
UMA EXCURSÃO MILAGROSA
Tenho uma viagem milagrosa para contar aos leitores, ou antes uma
narração para transmitir, porque o
próprio viajante é quem narra as suas aventuras e as suas impressões.
Se a chamo
milagrosa é porque as circunstâncias em que foi feita são tão singulares, que a
todos há de parecer que não podia ser senão um milagre. Todavia, apesar das estradas que o nosso
viajante percorreu, dos condutores que teve e do espetáculo que viu, não se
pode deixar de reconhecer que o fundo é o mais natural e possível deste mundo.
Suponho
que os leitores terão lido todas as memórias de viagem, desde as viagens do
Capitão Cook às regiões polares até as viagens de Gulliver, e todas as histórias
extraordinárias desde as narrativas de Edgar Poe até os contos de Mil e Uma Noites. Pois tudo isso
é nada à vista das excursões singulares do nosso herói, a quem só falta o
estilo de Swift para ser levado à mais remota posteridade.
As histórias de viagem são as de minha predileção. Julgue-o quem não pode experimentá-lo, disse o épico português. Quem não há de ir ver as coisas com os próprios olhos da cara, diverte-se ao menos em
vê-las com os da imaginação, muito mais vivos e penetrantes.
Viajar é
multiplicar-se.
Mas, devo
dizê-lo com toda a franqueza, quando ouço dizer a alguém que já atravessou por
gosto doze, quinze vezes o Oceano, não sei que sinto em mim que me leva a
adorar o referido alguém. Ver doze vezes o Oceano, roçar-lhe doze vezes a cerviz, doze vezes admirar as suas
cóleras, doze vezes admirar os seus espetáculos, não é isto gozar na verdadeira
extensão da palavra?
Se em vez
do Oceano me falam nas florestas e contam-me mil episódios de uma viagem
através do templo dos cedros e dos jequitibás, ouvindo o silêncio e a sombra,
respirando os faustos daqueles palácios da natureza, gozando, vivendo, apesar
dos tigres, das serpes, então o gozo pode mudar de aspecto, mas é o mesmo gozo
elevado, puro, grandioso.
O mesmo se
dá se a viagem for através dos cadáveres das cidades antigas, dos desertos da
Arábia, dos gelos do Norte. Tudo chama o espírito, e o educa, e o eleva, e o transforma.
Das
viagens sedentárias só conheço duas capazes de recrear. A Viagem à Roda do Meu Quarto, e a Viagem à Roda do Meu Jardim, de Maistre e Alphonse Karr.
Ora, com
todo este gosto pelas viagens, ainda assim eu não desejaria fazer a viagem do
herói desta narrativa. Viu muita coisa, é certo; e voltou de lá com a bagagem
cheia dos meios de apreciar os fracos da humanidade. Mas por tantas coisas
quantos trabalhos!
* * *
Arrependera-se
Catão de haver ido algumas vezes por mar quando podia ir por terra. O virtuoso
romano tinha razão. Os carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas
vezes funestos. Os feitos marítimos dobram de valia por esta circunstância, que
se esquivam de navegar as almas pacatas, ou para falar mais decentemente, os espíritos
prudentes e seguros.
Mas para
justificar o provérbio que diz: — debaixo dos pés se levantam os trabalhos — a via terrestre não é
absolutamente mais segura que a via marítima, e a história dos caminhos de
ferro, pequena embora, conta já não poucos e tristes episódios.
Absorto
nestas e noutras reflexões estava o meu amigo. Tito, poeta aos vinte anos, sem
dinheiro e sem bigode, sentado à mesa carunchosa do trabalho, onde ardia
silenciosamente uma vela.
Devo
proceder ao retrato físico e moral do meu amigo Tito.
Tito não é
nem alto, nem baixo, o que equivale a dizer que é de estatura mediana, a qual estatura é aquela que se pode chamar
francamente elegante, na minha opinião. Possuindo um semblante angélico, uns
olhos meigos e profundos, o nariz descendente legítimo e direto do de
Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o verdadeiro trono do
pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e de objeto amado aos corações
de quinze e mesmo de vinte anos.
Como as
medalhas, e como todas as coisas deste mundo de compensações, Tito tem um
reverso. Oh! triste coisa que é o reverso da cara e da cabeça. Parece que a
natureza se dividira para dar a Tito o que tinha de melhor e o que tinha de
pior, e pô-lo na miserável e desconsoladora condição do pavão que se enfeita e contempla
radioso, mas cujo orgulho se abate e desfalece quando olha para as pernas e
para os pés.
No moral
Tito apresenta o mesmo aspecto duplo do físico. Não tem vícios, mas tem
fraquezas de caráter que quebram, um tanto ou quanto, as virtudes que o enobrecem.
É bom e tem a virtude evangélica da caridade; sabe, como o divino Mestre,
partir o pão da subsistência e dar de comer ao faminto com verdadeiro júbilo de
consciência e de coração. Não consta, além disso, que jamais fizesse mal ao mais
impertinente bicho, ou ao mais insolente homem, duas coisas idênticas, nos
curtos dias da sua vida. Pelo contrário, conta-se que a sua piedade e bons instintos
o levaram uma vez a ficar quase esmagado, procurando salvar da morte uma galga
que dormia na rua e sobre a qual ia quase quase passando um carro. A galga
salva por Tito afeiçoou-se-lhe tanto que nunca mais o deixou; à hora em que o vemos absorto em pensamentos vagos está
ela estendida sobre a mesa a contemplá-lo grave e sisuda.
Só há que
censurar em Tito as fraquezas de caráter, e deve-se crer que elas são filhas
mesmo das suas virtudes. Tito vendia outrora as produções da sua musa, não por
meio de uma permuta legítima de livro e moeda, mas por um meio desonroso e nada
digno de um filho de Apolo. As vendas que fazia eram absolutas, isto é,
trocando por dinheiro os seus versos, o poeta perdia o direito de paternidade sobre essas produções. Só tinha um
freguês, era um sujeito rico, maníaco pela fama de poeta, e que sabendo da
facilidade com que Tito rimava apresentou-se um dia no modesto albergue do
poeta e entabulou a negociação
por estes termos:
por estes termos:
— Meu
caro, venho propor-lhe um negócio da China...
— Pode
falar, respondeu Tito.
— Ouvi
dizer que você fazia versos... É verdade?
Tito
conteve-se a custo diante da familiaridade do tratamento, e respondeu:
— É
verdade.
— Muito
bem. Proponho-lhe o seguinte. Compro-lhe por bom preço todos os seus versos,
não os feitos, mas os que fizer de hoje em diante, com a condição de que os hei
de dar à estampa como obra da minha lavra. Não ponho outras condições ao
negócio: advirto-lhe, porém, que prefiro as odes e as poesias de sentimento. Quer?
Quando o
sujeito acabou de falar, Tito levantou-se, e com um gesto mandou-o sair. O
sujeito pressentiu que, se não saísse logo, as coisas poderiam acabar mal. Preferiu
tomar o caminho da porta, dizendo entre dentes: “Hás de procurar-me, deixa
estar”.
O meu
poeta esqueceu no dia seguinte a aventura da véspera, mas os dias passaram-se e as necessidades urgentes apresentaram-se
à porta com olhar suplicante e as mãos ameaçadoras. Ele não tinha recursos;
depois de uma noite atribulada lembrou-se do sujeito, e tratou de procurá-lo;
disse-lhe quem era, e que estava disposto a aceitar o negócio; o sujeito,
rindo-se com um riso diabólico, fez o primeiro adiantamento, sob a condição de
que o poeta lhe levaria no dia seguinte uma ode aos polacos.
Tito
passou a noite a arregimentar palavras sem idéias, tal era o seu estado, e no dia
seguinte levou a obra ao freguês, que a achou boa e dignou-se apertar-lhe a mão.
Tal é a
face moral de Tito. A virtude de ser pagador em dia levava-o a mercar com os
dons de Deus; e ainda assim vemos nós que ele resistiu, e só foi vencido quando
se achou com a corda ao pescoço.
A mesa à
qual Tito estava encostado era um traste velho e de lavor antigo, herdara-o de uma tia que lhe havia morrido
fazia dez anos. Um tinteiro de osso, uma pena de ave, algum papel, eis os
instrumentos de trabalho de Tito. Duas cadeiras e uma cama completavam a sua
mobília. Já falei na vela e na galga. À hora em que Tito se engolfava em
reflexões e fantasias era noite alta. A chuva caía com violência e os
relâmpagos que de instante a instante rompiam o céu deixavam ver o horizonte
pejado de nuvens negras e túmidas. Tito nada via, porque estava com a cabeça
encostada nos braços, e estes sobre a mesa; e é provável que nada ouvisse,
porque se entretinha em refletir nos perigos que oferecem os diferentes modos
de viajar.
Mas qual o
motivo destes pensamentos em que se engolfava o poeta? É isso que eu vou
explicar à legítima curiosidade dos leitores. Tito, como todos os homens de vinte
anos, poetas e não poetas, sentia-se afetado da doença do amor. Uns olhos pretos,
um porte senhoril, uma visão, uma criatura celestial, qualquer coisa por este teor, havia influído por tal modo no
coração de Tito, que o pusera, pode-se dizer, à beira da sepultura. O amor em
Tito começou por uma febre; esteve três dias de cama e foi curado (da febre e
não do amor) por uma velha da vizinhança, que conhecia o segredo das plantas
virtuosas, e que pôs o meu poeta de pé, com o que adquiriu mais um título à
reputação de feiticeira que os seus milagrosos curativos lhe haviam granjeado.
Passado o
período agudo da doença, ficou-lhe esse resto de amor que, apesar da calma e da
placidez, nada perde da sua intensidade. Tito estava ardentemente apaixonado, e desde então começou a defraudar
o freguês das odes, subtraindo-lhe algumas estrofes inflamadas, que dedicava ao
objeto dos seus íntimos pensamentos, tal qual como aquele Sr. d’Ofayel, dos amores leais e pudicos, com quem se
pareceu, não na sensaboria dos versos, mas no infortúnio amoroso.
O amor
contrariado, quando não leva a um desdém sublime da parte do coração, leva à
tragédia ou à asneira. Era nesta alternativa que se debatia o espírito do meu
poeta. Depois de haver gasto em vão o latim das musas, aventurou uma declaração
oral à dama dos seus pensamentos. Esta ouviu-o com dureza d’alma, e quando ele
acabou de falar disse-lhe que era melhor voltar à vida real e deixar musas e
amores, para cuidar do alinho da própria pessoa. Não presuma o leitor que a
dama de quem lhe falo tinha a vida tão desenvolta como a língua. Era, pelo contrário, um modelo da mais seráfica pureza e
do mais perfeito recato de costumes:
recebera a educação austera de seu pai, antigo capitão de milícias, homem de
incrível boa-fé, que neste século desabusado, ainda acreditava em duas coisas:
nos programas políticos e nas cebolas do Egito. Desenganado de uma vez nas suas
pretensões, Tito não teve força de ânimo para varrer da memória a filha do
militar; e a resposta crua e desapiedada da moça estava-lhe no coração como um
punhal frio e penetrante. Tentou arrancá-lo, mas a lembrança, viva sempre, como ara de Vesta, trazia-lhe as
fatais palavras ao meio das horas mais alegres ou menos tristes da sua vida,
como aviso de que a sua satisfação não podia
durar e que a tristeza era o fundo real dos seus dias. Era assim que os egípcios
mandavam pôr um sarcófago no meio de um festim, como lembrança de que a vida é
transitória, e que só na sepultura existe a grande e eterna verdade.
Quando,
depois de voltar a si, Tito conseguiu encadear duas idéias e tirar delas uma
conseqüência, dois projetos se lhe apresentaram, qual mais próprio a granjear-lhe
a vilta de pusilânime; um concluía pela tragédia, outro pela asneira; triste
alternativa dos corações não compreendidos! O primeiro desses projetos era simplesmente
deixar este mundo, o outro limitava-se a uma viagem, que o poeta faria por mar
ou por terra, a fim de deixar por algum tempo a capital. Já o poeta abandonava
o primeiro por achá-lo sanguinolento e definitivo; o segundo parecia-lhe
melhor, mais consentâneo com a sua dignidade e sobretudo com os seus instintos de conservação. Mas qual o meio de
mudar de sítio? Tomaria por terra? tomaria por mar? Qualquer destes dois meios
tinham seus inconvenientes. Estava o poeta nestas averiguações, quando ouviu
que batiam à porta três pancadinhas. Quem seria? Quem poderia ir procurar o
poeta àquela hora? Lembrou-se que tinha umas
encomendas do homem das odes e foi abrir a porta disposto a ouvir resignado a
muito plausível sarabanda que ele lhe vinha naturalmente pregar.
Aqui deixa
de falar o autor para falar o protagonista. Não quero tirar o encanto natural que
há de ter a narrativa do poeta reproduzindo as suas próprias impressões.
O poeta
foi, como disse, abrir a porta.
Diz ele:
* * *
“... Mas,
oh! pasmo! eis que uma sílfide, uma criatura celestial, vaporosa, fantástica,
trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem névoas, uma coisa entre as duas
espécies, pés alígeros, rosto sereno e insinuante, olhos negros e cintilantes,
cachos louros do mais leve e delicado cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas
espáduas nuas, divinas, como as tuas, ó Afrodita; eis que uma criatura assim
invade o meu aposento, e estendendo a mão ordena-me que feche a porta e tome assento à mesa.

Eu estava
assombrado. Maquinalmente voltei ao meu lugar sem tirar os olhos da visão. Esta
sentou-se defronte de mim e começou a brincar com a galga, que dava mostras de
não usado contentamento. Passaram-se nisto dez minutos; depois do que a singular criatura, cravando os seus
olhos nos meus, perguntou-me com uma doçura de voz nunca ouvida:
— Em que
pensas, poeta? Pranteias algum amor mal parado? Sofres com a injustiça dos
homens? Dói-te a desgraça alheia ou é a própria que te sombreia a fronte?
Esta
indagação era feita de um modo tão insinuante que eu, sem inquirir o motivo da curiosidade, respondi imediatamente:
— Penso na
injustiça de Deus.
— É
contraditória a expressão: Deus é a justiça.
— Não é.
Se fosse teria repartido irmãmente a ternura pelos corações e não consentiria
que um ardesse inutilmente pelo outro. O fenômeno da simpatia devia ser sempre
recíproco, de maneira que a mulher não pudesse olhar com frieza para o homem quando o homem levantasse os olhos de
amor para ela.
— Não és
tu quem fala, poeta. É o teu amor-próprio ferido pela má paga do teu afeto. Mas
de que te servem as musas? Ainda não vieram a ti, como eternas consoladoras que
são? Entra no santuário da poesia, engolfa-te no seio da inspiração, esquecerás
aí a dor da chaga que o mundo te abriu.
— Coitado
de mim, que tenho a poesia fria, e apagada a inspiração.
— De que
precisas tu para dar vida à poesia e à inspiração?
— Preciso
do que me falta... e falta-me tudo.
— Tudo? É
exagerado. Tens o selo com que Deus te distinguiu dos outros homens, e isso te
basta. Cismavas em deixar esta terra?
— É!
verdade.
— Bem;
venho a propósito. Queres ir comigo?
— Para
onde?
— Que
importa? Queres vir?
— Quero.
Assim me distrairei. Partiremos amanhã. É por mar, ou por terra?
— Nem
amanhã, nem por mar, nem por terra; mas hoje e pelo ar.
Levantei-me
e recuei. A visão levantou-se também.
— Tens
medo? perguntou ela.
— Medo,
não, mas...
— Vamos.
Faremos uma deliciosa viagem.
Era de
esperar um balão para a viagem aérea a que me convidava a inesperada visita;
mas os meus olhos se arregalaram prodigiosamente quando viram abrirem-se das
espáduas da visão duas longas e brancas asas que ela começou a agitar e
das quais caía uma poeira de ouro.
das quais caía uma poeira de ouro.
— Vamos,
disse a visão.
E eu
maquinalmente repeti:
— Vamos!
E ela
tomou-me nos braços, subimos até o teto que se rasgou, e passamos ambos, visão
e poeta. A tempestade tinha, como por encanto, cessado, estava o céu limpo,
transparente, luminoso, verdadeiramente celestial, enfim. As estrelas fulgiam
com a sua melhor luz, e um luar branco e poético caía sobre os telhados das
casas e sobre as flores e a relva dos campos.
Subimos.
Durou a
ascensão algum tempo. Eu não podia pensar; ia atordoado e subia sem saber para onde, nem a razão por quê. Sentia
que o vento agitava os cabelos loiros da visão, e que eles lhe batiam docemente
na face, do que resultava uma exalação celeste que embriagava e adormecia. O ar
estava puro e fresco. Eu, que me havia distraído algum tempo da ocupação das
musas no estudo das leis físicas, contava que naquele subir contínuo breve
chegaríamos a sentir os efeitos da rarefação da atmosfera. Engano meu! Subíamos
sempre e muito, mas a atmosfera conservava-se sempre a mesma, e quanto mais
subíamos, melhor respirávamos.
Isto
passou rápido pela minha mente. Como disse, eu não pensava: ia subindo sem
olhar para a terra. E para que olharia para a terra? A visão não podia conduzir-me
senão ao céu.
Em breve
comecei a ver os planetas fronte por fronte. Era já sobre a madrugada. Vênus,
mais pálida e loura que de costume, ofuscava as estrelas com o seu clarão e com
a sua beleza. Lancei um olhar de admiração para a deusa da manhã. Mas subia,
subíamos sempre. Os planetas passavam à minha ilharga como se foram corcéis
desenfreados. Afinal penetramos em uma região inteiramente diversa das que
havíamos atravessado naquela assombrosa viagem. Eu senti expandir-se-me a alma
na nova atmosfera. Seria aquilo o céu? Não ousava perguntar, e mudo esperava o
termo da viagem. À proporção que penetrávamos nessa região ia-se a minha alma
rompendo em júbilo; daí a algum tempo entrávamos em um planeta; começamos a
fazer o trajeto a pé.
Caminhando,
os objetos, até então vistos através de um nevoeiro, tomavam aspecto de coisas reais. Pude ver então que me
achava em uma nova terra, a todos os respeitos estranha; o primeiro aspecto
vencia ao que oferece a poética Stambul ou a poética Nápoles. Mais entrávamos,
mais os objetos tomavam o aspecto da realidade. Assim chegamos à grande praça
onde estavam construídos os reais paços. A habitação régia era, por assim
dizer, uma reunião de todas as ordens arquitetônicas, sem excluir a chinesa,
sendo de notar que esta última fazia não mediana despesa na estrutura do
palácio.
Eu quis
sair da ânsia em que estava por saber em que país acabava de entrar, e aventurei
uma pergunta à minha companheira.
— Estamos
no país das Quimeras, respondeu ela.
— No país
das Quimeras?
— Das
Quimeras. País para onde viaja três quartas partes do gênero humano, mas que
não se acha consignado nas tábuas da ciência.
Contentei-me
com a explicação. Mas refleti sobre o caso. Por que motivo iria parar
ali? A que era levado? Estava nisto, quando a
fada me advertiu de que éramos chegados à porta do palácio. No vestíbulo havia
uns vinte ou trinta soldados que fumavam em grossos cachimbos de escumas do
mar, e que se embriagavam, como outros tantos padixás, na contemplação dos
novelos de fumo azul e branco que lhes saíam da boca. À nossa entrada houve
continência militar. Subimos pela grande escadaria, e fomos ter aos andares
superiores.
ali? A que era levado? Estava nisto, quando a
fada me advertiu de que éramos chegados à porta do palácio. No vestíbulo havia
uns vinte ou trinta soldados que fumavam em grossos cachimbos de escumas do
mar, e que se embriagavam, como outros tantos padixás, na contemplação dos
novelos de fumo azul e branco que lhes saíam da boca. À nossa entrada houve
continência militar. Subimos pela grande escadaria, e fomos ter aos andares
superiores.
— Vamos
falar aos soberanos, disse a minha companheira.
Atravessamos muitas salas e galerias. Todas as
paredes, como no poema de Dinis, eram forradas de papel prateado e lantejoulas.
Afinal penetramos na grande sala. O Gênio das bagatelas, de que fala
Elpino, estava sentado em um trono de casquinha, tendo de ornamento dois
pavões, um de cada lado. O próprio soberano tinha por coifa um pavão vivo,
atado pelos pés, a uma espécie de solidéu, maior que o dos nossos padres, o
qual por sua vez ficava firme na cabeça por meio de duas largas fitas amarelas,
que vinham atar-se debaixo dos reais queixos. Coifa idêntica adornava a cabeça
dos gênios da corte, que correspondem aos viscondes deste mundo, e que cercavam
o trono do brilhante rei. Todos aqueles pavões, de minuto a minuto armavam-se, apavoneavam-se, e davam os guinchos do costume.
Quando
entrei na grande sala pela mão da visão, houve um murmúrio entre os fidalgos
quiméricos. A visão declarou que ia apresentar um filho da terra. Seguiu-se a
cerimônia da apresentação, que era uma enfiada de cortesias, passagens e outras
coisas quiméricas, sem excluir a formalidade do beija-mão. Não se pense que fui
eu o único a beijar a mão ao gênio soberano; todos os gênios presentes fizeram
o mesmo, porque segundo ouvi depois, não se dá naquele país o ato mais insignificante
sem que esta formalidade seja preenchida. Depois da cerimônia da apresentação
perguntou-me o soberano que tratamento tinha eu na terra para dar-me um
cicerone correspondente.
— Eu
tenho, se tanto, uma triste Mercê.
— Só isso?
Pois há de ter o desprazer de ser acompanhado pelo cicerone comum. Nós temos cá a Senhoria, a Excelência, a
Grandeza, e outras mais; mas quanto à Mercê, essa tendo habitado algum tempo
este país, tornou-se tão pouco útil que julguei melhor despedi-la.
A este
termo a Senhoria e a Excelência, duas criaturas empertigadas, que se haviam aproximado
de mim, voltaram-me as costas, encolhendo os ombros e deitando-me um olhar de
través com a maior expressão de desdém e pouco caso. Eu quis perguntar à minha
companheira o motivo deste ato daquelas duas quiméricas pessoas; mas a visão
puxou-me pelo braço, e fez-me ver com um gesto que estava desatendendo ao Gênio das bagatelas, cujos sobrolhos
se contraíram, como dizem os poetas antigos que se contraíam os de Júpiter Tonante.
Neste momento entrou um bando de moçoilas frescas, lépidas, bonitas e louras...
Oh! mas de um louro que se não conhece entre nós, os filhos da terra! Entraram
elas a correr com a agilidade de andorinhas que voam; e depois de apertarem
galhofeiramente a mão aos gênios de corte, foram ao gênio soberano, diante de
quem fizeram umas dez ou doze mesuras.
Quem eram
aquelas raparigas? Eu estava de boca aberta. Indaguei da minha guia, e soube.
Eram as Utopias e as Quimeras que iam da terra, onde havia passado a noite na
companhia de alguns homens e mulheres de todas as idades e condições.
As Utopias
e as Quimeras foram festejadas pelo soberano, que se dignou sorrir-lhes e
bater-lhes na face. Elas alegres e risonhas receberam os carinhos reais como
coisa que lhes era devida; e depois de dez ou doze mesuras, repetições das anteriores,
foram-se da sala, não sem abraçarem-me ou beliscarem-me, quando
espantado eu olhava para elas sem saber por
que me tornara objeto de tanta jovialidade. O meu espanto crescia de ponto
quando ouvia a cada uma delas esta expressão muito usada nos bailes de máscaras:
Eu te conheço!
espantado eu olhava para elas sem saber por
que me tornara objeto de tanta jovialidade. O meu espanto crescia de ponto
quando ouvia a cada uma delas esta expressão muito usada nos bailes de máscaras:
Eu te conheço!
Depois que
saíram todos, o Gênio fez um sinal, e toda a atenção concentrou-se no soberano,
a ver o que ia sair-lhe dos lábios. A expectativa foi burlada, porque o gracioso
soberano apenas com um gesto indicou ao cicerone comum o mísero hóspede que
daqui tinha ido. Seguiu-se a cerimônia da saída, que durou longos minutos, em
virtude das mesuras, cortesias e beija-mão do estilo. Os três, eu, a fada
condutora e o cicerone passamos à sala da rainha. A real senhora era uma pessoa
digna de atenção a todos os respeitos; era imponente e graciosa; trajava vestido
de gaza e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim alvo, pedras finas de
todas as espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça; na cara trazia
posturas finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido corada pelo pincel
da natureza; dos cabelos recendiam ativos cosméticos e delicados óleos.
Não pude
disfarçar a impressão que me causava um todo assim. Voltei-me para a companheira
de viagem e perguntei como se chamava aquela deusa.
— Não a
vê? respondeu a fada; não vê as trezentas raparigas que trabalham em torno
dela? Pois então? É a Moda, cercada de suas trezentas belas, caprichosa filhas.
A estas palavras eu lembrei-me do Hissope. Não
duvidava já de que estava no País das Quimeras; mas, raciocinei, para que Dinis
falasse de algumas destas coisas é preciso que cá tivesse vindo, e voltasse
como está averiguado.
Portanto,
não devo recear de cá ficar morando eternamente. Descansado por este lado, passei a atentar para os trabalhos das
companheiras da rainha; eram umas novas
modas que se estavam arranjando para vir a este mundo substituir as antigas.
Houve
apresentação com o cerimonial do estilo. Estremeci quando pousei os lábios na
mão fina e macia da soberana; esta não reparou, porque tinha na mão esquerda um
psyché, onde se mirava de momento a momento.
Impetramos
os três licença para continuar a visita do palácio e seguimos pelas galerias e
salas. Cada sala era ocupada por um grupo de pessoas, homens ou mulheres, algumas
vezes mulheres e homens, que se ocupavam nos diferentes misteres de que estavam
incumbidos pela lei do país, ou por ordem arbitrária do soberano. Percorria
essas salas diversas com o olhar espantado, estranhando o que via, aquelas
ocupações, aqueles costumes, aqueles caracteres. Em uma das salas um grupo de
cem pessoas ocupava-se em adelgaçar uma massa branca, leve e balofa.
Naturalmente este lugar é a ucharia, dizia comigo; estão preparando
alguma
iguaria singular para o almoço do rei. Indaguei do cicerone se havia acertado.
O cicerone respondeu:
— Não,
senhor; estes homens estão ocupados em preparar massa cerebral para um certo
número de homens de todas as classes, estadistas, poetas, namorados, etc.;
serve também a mulheres. Esta massa é especialmente para aqueles que no seu planeta vivem com verdadeiras disposições
do nosso país, aos quais fazemos presente deste elemento constitutivo.
— É massa
quimérica?
— Da
melhor que se há visto até hoje.
— Pode
ver-se?
O cicerone
sorriu-se; chamou o chefe da sala, a quem pediu um pouco da massa.

Este foi
com prontidão ao depósito e tirou uma porção que entregou-me. Mal o tomei das
mãos do chefe desfez-se a massa como se fora composta de fumo. Fiquei confuso;
mas o chefe bateu-me no ombro:
— Vá
descansado, disse; nós temos à mão matéria-prima; é da nossa própria atmosfera
que nos servimos e a nossa atmosfera não se enxota.
Este chefe
tinha uma cara insinuante, mas como todos os quiméricos, era sujeito a
abstrações, de modo que não pude arrancar-lhe mais uma palavra, porque ele ao
dizer as últimas começou a olhar para o ar e a contemplar o vôo de uma mosca.
Este caso atraiu os companheiros, que se chegaram a ele e mergulharam-se todos
na contemplação do alado inseto.
Os três
continuamos o nosso caminho.
Mais
adiante era uma sala onde muitos quiméricos à roda de mesas discutiam os diferentes
modos de inspirar aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os pretextos
para encher o tempo e apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos.
Esses homens tinham ares de finos e espertos. Havia ordem do soberano para não
entrar naquela sala em horas de trabalho; uma guarda estava à porta. A menor
distração daquele congresso seria considerada uma calamidade pública. Continuei com o cicerone e fui ter a
outra sala onde muitos Quiméricos, de boca aberta, escutavam as preleções de um
filósofo do país.
O filósofo
falava pausado e parecia embebido na música das próprias palavras. Tinha um
gesto estudado, cheio de si, como de Vadius falando a Trissotin. Detive-me aí.
Dizia o
filósofo:
— Meus
caros filhos, o universo é um composto de maldade e invejas. Não há talento,
por mais prodigioso, que não seja ferido pela seta da calúnia e do desdém dos
egoístas. Como fugir a esta triste situação? De um modo único. Que cada um começando
a viver deve logo compenetrar-se de que nada há acima de si, e desta convicção própria nascerá a convicção alheia.
Quem há de contestar o talento a um homem que começa por senti-lo em si e diz
que o tem?
Os
ouvintes alçaram a voz e num coro exclamaram:
— Muito
bem.
O filósofo
continuou:
— Dirão
que isso é vaidade; mas se bem compreendeis a nossa natureza e a natureza dos
outros deveis saber que isso que lá embaixo se chama vaidade não é entre nós
outra coisa mais do que a verdadeira tensão do espírito, a consciência da nossa
elevação moral.
A preleção
acabou com estas palavras. O filósofo desceu do espaldar em que estava e todas
as Quimeras fizeram alas para deixá-lo passar.
Continuei
a minha viagem.
Andei de
sala em sala, de galeria em galeria, aqui visitando um museu, ali um trabalho ou um jogo; tive tempo de ver tudo,
de tudo examinar com atenção e pelo miúdo. Ao passar pela grande galeria que
dava para a praça, vi que o povo, reunido embaixo das janelas, cercava uma
forca. Era uma execução que ia ter lugar. Crime de morte? Não, responderam-lhe,
crime de lesa-cortesia. Era um Quimérico
que havia cometido o crime de não fazer a tempo e com graça uma continência; este crime é considerado naquele
país como a maior audácia possível
e imaginável. O povo quimérico contemplou a
execução como se assistisse a um espetáculo de saltimbancos, entre aplausos e
gritos de prazer.
e imaginável. O povo quimérico contemplou a
execução como se assistisse a um espetáculo de saltimbancos, entre aplausos e
gritos de prazer.
Entretanto
era a hora do almoço real.
À mesa do
gênio soberano só se sentavam o rei, a rainha, dois ministros, um médico, e a encantadora fada que me havia
levado àquelas alturas. A fada, antes de sentar-se à mesa, implorou do rei a
mercê de admitir-me ao almoço; a resposta
foi afirmativa; tomei assento. O almoço foi o mais sucinto e rápido que é possível
imaginar. Durou alguns segundos, depois do que todos se levantaram e abriu-se
mesa para o jogo das reais pessoas; fui assistir ao jogo; em roda da sala havia
cadeiras onde estavam sentadas as Utopias e as Quimeras; às costas dessas cadeiras
empertigaram-se fidalgos quiméricos, com os seus pavões e as suas vestiduras de
escarlate. Aproveitei a ocasião para saber como é que me conheciam aquelas
assanhadas raparigas. Encostei-me a uma cadeira e indaguei da Utopia que se
achava nesse lugar. Esta impetrou licença, e depois das formalidades do
costume, retirou-se a uma das salas comigo, e aí perguntou-me:
— Pois
deveras não sabes quem somos? Não nos conheces?
— Não as
conheço, isto é, conheço-as agora, e isso dá-me verdadeiro pesar, porque quisera tê-las conhecido há mais tempo.
— Oh!
sempre poeta!
— É que
deveras são de uma gentileza sem rival. Mas onde é que me viram?
— Em tua
própria casa.
— Oh!
— Não te
lembras? À noite, cansado das lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e aí,
abrindo velas ao pensamento, deixas-te ir por um mar sereno e calmo. Nessa viagem
acompanham-te algumas raparigas... somos nós, as Utopias, nós, as Quimeras.
Compreendi
afinal uma coisa que se me estava a dizer há tanto tempo. Sorri-me, e cravando
os meus olhos nos da Utopia que tinha diante de mim, disse:
— Ah! sois
vós, é verdade. Consoladora companhia que me distrai de todas as misérias e
pesares. É no seio de vós que eu enxugo as minhas lágrimas. Ainda bem.
Conforta-me ver-vos a todas de face e debaixo de forma palpável.
— E queres
saber, tornou a Utopia, quem nos leva a todas para a tua companhia? Olha, vê.
Voltei-me
e vi a peregrina visão, minha companheira de viagem.
— Ah! é
ela, respondi.
— É
verdade. É a loura Fantasia, a companheira desvelada dos que pensam e dos que
sentem.
A Fantasia
e a Utopia entrelaçaram as mãos e olhavam para mim. Eu, como que enlevado,
olhava para ambas. Durou isto alguns segundos; quis fazer algumas perguntas,
mas quando ia falar reparei que as duas se haviam tornado mais delgadas e vaporosas. Articulei alguma coisa;
porém vendo que elas iam ficando cada
vez mais transparentes, e distinguindo-se-lhes já pouco as feições, soltei estas
palavras:
— Então,
que é isto? por que se desfazem assim? — mais e mais as sombras desapareciam,
corri à sala do jogo; espetáculo idêntico me esperava; era pavoroso; todas as figuras se desfaziam como
se fossem feitas de névoa. Atônito e palpitante, percorri algumas galerias e
afinal saí à praça; todos os objetos estavam sofrendo a mesma transformação.
Dentro de pouco eu senti que me faltava o apoio aos pés e vi que estava solto
no espaço.
Nesta
situação soltei um grito de dor. Fechei os olhos e deixei-me ir como se tivesse
de encontrar por termo de viagem a morte. Era na verdade o mais provável. Passados alguns segundos, abri os olhos e vi que caía
perpendicularmente sobre um ponto negro
que me parecia do tamanho de um ovo. O
corpo rasgava como raio o espaço. O ponto negro cresceu, cresceu e cresceu até
fazer-se do tamanho de uma grande esfera. A minha queda tinha alguma coisa de
diabólica; soltava de vez em quando um gemido; o ar batendo- me nos olhos
obrigava-me a fechá-los de instante a instante.
Afinal o
ponto negro que havia crescido, continuava a crescer, até aparecer-me com o
aspecto da Terra. É Terra! disse comigo.
Creio que
não haverá expressão humana para mostrar a alegria que sentiu a minha alma,
perdida no espaço, quando reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta
foi a alegria; pensava, e pensava bem, que naquela velocidade quando tocasse em
terra seria para nunca mais se levantar. Tive um calafrio: vi a morte diante de
mim e encomendei a minha alma a Deus. Assim fui, fui, ou antes vim, vim, até
que — milagre dos milagres! — caí sobre a praia, de pé, firme como se não
houvesse dado aquele infernal salto. A primeira impressão, quando me vi em
terra, foi de satisfação; depois tratei de ver em que região do planeta me achava; podia ter caído na Sibéria ou na
China; verifiquei que me achava a dois passos de casa. Apressei-me a voltar aos
meus pacíficos lares.
A vela
estava gasta; a galga, estendida sobre a mesa, tinha os olhos fitos na porta.
Entrei e atirei-me sobre a cama, onde adormeci, refletindo no que acabava de acontecer-me.
* * *
Tal é a
narrativa de Tito.
Esta
pasmosa viagem serviu-lhe de muito.
Desde
então adquiriu um olhar de lince capaz de descobrir, à primeira vista, se um
homem tem na cabeça miolos ou massa quimérica.
Não há
vaidade que possa com ele. Mal a vê lembra-se logo do que presenciou no reino
das Bagatelas, e desfia sem preâmbulo a história da viagem.
Daqui vem
que se era pobre e infeliz, mais infeliz e mais pobre ficou depois disto.
É a sorte
de todos quantos entendem dever dizer o que sabem; nem se compra por outro
preço a liberdade de desmascarar a humanidade.
Declarar guerra
à humanidade é declará-la a toda a gente, atendendo-se a que ninguém há que
mais ou menos deixe de ter no fundo do coração esse áspide venenoso.
Isto pode
servir de exemplo aos futuros viajantes e poetas, a quem acontecer a viagem
milagrosa que aconteceu ao meu poeta.
Aprendam
os outros no espelho deste. Vejam o que lhes aparecer à mão, mas procurem dizer
o menos que possam as suas descobertas e as suas opiniões.
---
Nota:
Texto-fonte: Obra Completa,
Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. Publicado
originalmente em Jornal das Famílias, abril a maio de 1866.
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