,
os objetos, até então vistos através de um nevoeiro, tomavam aspecto de coisas
reais. Tito pôde ver então que se achava em uma nova terra, a todos os
respeitos estranha: o primeiro aspecto vencia ao que oferece a poética Istambul
ou a poética Nápoles. Mais entravam, porém, mais os objetos tomavam o aspecto
da realidade. Assim chegaram à grande praça onde estavam construídos os reais
paços. A habitação régia era, por assim dizer, uma reunião de todas as ordens arquitetônicas,
sem excluir a chinesa, sendo de notar que esta última fazia não mediana despesa
na estrutura do palácio.
Tito quis
sair da ânsia em que estava por saber em que país acabava de entrar, e
aventurou uma pergunta à sua companheira.

— Estamos
no país das Quimeras, respondeu ela.
— No país
das Quimeras?
— Das
Quimeras. País para onde viaja três quartas partes do gênero humano, mas que não se acha consignado nas tábuas da
ciência.
Tito
contentou-se com a explicação. Mas refletiu sobre o caso. Por que motivo iria
parar ali? A que era levado? Estava nisto quando a fada o advertiu de que eram
chegados à porta do palácio. No vestíbulo havia uns vinte ou trinta soldados
que fumavam em grosso cachimbo de escuma do mar, e que se embriagavam com
outros tantos padixás, na contemplação dos novelos de fumo azul e branco que
lhes saíam da boca. À entrada dos dois houve continência militar. Subiram pela
grande escadaria, e foram ter aos andares superiores.
— Vamos
falar aos soberanos, disse a companheira do poeta. Atravessaram muitas salas e
galerias. Todas as paredes, como no
poema de Dinis,
eram forradas de papel prateado e
lantejoulas.
Afinal
penetraram na grande sala. O gênio das bagatelas, de que fala Elpino, estava
sentado em um trono de casquinha, tendo de ornamento dois pavões, um de cada lado. O próprio soberano tinha por
coifa um pavão vivo, atado pelos pés a uma espécie de solidéu, maior que os dos
nossos padres, o qual por sua vez ficava firme na cabeça por meio de duas largas fitas amarelas, que vinham atar-se debaixo dos reais
queixos. Coifa idêntica adornava a cabeça dos gênios da corte, que correspondem
aos viscondes deste mundo e que cercavam o trono do brilhante rei. Todos
aqueles pavões, de minuto a minuto, armavam-se, apavoneavam-se, e davam os
guinchos do costume.
Quando
Tito entrou na grande sala pela mão da visão, houve um murmúrio entre os
fidalgos quiméricos. A visão declarou que ia apresentar um filho da terra.
Seguiu-se a cerimônia da apresentação, que era uma enfiada de cortesias,
passagens e outras coisas quiméricas, sem excluir a formalidade do beija-mão.
Não se pense que Tito foi o único a beijar a mão ao gênio soberano; todos os
presentes fizeram o mesmo, porque, segundo Tito ouviu depois, não se dá naquele
país o ato mais insignificante sem que esta formalidade seja preenchida.
Depois da
cerimônia da apresentação perguntou o soberano ao poeta que tratamento tinha na terra, para dar-se-lhe
cicerone correspondente.
— Eu,
disse Tito, tenho, se tanto, uma triste Mercê.
— Só isso?
Pois há de ter o desprazer de ser acompanhado pelo cicerone comum. Nós temos cá
a Senhoria, a Excelência, a Grandeza, e outras mais; mas, quanto à Mercê, essa,
tendo habitado algum tempo este país, tornou-se tão pouco útil que julguei
melhor despedi-la.
A este
tempo a Senhoria e a Excelência, duas criaturas empertigadas, que se haviam
aproximado do poeta, voltaram-lhe as costas, encolhendo os ombros e deitando-lhe
um olhar de través com a maior expressão de desdém e pouco caso.
Tito quis
perguntar à sua companheira o motivo deste ato daquelas duas quiméricas
pessoas; mas a visão puxou-lhe pelo braço, e fez-lhe ver com um gesto que
estava desatendendo ao Gênio das Bagatelas, cujos sobrolhos se contraíram, como
dizem os poetas antigos que se contraíam os de Júpiter
Tonante.
Tonante.
Neste
momento entrou um bando de moçoilas frescas, lépidas, bonitas e loiras... oh!
mas de um loiro que se não conhece entre nós, os filhos da terra! Entraram elas a correr, com a agilidade de
andorinhas que voam; e depois de apertarem galhofeiramente a mão aos gênios da
corte foram ao Gênio soberano, diante de quem fizeram umas dez ou doze mesuras.
Quem eram
aquelas raparigas? O meu poeta estava de boca aberta. Indagou da sua guia, e
soube. Eram as Utopias e as Quimeras que iam da terra, onde haviam passado a
noite na companhia de alguns homens e mulheres de todas as idades e condições.
As Utopias
e as Quimeras foram festejadas pelo soberano, que se dignou sorrir-lhes e
bater-lhes na face. Elas alegres e risonhas receberam os carinhos reais como
coisa que lhes era devida; e depois de dez ou doze mesuras, repetição das anteriores,
foram-se da sala, não sem abraçarem ou beliscarem o meu poeta, que olhava
espantado para elas sem saber por que se tornara objeto de tanta jovialidade. O
seu espanto crescia de ponto quando ouvia a cada uma delas esta expressão muito
usada nos bailes de máscaras: Eu te
conheço!
Depois que
saíram todas, o Gênio fez um sinal, e toda a atenção concentrou-se no soberano,
a ver o que ia sair-lhe dos lábios. A expectativa foi burlada, porque o
gracioso soberano apenas com um gesto indicou ao cicerone comum o mísero
hóspede que daqui tinha ido. Seguiu-se a cerimônia da saída, que durou longos
minutos, em virtude das mesuras, cortesias e beija-mão do estilo.
Os três, o
poeta, a fada condutora e o cicerone, passaram à sala da rainha. A real senhora
era uma pessoa digna de atenção a todos os respeitos; era imponente e graciosa;
trajava vestido de gaze e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim alvo, pedras finas de
todas as espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça; na cara trazia
posturas finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido corada pelo pincel
da natureza; dos cabelos recendiam ativos cosméticos e delicados óleos.
Tito não
disfarçou a impressão que lhe causava um todo assim. Voltou-se para a
companheira de viagem e perguntou como se chamava aquela deusa.
— Não a
vê? respondeu a fada; não vê as trezentas raparigas que trabalham em torno dela? Pois então? é a Moda, cercada
de suas trezentas belas, caprichosas filhas.
A estas
palavras Tito lembrou-se do Hissope. Não duvidava já de que estava no país das Quimeras; mas,
raciocinou ele, para que Dinis falasse de algumas destas coisas, é preciso que
cá tivesse vindo e voltasse, como está averiguado. Portanto, não devo recear de
cá ficar morando eternamente. Descansado por este lado, passou a atentar para
os trabalhos das companheiras da rainha; eram umas novas modas que se estavam
arranjando, para vir a este mundo substituir as antigas.
Houve
apresentação com o cerimonial do estilo. Tito estremeceu quando pousou os
lábios na mão fina e macia da soberana; esta não reparou, porque tinha na mão esquerda um psiquê, onde se
mirava de momento em momento.
Impetraram
os três licença para continuar a visita do palácio e seguiram pelas galerias e
salas do alcáçar. Cada sala era ocupada por um grupo de pessoas, homens ou mulheres, algumas vezes mulheres e
homens, que se ocupavam nos diferentes misteres de que estavam incumbidos pela
lei do país, ou por ordem arbitrária do soberano. Tito percorria essas diversas
salas com o olhar
espantado, estranhando o que via, aquelas
ocupações, aqueles costumes, aqueles
caracteres. Em uma das salas um grupo de cem pessoas ocupava-se em adelgaçar uma massa branca, leve e balofa.
Naturalmente este lugar é a ucharia, pensou Tito; estão preparando alguma
iguaria singular para o almoço do rei.
Indagou do cicerone se havia acertado. O cicerone respondeu:
espantado, estranhando o que via, aquelas
ocupações, aqueles costumes, aqueles
caracteres. Em uma das salas um grupo de cem pessoas ocupava-se em adelgaçar uma massa branca, leve e balofa.
Naturalmente este lugar é a ucharia, pensou Tito; estão preparando alguma
iguaria singular para o almoço do rei.
Indagou do cicerone se havia acertado. O cicerone respondeu:
— Não,
senhor; estes homens estão ocupados em preparar massa cerebral para um certo
número de homens de todas as classes: estadistas, poetas, namorados, etc.;
serve também a mulheres. Esta massa é especialmente para aqueles que, no seu
planeta, vivem com verdadeiras disposições do nosso país, aos quais fazemos
presente deste elemento constitutivo.
— É massa
quimérica?
— Da
melhor que se há visto até hoje.
— Pode
ver-se?
O cicerone
sorriu; chamou o chefe da sala, a quem pediu um pouco de massa. Este foi com prontidão ao depósito e tirou uma
porção que entregou a Tito. Mal o poeta a tomou das mãos do chefe desfez-se a
massa, como se fora composta de fumo. Tito ficou confuso; mas o chefe,
batendo-lhe no ombro:
— Vá
descansado, disse; nós temos à mão matéria-prima; é da nossa própria atmosfera
que nos servimos; e a nossa atmosfera não se esgota.
Este chefe
tinha uma cara insinuante, mas, como todos os quiméricos, era sujeito a
abstrações, de modo que Tito não pôde arrancar-lhe mais uma palavra, porque
ele, ao dizer as últimas, começou a olhar para o ar e a
contemplar
o vôo de uma mosca.
Este caso
atraiu os companheiros que se chegaram a ele e mergulharam-se todos na contemplação do alado inseto.
Os três
continuaram caminho.
Mais
adiante era uma sala onde muitos quiméricos, à roda de mesas, discutiam os
diferentes modos de inspirar aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os
pretextos para encher o tempo e apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos.
Esses homens tinham ares de finos e espertos. Havia ordem do soberano
para não se entrar naquela sala em horas de trabalho; uma guarda estava à
porta. A menor distração daquele congresso seria considerada uma calamidade
pública.
Andou o
meu poeta de sala em sala, de galeria em galeria, aqui, visitando um museu,
ali, um trabalho ou um jogo; teve tempo de ver tudo, de tudo examinar, com
atenção e pelo miúdo. Ao passar pela grande galeria que dava para a praça, viu
que o povo, reunido embaixo das janelas, cercava uma forca. Era uma execução
que ia ter lugar. Crime de morte? perguntou Tito, que tinha a nossa legislação
na cabeça. Não, responderam-lhe, crime de lesa-cortesia. Era um quimérico que
havia cometido o crime de não fazer a tempo e com graça uma continência; este
crime é considerado naquele país como a maior audácia possível e imaginável. O
povo quimérico contemplou a execução como se assistisse a um espetáculo de
saltimbancos, entre aplausos e gritos de prazer.
Entretanto
era a hora do almoço real. À mesa do gênio soberano só se sentavam o rei, a
rainha, dois ministros, um médico e a encantadora fada que havia levado o meu
poeta àquelas alturas. A fada, antes de sentar-se à mesa, implorou do rei a mercê de admitir Tito ao
almoço; a resposta foi afirmativa; Tito tomou
assento. O almoço foi o mais sucinto e rápido que é possível imaginar. Durou
alguns segundos, depois do que todos se levantaram, e abriu-se mesa para o jogo
das reais pessoas; Tito foi assistir ao jogo; em roda da sala havia cadeiras,
onde estavam sentadas as Utopias e as Quimeras; às costas dessas cadeiras
empertigavam-se os fidalgos quiméricos, com os seus pavões e as suas vestiduras
de escarlate. Tito aproveitou a ocasião para saber como é que o conheciam
aquelas assanhadas raparigas. Encostou-se a uma cadeira e indagou da Utopia que
se achava nesse lugar. Esta impetrou licença, e depois das formalidades do
costume, retirou-se a uma das salas com o poeta, e aí perguntou-lhe:
— Pois
deveras não sabes quem somos? Não nos conheces?
— Não as
conheço, isto é, conheço-as agora, e isso dá-me verdadeiro pesar, porque
quisera tê-las conhecido há mais tempo.
— Oh!
sempre poeta!
— É que
deveras são de uma gentileza sem rival. Mas onde é que me viram?
— Em tua
própria casa.
— Oh!
— Não te
lembras? À noite, cansado das lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e aí, abrindo velas ao pensamento, deixas-te
ir por um mar sereno e calmo. Nessa
viagem acompanham-te algumas raparigas... somos nós, as Utopias, nós, as Quimeras.
Tito
compreendeu afinal uma coisa que se lhe estava a dizer havia tanto tempo.
Sorriu-se, e cravando os seus belos e namorados olhos nos da Utopia, que tinha
diante de si, disse:
— Ah! sois
vós, é verdade! Consoladora companhia que me distrai de todas as misérias e pesares. É no seio de vós que eu
enxugo as minhas lágrimas. Ainda bem! Conforta-me ver-vos a todas de face e
embaixo de forma palpável.
— E queres
saber, tornou a Utopia, quem nos leva a todas para tua companhia? Olha, vê.
O poeta
voltou a cabeça e viu a peregrina visão, sua companheira de viagem.
— Ah! é
ela! disse o poeta.
— É
verdade. É a loira Fantasia, a companheira desvelada dos que pensam e dos que
sentem.
A Fantasia
e a Utopia entrelaçaram-se as mãos e olhavam para Tito. Este, como que
enlevado, olhava para ambas. Durou isto alguns segundos; o poeta quis fazer
algumas perguntas, mas quando ia falar reparou que as duas se haviam tornado
mais delgadas e vaporosas. Articulou alguma coisa; porém, vendo que elas iam
ficando cada vez mais transparentes, e distinguindo-lhes já pouco as feições,
soltou estas palavras: — Então! que é isto? por que se desfazem assim? — Mais e
mais as sombras desapareciam, o poeta correu à sala do jogo; espetáculo idêntico
o esperava; era pavoroso; todas as figuras se desfaziam como se fossem feitas
de névoa. Atônito e palpitante, Tito percorreu algumas galerias e afinal saiu à
praça; todos os objetos estavam sofrendo a mesma transformação. Dentro de pouco
Tito sentiu que lhe faltava apoio aos pés e viu que estava solto no espaço.
Nesta
situação soltou um grito de dor. Fechou os olhos e deixou-se ir como se tivesse
de encontrar por termo de viagem a morte.
Era na
verdade o mais provável. Passados alguns segundos, Tito abriu os olhos e viu
que caía perpendicularmente sobre um ponto negro que lhe parecia do tamanho de
um ovo. O corpo rasgava como raio o espaço. O ponto negro cresceu, cresceu, e
cresceu até fazer-se do tamanho de uma esfera. A queda do poeta tinha alguma
coisa de diabólica; ele soltava de vez em quando um gemido; o ar, batendo-lhe
nos olhos, obrigava-o a fechá-los de instante a instante. Afinal, o ponto negro
que havia crescido, continuava a crescer, até aparecer ao poeta com o aspecto
da terra. É a terra! disse Tito consigo.
Creio que
não haverá expressão humana para mostrar a alegria que sentiu aquela alma,
perdida no espaço, quando reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta
foi a alegria. Tito pensou, e pensou bem, que naquela velocidade quando tocasse
em terra seria para nunca mais levantar. Teve um calafrio: viu a morte diante
de si, e encomendou a alma a Deus. Assim foi, foi, ou antes, veio, veio, até
que — milagre dos milagres! — caiu sobre uma praia, de pé, firme como se não houvesse dado aquele
infernal salto.
A primeira
impressão, quando se viu em terra, foi de satisfação; depois tratou de ver em
que região do planeta se achava; podia ter caído na Sibéria ou na China;
verificou que se achava a dois passos de casa. Apressou-se o poeta a voltar aos
seus pacíficos lares.
A vela
estava gasta; a galga, estendida sob a mesa, tinha os olhos fitos na porta.
Tito entrou e atirou-se sobre a cama, onde adormeceu, refletindo no que lhe
acabava de acontecer.
Desde
então Tito possui um olhar de lince, e diz, à primeira vista, se um homem traz
na cabeça miolos ou massa quimérica. Devo declarar que poucos encontra que não
façam provisão desta última espécie. Diz ele, e tenho razões para crer, que eu
entro no número das pouquíssimas exceções. Em que pese aos meus desafeiçoados,
não posso retirar a minha confiança de um homem que acaba de fazer tão pasmosa
viagem, e que pôde olhar de face o trono cintilante do rei das Bagatelas.
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Nota:
Texto-Fonte: Publicado originalmente em O Futuro, 1862.
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