
DIANA
Em certo dia do mês de março do ano da graça de 1868
encontravam-se na Rua do Ouvidor, cidade do Rio de Janeiro,
dois rapazes, ambos acompanhados de um criado
carregando as respectivas malas.
— Luís!
— Alberto!
— Que é
isso?
— A que
horas chegas!
— Não pôde
ser mais cedo. Venho do caminho de ferro neste momento. Mas tu, chegas também
de Minas, ou partes para lá?
— Não chego
nem vou para lá. Vou para o Rio Grande. Está a sair o vapor.
— Que
volta tão repentina é essa?
— Assim é
preciso.
— Isto só
pelo diabo. Se eu soubesse de semelhante coisa tinha vindo mais cedo.
— De lá te
escreverei. Adeus!
— Adeus!
E os dois
amigos, depois de se abraçarem, separaram-se, tomando um para a hospedaria,
outro para a Praia dos Mineiros.
Alberto
foi fazendo consigo as reflexões seguintes:
— Que
diabo leva o Luís ao Rio Grande tão repentinamente? este rapaz tem o juízo a arder...
Tempos
depois Alberto recebia a seguinte carta de Porto Alegre, escrita pelo amigo
Luís.
Luís a
Alberto.
Prezado
amigo,
Só agora
te escrevo porque só agora me é dado dispensar alguns minutos.
Se fosses
alguma destas susceptibilidades que tantas vezes encontrei, dava-te outra
razão, mentirosa de certo, mas suficiente para acalmar-te o espírito e
consolar-te o coração.
Mas
prefiro a verdade. Eu te conheço, tu me conheces, nós nos conhecemos.
Queres
então saber que motivo me trouxe ao Rio Grande tão repentinamente? Um motivo
simples: receber um legado. Tive notícia de que meu padrinho morrera e me
deixara em testamento certa quantia assaz avultada para colocar-me acima das atribulações da vida.
Que tal? É
ou não uma tigela de maná que me veio do céu? Eu bem te dizia muitas vezes que tinha fé na minha
estrela, e que estava certo de que não havia de ganhar fortuna pela simples
posição de advogado provinciano.
Mas já te
ouço dizer contigo mesmo: Que tivesse um legado, concebe-se; mas que fosse ele próprio
arrecadá-lo, isto é que eu acho esquisito.
Respondo à
tua reflexão:
Podia dar
procuração a alguém e ficar comodamente na corte à espera que lá me fosse ter
às mãos a quantia legada por aquele chorado
padrinho. Se não fiz isto foi por virtude de uma cláusula que o meu referido
padrinho incluiu no testamento.
Esta
cláusula é a seguinte:
Este
legado só será entregue ao meu afilhado Luís depois que ele tiver, por virtude
dos próprios esforços, descoberto em certo lugar, situado na casa tal, em
Pelotas, um segredo que lá conservo.
Deves
compreender que eu não podia, estando na corte, descobrir o segredo de Pelotas.
Por isso
embarquei apenas recebi a notícia.
Muitas
vezes te falei neste padrinho como o mais singular e extravagante dos
padrinhos. Sobre a condição que ele punha tinha eu a curiosidade de saber qual
era esta nova excentricidade do velho.
E parti.
Ainda não
fui a Pelotas, mas tratei de indagar que casa era aquela e quem residia lá.
Disseram-me que a casa era propriedade de meu padrinho e estava vazia há cinco
anos.
Isto
aguçou a minha curiosidade.
Decididamente
temos um mistério neste negócio.
O que
sobretudo me causa ainda maior assombro é não haver na cláusula a designação em que lugar da casa se
acha o segredo. Será nas salas, nas alcovas,
no terreiro, no teto ou no chão? Não sei. Mas o legado vale a pena, e eu tenho
forças e tenacidade para levar a obra ao cabo.
Disponho-me
a partir dentro de alguns dias, munido de instrumentos e acompanhado do meu
guasca.

De tudo o
que ocorrer dar-te-ei conta.
Adeus. Não
sejas preguiçoso. Escreve-me.
Alberto
leu e releu esta carta. Sorriu à idéia de que Luís se achava envolvido em um
mistério de romance. Ele sabia que o padrinho do advogado era um homem excêntrico,
desta longa família que se ramifica por todas as raças e todos os países.
Direi em
duas palavras quem eram os dois amigos.
Luís,
advogado provinciano, como ele próprio diz, tinha tomado grau na faculdade de
S. Paulo e tinha vindo advogar na corte. Fazia um ano que se achava aí sem ter
conseguido nome nem fortuna. Alguma coisa que trouxera ia-se já gastando e o
legado do padrinho veio na melhor ocasião.
Alberto,
natural do Rio de Janeiro, era advogado, como ele, sem nome e sem fortuna, como
ele filho da academia de S. Paulo, havendo em tanta harmonia e identidade uma
única diferença: era o legado do padrinho de Luís.
A viagem a
Minas feita por Alberto era por motivo de ir colher informações minuciosas para
servir em processo.
O encontro
de ambos já o leitor teve notícia no começo destas linhas.
* * *
Alberto
não respondeu à carta de Luís por não ter certeza do lugar em que estaria este,
se em Porto Alegre, se em Pelotas.
Esperou
que da parte do amigo lhe chegassem comunicações necessárias.
Mas
esperou em vão.
No fim de
dois meses resolveu escrever uma carta em duplicata, mandando uma para cada uma
das cidades onde Luís podia ser encontrado.
A carta de
Alberto dizia assim:
Alberto a
Luís.
— Resolvi
escrever-te depois de esperar em vão uma carta tua. Esta vai em duplicata, uma
para Porto Alegre, outra para Pelotas. Onde
quer que estejas lá te há de achar.
Devo crer
que estejas em Pelotas, e que o silêncio se explique pelas ocupações em que
estás realmente com a procura desse segredo do teu finado padrinho.
Eu já
sabia de quanta excentricidade era capaz esse sujeito, mas esta é de mestre, e
eu não atino com o fim de toda esta meada.
Por isso
mesmo é que é segredo.
O que for
soará.
Peço-te
que não te esqueças, se for possível, de me comunicares os progressos do
trabalho, e, quando chegar a ocasião, a natureza do segredo que faz condição do
legado.

Segredo em
casa que se não abre há cinco anos... deve ser coisa misteriosa!
Olha lá;
não vás esbarrar com alguma daquelas surpresas das fantasias alemãs... Quem
sabe se o teu padrinho não tinha comércio com o diabo?
Disse uma
tolice, perdoa-me.
Enfim,
escreve-me. Sou curioso, como uma criança. Dize-me o que houver e continua a
votar-me aquela amizade antiga.
Alberto
escreveu as duas cartas, subscritou-as e remeteu-as para o correio.
Feito o
que, esperou resposta.
Daí a
algum tempo recebeu uma carta de Luís.
Dizia ele:
Luís a
Alberto.
— É
segredo e segredo do diabo. Mas não é por ora o que pensas. O do padrinho ainda
está por descobrir, pela razão de que ainda não fui a Pelotas. E não penses que
é porque não possa. Não; tenho podido ir. Mas que me prende? perguntas tu.
Vais
saber.
Prende-me
um anjo...
Não te
rias, lê até o fim.
Prende-me
um anjo com formas de mulher. Ou anjo ou o diabo,que tanto importa esta
criatura que conseguiu transtornar-me a razão e fazer do meu coração uma
verdadeira ruína a respeito de
todos os
outros sentimentos.
Amo, meu
Alberto, amo!
A primeira
vez que a vi foi em uma noite... ah! até agora só a tenho visto à noite, pelo
que já lhe pus um nome simbólico: Diana.
Mas, como
dizia, foi em uma noite que a vi pela primeira vez, noite de sexta, noite de
luar, noite de sedução: estava linda, como a irmã que então atravessava a
planície celeste, calma e suave, influindo amor, inspiração, poesia...
Dessa
noite para cá fiquei perdido. Bem sabes como nasce o amor; é de súbito. Eu senti que naquele momento o
anjo encarregado de escrever no céu a
minha biografia (porque eu acredito que há anjos biógrafos ao céu) adicionou ao
capítulo do amor o nome de Diana.
Diana!
sabes tu que beleza é esta? Como encanta, como fascina, como seduz? Tu não sabes nada, pobre lorpa,
nessa cidade de lama e de prosa, cativo da prosa e da lama. Aqui, sim; aqui
resido com este serafim, a luz, a vida, a poesia...
Reli o que
tinha escrito até aqui e tive idéia de rasgar. Não irás tu
pensar que eu estou doido ou caí na pieguice?
Não creias nada que não seja isto: amo. É a palavra da criação, diz o poeta das
Orientais.
pensar que eu estou doido ou caí na pieguice?
Não creias nada que não seja isto: amo. É a palavra da criação, diz o poeta das
Orientais.
Mas
deixe-me contar como foi que eu vi e amei esta mulher. Costumava eu ir tomar
chá em casa do major O..., meu parente afastado, bom velho que possui filhas
bonitas e de excelentes qualidades.
Ia às oito
horas e voltava à meia-noite para casa.
Ouvia lá
falar muitas vezes da viúva Caldas, mas nunca prestei maior atenção a essa
referência, e ouvia como se não ouvisse.
Uma noite,
em que fui mais cedo, disseram-me as filhas do velho que esperavam a viúva
Caldas para tomar chá.
Perguntei
quem era essa viúva Caldas que eu não conhecia. Disseram-me que era a viúva de um homem do
Norte que para ali fora há um ano, o qual tinha falecido cinco meses antes. A
viúva desde que eu lá cheguei andava doente e por isso não tinha ido à casa do
major.
Mas
achava-se boa e ia lá naquela noite, pela primeira vez que saía depois da
convalescença.
Não se
trocou a este respeito uma só palavra mais.
Daí a
bocado, estávamos assentados na chácara cujo portão dava para uma rua, aparecem
a alguma distância uns vultos brancos. Era a viúva e a mãe.
As moças
correram a ir buscá-las e eu acompanhei-as por delicadeza, não podendo supor
que essa viúva Caldas fosse a mulher destinada a mudar completamente o meu
destino.
O luar
estava claro, suave, límpido.
Quando me
aproximei da viúva e troquei com ela um olhar, senti uma comoção inexprimível. Estive alguns
segundos sem desviar os olhos dos olhos da moça. Ela também não desviava os
seus.
Tudo se
preparava para que este encontro fosse decisivo da minha sorte: a noite era das
mais adoráveis noites do Sul.
Conversou-se,
tomou-se chá e à meia-noite fomos eu, o major e as filhas deste, acompanhar as visitas até a
casa.
Diana (não
quero dar-lhe outro nome) pareceu não ser indiferente aos sentimentos
que me inspirou. Também ela parecia
impressionada, comovida. Pela minha
parte não sei se disse coisas
acertadas
naquela noite.
Daí para
cá já a
vi dez vezes,
e sempre de
noite. Imagine se a impressão produzida durante a noite podia
enfraquecer; tem aumentado antes com força redobrada.
À quinta
noite não me pude ter. Procurei um instante em que lhe pudesse
falar a sós, e declarei-lhe indiretamente o que sentia por ela. Diana, ou
respondesse do mesmo modo, ou fosse ilusão minha,
o que é certo é que me disse algumas coisas
indiretas assaz explícitas.
o que é certo é que me disse algumas coisas
indiretas assaz explícitas.
Olhe este
espécime da nossa conversação:
Dizia eu:
— Quisera
ser um coração viúvo.
— Por quê?
perguntou ela.
— Porque
os corações viúvos se consolam, respondi.
— Ah!
E
suspirou.
É claro ou
não?
Ah! eu
creio que estou dizendo alguma extravagância, mas perdoa- me tu que sabes o que
é amar, e conheces o meu coração nestas matérias.
O que te
posso afiançar é que nunca amei como agora, nem mulher alguma se gabou ainda de
possuir o meu coração como esta possui.
Quem
dissera, meu Alberto, que vindo buscar uma fortuna e um segredo, levaria uma mulher, isto é, outro
segredo e outra fortuna? Não estranhes a frase; estou disposto a casar com
Diana, haja o que houver. É paixão doida...
Enfim o
vapor está a partir, não posso demorar mais a carta. Adeus.
Dentro de
poucos dias vou para Pelotas para ver se descubro que segredo é este de meu
padrinho... Olha, se é alguma fortuna enterrada!
Talvez a
felicidade me queira proteger agora de uma vez. Adeus.
* * *
Um mês
correu ainda entre esta carta e a terceira remetida por Luís ao amigo Alberto.
Assistiremos
eu e o leitor aos fatos que o advogado narrou na terceira carta.
Basta-nos
para isso transportarmo-nos para Porto Alegre, à casa de Luís, vinte e oito
dias depois da segunda carta.
O amor de
Luís e Diana (conservemos à moça o nome que lhe dera o namorado) caminhava às
mil maravilhas.
A moça
correspondera ao sentimento do rapaz, ao ponto de receber afetuosamente uma
declaração positiva de casamento.
Como
sempre se encontrassem em casa do major, onde Diana ia tomar chá todas as noites,
nunca Luís fora a casa dela.
Um dia,
porém, em que ele manifestou desejo de lá ir, Diana disse-lhe que fosse,
pediu-lhe, fez
até uma intimação.
pediu-lhe, fez
até uma intimação.
No meio de
tudo isto, o legado e o segredo tinham ficado esquecidos inteiramente.
Na manhã
do dia marcado Luís levantou-se alegre
como andorinha em tempo de verão.
Vestiu-se, perfumou-se, encouraçou-se para todas as comoções e partiu.
Ele levava
em mente fazer nesse dia o pedido à velha. Sabia por boca de Diana que ela
olhava esse amor com bons olhos.
Quando se
aproximava da porta de Diana tirou o relógio e viu que se adiantara duas horas.
Eram dez e a entrevista devia ter lugar ao meio-dia.
Quis
voltar para esperar a hora convencionada. Mas a vista do jardim o desanimou.
Teve uma tentação: esperar no jardim que batesse a hora decisiva da sua
existência e da sua felicidade.
Hesitou
alguns minutos.
Depois,
fazendo um esforço, como a porta estivesse aberta, entrou.
Seus
primeiros passos foram de receio. A areia rangia debaixo dos pés, e podia despertar
alguém, o que seria estragar o romance.
A fortuna
deparou-lhe uma espécie de caramanchel, naturalmente construído pela rama de
quatro árvores plantadas em quadrado.
Luís
encaminhou-se para lá.
A casa
estava silenciosa; as janelas fechadas; tudo parecia dormir ainda. Ele sabia
que ela se levantava tarde, mas não pôde supor que às dez horas da manhã ainda
estivesse na cama.
É certo
que a manhã era das mais frias e tinha chovido na véspera.
Luís
sentou-se em um banquinho de pedra que havia embaixo do caramanchel.
Descalçou
as luvas, guardou-as no bolso, tirou um cigarro, concertou-o, riscou um
fósforo, acendeu o cigarro e começou a fumá-lo tranqüilamente.
Quem o
visse não diria que era um homem que dali a duas horas podia estar casado... em
promessa.
Ele mesmo
fez algumas reflexões análogas a esta. Naturalmente chamado ao terreno das
idéias próprias de um homem que vai pedir uma mulher em casamento, Luís
deixou-se ficar no campo vasto da fantasia e da memória.
A fantasia
para o futuro, a memória para o passado.
O passado
era a vida malfadada, erma de afeições, cheia de necessidades. Era a luta
dolorosa entre a vida material e as aspirações do espírito, luta de que, por um
lance de sorte, achava-se agora salvo, podendo gozar de um amor e de uma fortuna.
O futuro
era o gozo dessa fortuna e desse amor. O advogado pintava já na imaginação o
que faria quando se visse na posse de Diana e do legado. Faltava-lhe ainda o
segredo que, se não podia ser uma mulher, podia muito bem ser sua fortuna
ainda, o que seria uma fortuna acumulada.

Nessas
explicações do passado e do futuro lembrou-se do amigo que ficara na corte. Ocorreu-lhe então que de há muito tempo
lhe não escrevia. Não queria de modo algum ser acusado de ingrato, e resolveu,
apenas acabada a entrevista, escrever para o Rio de Janeiro. O vapor partia no
dia seguinte.
Durante
este longo tempo de espera, Luís fumou três cigarros, e consultou vinte vezes o
relógio.
Os
ponteiros corriam lentamente como uma agonia.
Luís
levantava-se, espiava por entre as folhagens e via as janelas ainda fechadas.
Dar-se-á
caso que ainda dormissem ou teriam saído?
Esta
pergunta feita a si mesmo trouxe ao espírito do namorado uma dúvida cruel. Se tivessem saído seria uma desilusão.
Nisto
sentiu passos.
Voltou-se
para o lado de onde partia o rumor da areia calcada por pés vagarosos.
Viu dois
vestidos de mulher.
Imaginou
logo que seriam Diana e sua mãe.
Naturalmente
tinham deixado a cama nesse momento e andavam passeando no jardim, fazendo apetite.
Luís
lembrou-se que ouvira algumas vezes a Diana dizer que tinha este hábito de longos
meses.
Melhor,
pensou ele, causo-lhes a surpresa de me verem aqui, e é mais uma prova do amor
que dou a Diana.
E
comprimiu a respiração para não ser pressentido e aparecer como nos romances o
herói avisado por algum bilhete misterioso.
As duas
aproximavam-se cada vez mais.
Luís
deixou que elas se aproximassem bastante para aparecer então.
Entretanto
quis ainda uma vez cravar os olhos naquela que era já senhora do coração.
Arredou cautelosamente
as folhas para melhor ver e colou os olhos à abertura.
As duas
passavam nesse momento.
Luís
soltou um grito e recuou.
As
mulheres espantadas correram para o caramanchel; mas, ao mesmo tempo, Diana,
mal conheceu o rapaz, correu para casa.
Ficou a
velha diante de Luís.
Qual era a
significação do grito do rapaz?
Era que o
sonho que durante tantos dias criara e idealizara desfizera-se ali todo e de
uma vez. Diana, a jovem, a bela, a sedutora mulher que tanto impressionara o
advogado, era uma mulher amarela, sem beleza, sem mocidade; sem encanto
algum. Todos os encantos dela eram artifícios
comprados e aplicados diariamente com uma paciência de feia pretensiosa.
algum. Todos os encantos dela eram artifícios
comprados e aplicados diariamente com uma paciência de feia pretensiosa.
Luís nunca
a vira senão à noite, porque Diana, apesar dos artifícios, não queria expor-se
à luz meridiana. Ainda assim pudera passar. Mas, luz do dia, e sem os socorros da arte,
caminhando em um jardim fechado, na plena confiança de quem não esperava àquela
hora semelhante visita, não era feia, era horrenda!
Calcula-se
qual não seria o desencanto do rapaz. Aquele grito fora o grito do amor
moribundo.
A velha
mãe da viúva, quando viu Luís, ficou um tanto atrapalhada. Parece que ela era
cúmplice nas manhas da vaidosa filha. Mas, como não se tratasse dela pessoalmente,
pôde falar ao rapaz, rindo e sem ocultar a natural surpresa de encontrá-lo ali.
Luís
respondeu que ia visitá-la e esperava a hora marcada.
A velha
convidou-o a entrar, mas o rapaz pretextou um incômodo, explicando o grito que
dera, e despediu-se.
Instâncias,
pedidos, rogos, tudo foi inútil.
O rapaz
saiu.
Dali para
casa os seus passos eram incertos, como os de um ébrio. Já não era amor que
sentia, visto que o amor fora dedicado à criatura que ele vira à noite e aparentemente
bela. Era mal-estar do espírito que por tanto tempo se iludira.
Quando
chegou à casa fez esta reflexão filosófica:
— Nem
sempre os palpites são vãos; se eu não fosse esperar no jardim não escapava tão milagrosamente ao perigo de
carregar todo o resto de minha vida com um...
Não acabou
a reflexão porque nesse momento apresentou-se-lhe o criado perguntando quando
partia para Pelotas.
— Já,
respondeu Luís.
* * *
Tempos
depois recebia Alberto na corte a terceira carta de Luís.
Luís a
Alberto.
— Esta
carta há de chegar às tuas mãos poucos dias antes de mim. Estou em Porto Alegre
em preparativos de viagem.
Podia
guardar-me para contar-te de viva voz tudo o que me acontecesse depois da última que te escrevi
(há um século?), mas prefiro dar-te já a grande notícia.
Naturalmente
supões que vou chegar à corte casado com a bela Diana? Engano positivo; vou solteiro, como
vim. E vou explicar-te a razão.
Tive
ocasião de ver à luz do sol a mulher que eu só vira ao clarão da lua ou das
velas da sala. Que abismo entre ambas! Passei do anjo ao dragão! A mulher era
feia como um demônio; a noite e a
tinta eram a solução daquela charada viva. Dei
graças a Deus quando fiz a descoberta.
tinta eram a solução daquela charada viva. Dei
graças a Deus quando fiz a descoberta.
À vista te
contarei mais detalhadamente o episódio desta descoberta, que só difere de
Colombo em não ser de um novo mundo, mas de um velho mundo.
Desenganado
dos meus amores, decidi partir para Pelotas.
Este
episódio não é menos interessante. Ouve-me.
Cheguei a
Pelotas e fui examinar a casa que há cinco anos não recebia um bocado de ar.
Foram precisos alguns dias para que pudesse deixar entrar lá alguém.
Quando
ficou em estado de receber-me, lá fui com o meu criado, e preparei tudo para
proceder ao exame necessário.
Tive o
cuidado de consultar as paredes para ver se eram ocas e podiam, portanto,
encerrar alguma coisa que constituísse o segredo de que falava meu padrinho.
Nada.
Marquei um
dia e começamos os nossos trabalhos.
Virei e
revirei a casa. Comecei por escavar o chão, mas depois de pesados trabalhos
consegui a certeza de que no chão não havia segredo de qualidade alguma.
Passei às
paredes, porque, apesar do exame a que procedera de começo, podia haver algum
ponto em que estivesse o tal segredo; mas qual!
Supus até
que o segredo se achasse na parte da parede onde se achava pendurado um retrato
a óleo de meu padrinho. Nada havia. Fui ao teto; fiz arrancar tábua por tábua,
e depois de longos dias de exame nada encontrei.
Em resumo,
nem as paredes, nem o chão, nem o teto, nem o quintal, em parte alguma
encontrei o segredo de meu padrinho.
Então uma
idéia dolorosa assaltou-me o espírito. Meu padrinho era excêntrico; ora, quem
sabe se a maior excentricidade dele não seria a de me fazer procurar em vão um
segredo imaginário, até convencer-me de que não valia a pena procurá-lo para
receber um bocado de dinheiro?
Isto era
muito provável e eu senti-me abalado com esta idéia.
Mas,
passado o primeiro abalo, voltei de novo às minhas pesquisas. Esmerilhei, foi
tudo vão.
Confesso
que tive um acesso de matar-me.
Entretanto,
era verdade; nada tinha encontrado; o segredo do meu padrinho fora uma
brincadeira. Como ele se havia de rir naquele momento na eternidade!
Determinei
voltar logo e logo para Porto Alegre, disposto a não
receber nada e a voltar para a corte, a fim de começar de novo a vida de advogado.
receber nada e a voltar para a corte, a fim de começar de novo a vida de advogado.
Na ocasião
em que arranjávamos as malas, vi que entre os objetos que o meu criado enrolava
existia o retrato de meu padrinho.
— Para que
trouxeste isso? perguntei eu.
— Eu mesmo
não sei, disse o criado.
Tive então
uma idéia, súbita.
Tomei o
quadro das mãos do criado, e, com o auxilio de uma faca, destas de que usam os guascas, abri o quadro.
Caiu de
dentro um papel dobrado.
Apanhei o
papel com a mão trêmula.
Seria
aquele o segredo?
Abri o
papel e pude ler a custo as letras apagadas pelo tempo.
Queres
saber o que dizia o papel?
Lê:
Conselho a
meu afilhado. — Nunca te fies em aparências.
Se eu
tivesse o segredo antes de ver Diana!...
Enfim
estou hoje de posse de uma fortuna e de uma lição que me custaram alguma coisa.
Até breve!
---
Nota:
Texto-fonte: Publicado originalmente
em Jornal das Famílias, 1866. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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