
CINCO MULHERES
Aqui vai um grupo de cinco mulheres, diferentes entre si, partindo
de diversos pontos, mas reunidas na mesma coleção, como em um álbum de
fotografias.
Desenhei-as
rapidamente, conforme apareciam, sem intenção de precedência, nem cuidado de
escolha.
Cada uma
delas forma um esboço à parte; mas todas podem ser examinadas entre o charuto e
o café.
I
Marcelina
Marcelina
era uma criatura débil como uma haste de flor; dissera-se que a vida lhe fugia
em cada palavra que lhe saía dos lábios rosados e finos. Tinha um olhar lânguido
como os últimos raios do dia. A cabeça, mais angélica do que feminina, aspirava
ao céu. Quinze anos contava, como Julieta. Como Ofélia, parecia que estava
destinada a colher a um tempo as flores da terra e as flores da morte.
De todas
as irmãs — eram cinco —, era Marcelina a única a quem a natureza tinha dado tão pouca vida. Todas as mais
pareciam ter seiva de sobra. Eram mulheres altas e reforçadas, de olhos vivos e
cheios de fogo. Alfenim era o nome que
davam a Marcelina. Ninguém a convidava para as fadigas de um baile ou para os
grandes passeios. A boa menina fraqueava depois de uma valsa ou no fim de cinqüenta passos do caminho.
Era ela a
mais querida dos pais. Tinha na sua fragilidade a razão da preferência.

Um
instinto secreto dizia aos velhos que ela não havia de viver muito; e como que
para desforrá-la do amor que havia de perder, eles a amavam mais do que às
outras filhas. Era ela a mais moça, circunstância que acrescia àquela, porque ordinariamente
os pais amam o último filho mais do que os primeiros, sem que os primeiros
pereçam inteiramente no seu coração.
Marcelina
tocava piano perfeitamente. Era a sua distração habitual; tinha o gosto da
música no mais apurado grau. Conhecia os compositores mais estimados, Mozart,
Weber, Beethoven, Palestrina. Quando se assentava ao piano para executar as
obras dos seus favoritos, nenhum prazer da terra a tiraria dali.
Chegara à
idade em que o coração da mulher começa a interrogá-la secretamente; mas
ninguém conhecia um sentimento só de amor no coração de Marcelina. Talvez não
fosse a hora, mas todos que a viam acreditavam que ela não pudesse amar na
terra, tão do céu parecia ser aquela delicada criatura.
Um poeta
de vinte anos, virgem ainda nas suas ilusões, teria encontrado nela o mais puro
ideal dos seus sonhos; mas nenhum havia na roda que freqüentava a casa da moça.
Os homens que lá iam preferiam a tagarelice insossa e incessante das irmãs à
compleição frágil e à recatada modéstia de Marcelina.
A mais
velha das irmãs tinha um namorado. As outras sabiam do namoro e o protegiam na
medida dos seus recursos. Do namoro ao casamento pouco tempo mediou, apenas um
mês. O casamento foi fixado para um dia de junho. O namorado era um belo rapaz
de vinte e seis anos, alto, moreno, de olhos e cabelos pretos. Chamava-se
Júlio.
No dia
seguinte em que se anunciou o casamento de Júlio, Marcelina não se levantou da
cama. Era uma ligeira febre que cedeu no fim de dois dias aos esforços de um
velho médico, amigo do pai. Mas, ainda assim, a mãe de Marcelina chorou
amargamente, e não dormiu uma hora. Nunca houve crise séria na moléstia da
filha, mas o simples fato da moléstia bastou para que a boa mãe perdesse a
cabeça. Quando a viu de pé regou de lágrimas os pés de uma imagem da Virgem,
que era a sua devoção particular.
Entretanto
seguiam os preparativos do casamento. Devia efetuar-se dali a quinze dias. Júlio estava radiante de alegria, e não
perdia ocasião de comunicar-se a todos o estado em que se achava. Marcelina
ouvia-o com tristeza; dizia-lhe duas palavras de cumprimento e desviava a
conversa daquele assunto, que lhe parecia penoso. Ninguém reparava, menos o
médico, que um dia, em que ela se achava ao piano, disse-lhe com ar pesaroso:
— Menina,
isso faz-lhe mal.
— Isso
quê?
— Sufoque
o que sente, esqueça um sonho impossível e não vá adoecer por um sentimento sem
esperança.
Marcelina
cravou os olhos nas teclas do piano e levantou-se a chorar.
O doutor
saiu mais pesaroso do que estava.
— Está
morta, dizia ele descendo as escadas.
O dia do
casamento chegou. Foi uma alegria na casa, mesmo para Marcelina, que cobria a
irmã de beijos; aos olhos de todos era a afeição fraternal que se manifestava
assim num dia de júbilo para a irmã; mas a um olhar experimentado não escaparia
a tristeza escondida debaixo daquelas demonstrações tão fervorosas.
Isto não é
um romance, nem um conto, nem um episódio; — não me ocuparei, portanto, com os
acontecimentos dia por dia. Um mês se passou depois do casamento de Júlio com a
irmã de Marcelina. Era o dia marcado para o jantar comemorativo em casa de
Júlio. Marcelina foi com repugnância, mas era preciso; simular uma doença era
impedir a festa; a boa menina não quis. Foi.
Mas quem
pode responder pelo futuro? Marcelina, duas horas depois de estar em casa da
irmã, teve uma vertigem. Foi levada para um sofá, mas tornada a si achou-se
doente. Foi transportada para casa. Toda a família a acompanhou. A festa não
teve lugar.
Declarou-se
uma nova febre.
O médico,
que sabia o fundo da doença de Marcelina, procurou curar-lhe a um tempo o corpo
e o coração. Os remédios do corpo pouco faziam, porque o coração era o mais
doente. O médico quando empregava uma dose no corpo, empregava duas no coração.
Eram os conselhos brandos, as palavras persuasivas, as carícias quase
fraternais. A moça respondia a tudo com um sorriso triste — era a única
resposta.
Quando o
velho médico lhe dizia:
— Menina,
esse amor é impossível...
Ela
respondia:
— Que
amor?
— Esse: o
de seu cunhado.
— Está
sonhando, doutor. Eu não amo ninguém.
— É
debalde que procura ocultar.
Um dia,
como ela insistisse em negar, o doutor ameaçou-a sorrindo que ia contar tudo à
mãe.
A moça
empalideceu mais do que estava.
— Não,
disse ela, não diga nada.
— Então, é
verdade?
A moça não
ousou responder: fez um leve sinal com a cabeça.
— Mas não
vê que é impossível? perguntou o doutor.
— Sei.
— Então
por que pensar nisso?
— Não
penso.
— Pensa. É
por isso que está tão doente...
— Não
creia, doutor; estou doente porque Deus o quer; talvez fique boa, talvez não; é
indiferente para mim; só Deus é quem manda estas coisas.
— Mas sua
mãe?...
— Ela irá
ter comigo, se eu morrer.
O médico
voltou a cabeça para o lado de uma janela que se achava meio aberta.
Esta
conversa reproduziu-se muitas vezes, sempre com o mesmo resultado. Marcelina
definhava a olhos vistos. No fim de alguns dias o médico declarou que era
impossível salvá-la.
A família
ficou desolada com esta notícia.
Júlio ia
visitar Marcelina com sua mulher; nessas ocasiões Marcelina sentia-se elevada a
uma esfera de bem-aventurança. Vivia da voz de Júlio. As faces se lhe coloriam
e os olhos readquiriam um brilho celeste.
Depois
voltava ao seu estado habitual.
Mais de
uma vez quis o médico declarar à família qual era a verdadeira causa da moléstia
de Marcelina; mas que ganharia com isso? Não viria daí o remédio, e a boa
menina ficaria do mesmo modo.
A mãe,
desesperada com aquele estado de coisas, imaginou todos os meios de salvar a
filha; lembrou a mudança de ares, mas a pobre Marcelina raras vezes deixava de
arder em febre.
Um dia,
era um domingo de julho, a menina declarou que desejava comunicar alguma coisa
ao doutor.
Todos os
deixaram a sós.
— Que
quer? perguntou o médico.
— Sei que
é nosso amigo, e sobretudo meu amigo. Sei quanto sente a minha doença, e como
lhe dói que eu não possa ficar boa...
— Há de
ficar, não fale assim...
— Qual
doutor! eu sei o que sinto! Se lhe quero falar é para dizer-lhe uma coisa. Quando
eu morrer não diga a ninguém qual foi o motivo da minha morte.
— Não fale
assim... interrompeu o velho levando o lenço aos olhos.
— Di-lo-á
somente a uma pessoa, continuou Marcelina; é a minha mãe. Essa sim, coitada, que tanto me ama e que vai ter a dor
de me perder! Quando lhe disser, entregue-lhe
então este papel.
Marcelina
tirou debaixo do travesseiro uma folha de papel dobrada em quatro, e atada por
uma fita roxa.
— Escreveu
isto? Quando? perguntou o médico.
— Antes de
adoecer.
O velho
tomou o papel das mãos da doente e guardou-o no seu bolso.
— Mas,
venha cá, disse ele, que idéias são essas de morrer? Tão moça! Começa apenas a
viver; outros corações podem ainda receber os seus afetos; para que quer tão
cedo deixar o mundo? Pode ainda encontrar nele uma felicidade digna da sua alma
e dos seus sentimentos... Olhe cá, ficando boa iremos todos para fora. A menina
gosta da roça. Pois toda a família irá para a roça...
— Basta,
doutor! É inútil.
Daí em
diante Marcelina pouco falou.
No dia
seguinte à tarde Júlio e a mulher vieram visitá-la. Marcelina achava-se pior.
Toda a família estava ao pé da cama. A mãe debruçada à cabeça chorava silenciosamente.
Quando
veio a noite fechada, declarou-se a crise da morte. Houve então uma explosão de
soluços; porém a menina, serena e calma, a todos procurava consolar dando-lhes
a esperança de que iria orar por todos no céu.
Quis ver o
piano em que tocava; mas era difícil satisfazer-lhe o desejo e ela facilmente
se convenceu. Não desistiu porém de ver as músicas; quando elas lhas deram
distribuiu-as pelas irmãs.
— Quanto a
mim vou tocar outras músicas no céu.
Pediu
algumas flores secas que tinha numa gaveta, e distribuiu-as igualmente pelas pessoas presentes.
Às oito
horas expirou.
Um mês
depois o velho médico, fiel à promessa que fizera à moribunda, pediu uma
conferência particular à infeliz
mãe.
— Sabe de
que morreu Marcelina? perguntou ele; não foi de uma febre, foi de um amor.
— Ah!
— É
verdade.
— Quem
era?
— A pobre
menina pôs a sua felicidade num desejo impossível; mas não se revoltou contra a sorte; resignou-se e
morreu.
— Quem era?
perguntou a mãe.
— Seu
genro.
— É
possível? disse a pobre mãe dando um grito.
— É
verdade. Eu o descobri, e ela mo confessou. Sabe como eu era amigo dela; fiz
tudo quanto pude para desviá-la de semelhante pensamento; mas tinha chegado
tarde. A sentença estava lavrada; ela devia amar, adoecer e subir ao céu. Que
amor, e que destino!
O velho
tinha os olhos rasos de lágrimas; a mãe de Marcelina chorava e soluçava que
cortava o coração. Quando ela pôde ficar um pouco calma, o médico continuou:
— A entrevista
que ela me pediu nos seus últimos dias foi para dar-me um papel, disse-me então
que lho entregasse depois da morte. Aqui o tem.
O médico
tirou do bolso o papel que recebera de Marcelina e lho entregou intacto.
— Leia-o,
doutor. O segredo é nosso.
O doutor
leu em voz alta e com voz trêmula:
Devo
morrer deste amor. Sinto que é o primeiro e o último. Podia ser a minha vida e
é a minha morte. Por quê? Deus o quer. Não viu ele nunca que era eu a quem
devia amar. Não lhe dizia acaso um secreto instinto que eu carecia dele para
ser feliz? Cego! foi procurar o amor de outra, tão sincero como o meu, mas
nunca tão grande e tão elevado! Deus o faça feliz! Escrevi um pensamento mau.
Por que me hei de revoltar contra minha irmã? Não pode ela sentir o que eu sinto?
Se eu sofro por não ter a felicidade de
possuí-lo não sofreria ela, se ele fosse meu? Querer a minha felicidade à custa
dela, é um sentimento mau que mamãe nunca me ensinou. Que ela seja feliz e
sofra eu a minha sorte.
Talvez eu
possa viver; e nesse caso, ó minha Virgem da Conceição, eu só te peço que me dês a força necessária
para ser feliz só com a vista dele, embora ele me seja indiferente. Se mamãe
soubesse disto talvez ralhasse comigo, mas eu acho que...
O papel
achava-se interrompido neste ponto.
O médico
acabou estas linhas banhado em lágrimas. A mãe chorava igualmente. O segredo
confiado aos dois morreu com ambos.
Mas um
dia, tendo morrido a velha mãe de Marcelina, e procedendo-se ao inventário, foi
achado o papel pelo cunhado de Marcelina... Júlio conheceu então a causa da
morte da cunhada. Lançou os olhos para um espelho, procurando nas suas feições
um raio da simpatia que inspirara a Marcelina, e exclamou:
— Pobre
menina!
Acendeu um
charuto e foi ao teatro.
II
Antônia
A história
conhece um tipo da dissimulação, que resume todos os outros, como a mais alta
expressão de todos: — é Tibério. Mas nem esse chegaria a vencer a dissimulação dos Tibérios femininos, armados
de olhos e sorrisos capazes de frustrar os planos mais bem combinados e
enfraquecer as vontades mais resolutas.
Antônia
era uma mulher assim.
Quando eu
a conheci era ela casada de doze meses. O marido tinha nela a mais plena
confiança. Amavam-se ambos com o amor mais ardente e apaixonado que ainda
houve. Era uma alma só em dois corpos. Se ele demorava fora de casa, Antônia
não só velava todo o tempo, como desfazia-se em lágrimas de saudades e de dor. Apenas ele chegava, não havia o
desenlace comum das recriminações estéreis; Antônia lançava-se-lhe aos braços e
tudo voltava em bem.
Onde um
não ia, não ia o outro. Para quê, se a felicidade deles residia em estarem
juntos, viverem dos olhos um do outro, fora do mundo e dos seus vãos prazeres?
Assim
ligadas estas duas criaturas davam ao mundo o doce espetáculo de uma união
perfeita. Eram o enlevo das famílias e o desespero dos mal casados.
Antônia
era bela; tinha vinte e seis anos. Estava no pleno desenvolvimento de uma
dessas belezas robustas e destinadas a resistir à ação do tempo. Oliveira, seu
marido, era o que se podia chamar um Apolo. Via-se que aquela mulher devia amar
aquele homem e aquele homem devia amar aquela mulher.
Freqüentavam
a casa de Oliveira alguns amigos, uns da infância, outros de data recente,
alguns de menos de um ano, isto é, da data do casamento de Oliveira. A amizade
é o melhor pretexto, até hoje inventado, para que um indivíduo pretenda tomar
parte na felicidade de outro. Os amigos de Oliveira, que não primavam pela
originalidade dos costumes, não ficaram isentos de encantos que a beleza de Antônia
produzia em todos. Uns, menos corajosos, desanimaram diante do extremoso amor
que ligava o casal; mas um houve, menos tímido, que assentou de si para si
tomar lugar à mesa da ventura doméstica do amigo.
Era um tal
Moura.
Não sei
dos primeiros passos de Moura; nem das esperanças que ele pôde ir concebendo à
proporção que corria o tempo. Um dia, porém, a notícia de que entre Moura e
Antônia havia um laço de simpatia amorosa surpreendeu a todos.
Antônia
era até então o símbolo do amor e da felicidade conjugal. Que demônio lhe
soprara ao ouvido tão negra resolução de iludir a confiança e o amor do marido?
Uns duvidaram, outros se irritaram, alguns esfregaram as mãos de contentes,
animados pela idéia de que o primeiro erro devia ser uma arma e um incentivo
para os erros futuros.
Desde que
a notícia, contada à meia voz, e com a mais perfeita discrição, correu de boca
em boca, todas as atenções voltaram-se para Antônia e Moura. Um olhar, um
gesto, um suspiro, escapam aos mais dissimulados; os olhos mais experimentados
viram logo a veracidade dos boatos; se os dois se não amavam, estavam perto do amor.
Deve-se
acrescentar que ao pé de Oliveira, Moura fazia o papel de deus Pã ao pé do deus
Febo. Era uma figura vulgar, às vezes ridículo, sem nada que pudesse legitimar
a paixão de uma mulher bela e altiva. Mas assim aconteceu, a grande aprazimento
da sombra de La Bruyère.
Uma noite
uma família da amizade de Oliveira foi convidá-la para irem ao Teatro Lírico.
Antônia mostrou grande desejo de ir. Cantava então não sei que celebridade italiana.
Oliveira,
por doente ou por enfado, não quis ir. As instâncias da família que os convidara
foram inúteis; Oliveira teimou em ficar.
Oliveira
insistia em ficar, Antônia em ir. Depois de muito tempo o mais que se conseguiu foi que Antônia fosse em companhia
das amigas, que a trariam depois para casa.
Oliveira
ficara em companhia de um amigo.
Mas, antes
de saírem todos, Antônia insistiu de novo com o marido para que fosse.
— Mas se
eu não quero ir? dizia ele. Vai tu, eu ficarei, conversando com ***.
— É que se
tu não fores, disse Antônia, o espetáculo não vale nada para mim.

Anda!
— Vai,
querida, eu irei em outra ocasião.
— Pois não
vou!
E
sentou-se disposta a não ir ao teatro. As amigas exclamaram em coro:
— Como é
isso: não ir? Que maçada! Era o que faltava! anda, anda!
— Vai,
sim, disse Oliveira. Então porque eu não vou, não te queres divertir?
Antônia
levantou-se:
— Está
bem, disse ela, irei.
— De que
número é o camarote? perguntou bruscamente Oliveira.
— Vinte,
segunda ordem, disseram as amigas de Antônia.
Antônia
empalideceu ligeiramente.
— Então,
irás depois, não é? disse ela.
— Não,
decididamente, não.
— Dize se
vais.
— Não,
fico, é decidido.
Saíram
para o Teatro Lírico. Sob pretexto de que desejava ir ver a celebridade tomei o
chapéu e fui ao Teatro Lírico.
Moura
estava lá!
III
Carolina
— Pois
quê! vais casar-te?
— É
verdade.
— Com o
Mendonça?
— Com o
Mendonça.
— Isso é
impossível! Tu, Carolina, tu formosa e moça, mulher de um homem como aquele, sem nada que possa inspirar amor?
Ama-o acaso?
— Hei de
estimá-lo.
— Não o
amas, já vejo.
— É meu
dever. Que queres, Lúcia? Meu pai assim o quer, devo obedecer-lhe. Pobre pai!
ele cuida fazer a minha felicidade. A fortuna de Mendonça parece-lhe uma
garantia de paz e de ventura da minha vida. Como se engana!
— Mas não
deves consentir nisso... Vou falar-lhe.

— É
inútil, nem eu quero.
— Mas
então...
— Olha, há
talvez outra razão: creio que meu pai deve favores ao Mendonça; este
apaixonou-se por mim, pediu-me; meu pai não teve ânimo de recusar-me.
— Pobre
amiga!
Sem
conhecer ainda as nossas heroínas, já o leitor começa a lamentar a sorte da futura
mulher de Mendonça. É mais uma vítima, dirá o leitor, imolada ao capricho ou à
necessidade. Assim é. Carolina devia casar-se daí a alguns dias com Mendonça, e
era isso o que lamentava a amiga Lúcia.
— Pobre
Carolina!
— Boa
Lúcia!
Carolina é
uma moça de vinte anos, alta, formosa, refeita. Era uma dessas belezas que
seduzem os olhos lascivos, e já por aqui ficam os leitores sabendo que Mendonça
é um desses, com a circunstância agravante de ter meios com que lisonjear os
seus caprichos.
Bem vejo
como me poderia levar longe este último ponto da minha história; mas eu desisto
de fazer agora uma sátira contra o vil metal (por que metal?); e bem assim não
me dou ao trabalho de descrever a figura da amiga de Carolina.
Direi
somente que as duas amigas conversavam no quarto de dormir da prometida noiva
de Mendonça.
Depois das
lamentações feitas por Lúcia à sorte de Carolina, houve um momento de silêncio.
Carolina empregou algumas lágrimas; Lúcia continuou:
— E ele?
— Quem?
—
Fernando.
— Ah! esse
que me perdoe e me esqueça; é tudo quanto posso fazer por ele. Não quis Deus
que fôssemos felizes; paciência!
— Por isso
o vi triste lá na sala!
— Triste?
ele não sabe nada. Há de ser por outra coisa.
— O
Mendonça virá?
— Deve
vir.
As duas
moças saíram para a sala. Lá se achava Mendonça em conversa com o pai de
Carolina, Fernando a uma janela de costas para a rua, uma tia de Carolina conversando
com o pai de Lúcia. Ninguém mais havia. Esperava-se a hora do chá.
Quando as
duas moças apareceram todos voltaram-se para elas. O pai de Carolina foi
buscá-las e levou-as a um sofá.
Depois, no
meio do silêncio geral, o velho anunciou o casamento próximo de
Carolina e Mendonça.
Carolina e Mendonça.
Ouviu-se
um grito sufocado do lado da janela. Ouviu-se, digo mal — não se ouviu;
Carolina foi a única que ouviu ou antes adivinhou. Quando voltou os olhos para
a janela, Fernando estava de costas para a sala e tinha a cabeça entre mãos.
O chá foi
tomado no meio de geral acanhamento. Parece que ninguém, além do noivo e do pai
de Carolina, aprovava semelhante consórcio.
Mas, quer
aprovasse, quer não, ele devia efetuar-se daí a vinte dias.
Entro no
teto conjugal como num túmulo, escrevia Carolina na manhã do casamento à amiga
Lúcia; deixo as minhas ilusões à porta, e peço a Deus que não perca só isso.
Quanto a
Fernando, a quem ela não pôde ver mais depois da noite da declaração do casamento,
eis a carta que ele mandou a Carolina, na véspera de realizar-se o consórcio:
Quis
acreditar até hoje que fosse uma ilusão, ou um sonho mau semelhante casamento;
agora sei que não é possível duvidar da verdade. Pois quê! tudo te esqueceu, o
amor, as promessas, os castelos de
felicidade, tudo, por amor de um velho ridículo, mas opulento, isto é, dono
desse vil metal, etc., etc...
O leitor
sagaz suprirá o resto da carta, acrescentando qualquer período tirado de qualquer
romance da moda.
Isto que
aí fica escrito não muda em nada a situação da pobre Carolina; condenada a
receber recriminações quando ia dar a mão de esposa com o luto no coração.
A única
resposta dada por ela à carta de Fernando foi esta:
Esqueça-se
de mim.
Fernando
não assistiu ao casamento. Lúcia assistiu triste como se fora um enterro. Em geral perguntava-se que amor
estranho era aquele que levava Carolina a desfolhar a sua mocidade tão viçosa
nos braços de semelhante homem. Ninguém atinava com a resposta.
Como eu
não quero entreter os leitores com episódios inúteis e narrações fastidiosas,
salto aqui uns seis meses e vou levá-los à casa do Mendonça, numa manhã de
inverno.
Lúcia,
solteira ainda, está com Carolina, onde costuma ir passar alguns dias. Não se
fala na pessoa de Mendonça; Carolina é a primeira a respeitá-lo; a amiga respeita esses sentimentos.
É verdade
que os seis primeiros meses de casamento foram para Carolina seis séculos de
lágrimas, de angústia, de desespero. De longe a desgraça parecia-lhe menor; mas
desde que ela pôde tocar com o dedo o deserto árido e seco em que entrou, então
não pôde resistir e chorou amargamente.
Era o
único recurso que lhe restava: chorar. Uma porta de bronze separava-a para
sempre da felicidade que sonhara nas suas ambições de donzela. Ninguém sabia
dessa odisséia íntima, menos Lúcia, que ainda assim sabia mais por adivinhar e
por surpreender as torturas menores da companheira dos primeiros anos.
Estavam,
pois, as duas em conversa, quando às mãos de Carolina chegou uma carta assinada
por Fernando.
Pintava-lhe
o antigo namorado o estado em que tinha o coração, as dores que sofrera, as
mortes de que escapara. Nessa série de padecimentos, dizia ele, nunca perdera a coragem de viver para amá-la,
embora de longe.
A carta
era abundante em comentários, mas eu julgo melhor conservar somente a
substância dela.
Leu-a
Carolina, trêmula e confusa; esteve alguns minutos calada; depois rasgando a
carta em tiras muito miúdas:
— Pobre
rapaz!
— Que é?
perguntou Lúcia.
— É uma
carta de Fernando.
Lúcia não
insistiu. Carolina indagou do escravo que lhe trouxera a carta o modo por que
lhe havia chegado às mãos. O escravo respondeu que um moleque lha entregara à
porta. Lúcia deu ordem para que não recebesse cartas que viessem pelo mesmo portador.
Mas no dia
seguinte uma nova carta de Fernando chegou às mãos de Carolina. Outro portador
a entregara.
Nessa
carta Fernando pintava com cores negras a situação em que se achava e pedia
dois minutos de entrevista com Carolina.
Carolina
hesitou, mas releu a carta; ela parecia tão desesperada e dolorosa, que a pobre
moça, em quem falava um resto de amor por Fernando, respondeu afirmativamente.
Ia mandar
a resposta, mas de novo hesitou e rasgou o bilhete, protestando fazer o mesmo a
quantas cartas chegassem.
Durante os
cinco dias seguintes vieram cinco cartas, uma por dia, mas todas ficaram sem
resposta, como as anteriores.
Enfim, na
noite do quarto dia, Carolina achava-se no gabinete de trabalho, quando assomou
à janela que dava para o jardim a figura de Fernando.
A moça deu
um grito e recuou.
— Não
grite! disse o moço em voz baixa, podem ouvir...
— Mas,
fuja! fuja!
— Não!
quis vir de propósito, a fim de saber se deveras não me amas, se esqueceste
aqueles juramentos...
— Não devo
amá-lo!...
— Não
deve! Que tem o dever conosco?
— Vou
chamar alguém! Fuja! Fuja!
Fernando
saltou para o quarto.

— Não, não
hás de chamar!
A moça
correu para a porta. Fernando travou-lhe do braço.
— Que é
isso? disse ele; amo-te tanto, e tu foges de mim? Quem impede a nossa felicidade?
— Quem?
Meu marido!
— Seu
marido! Que temos nós com ele? Ele...
Carolina
pareceu adivinhar um pensamento sinistro em Fernando e tapou os ouvidos. Nesse
momento abriu-se a porta e apareceu Lúcia.
Fernando
não pôde afrontar a presença da moça. Correu para a janela e saltou para o
jardim.
Lúcia, que
ouvira as últimas palavras dos dois, correu a abraçar a amiga, exclamando:
— Muito
bem! muito bem!
Dias
depois Mendonça e Carolina saíram para uma viagem de um ano. Carolina escrevia
o seguinte a Lúcia:
Deixo-te,
minha Lúcia, mas assim é preciso. Amei Fernando, e não sei se o amo agora,
apesar do ato covarde [1] que praticou. Mas eu não quero expor-me a um crime.
Se o meu casamento é um túmulo, nem por isso posso deixar de respeitá-lo. Reza
por mim e pede a Deus que te faça feliz.
Foi para
estas almas corajosas e honradas que se fez a bem-aventurança.
IV
Carlota e Hortência
Uma fila
de cinqüenta carros com um coche fúnebre à frente dirigia-se para um dos
cemitérios da capital.
O carro funerário
conduzia o cadáver de Carlota Durval, senhora de vinte e oito anos, morta no
esplendor da beleza.
Os que
acompanhavam o enterro, apenas dois o faziam por estima à finada: eram Luís
Patrício e Valadares.
Os mais
iam por satisfazer a vaidade do viúvo, um José Durval, homem de trinta e seis
anos, dono de cinco prédios e de uma dose de fatuidade sem igual.
Valadares
e Patrício, na qualidade de amigos da finada, eram os únicos que traduziam no
rosto a profunda tristeza do coração. Os outros levavam uma cara de tristeza oficial.
Valadares
e Patrício iam no mesmo carro.
— Até que
morreu a pobre senhora, disse o primeiro ao fim de algum silêncio.
— Coitada!
murmurou o outro.

— Na flor
da idade, acrescentava o primeiro, mãe de duas crianças tão bonitas, amadas por todos... Deus perdoe aos culpados!
— Ao
culpado, que foi só ele. Quanto à outra, essa se não fora desinquietada...
— Tens
razão!
— Mas ele
deve ter remorsos.
— Quais
remorsos! É incapaz de os ter. Não o conheces, como eu? Ri e zomba de tudo.
Isto para ele foi apenas um acidente; não lhe dá maior importância, acredita.
Este
pequeno diálogo dá já ao leitor uma idéia dos acontecimentos que precederam à
morte de Carlota.
Como esses
acontecimentos são o objeto destas linhas destinadas a apresentar o perfil desta quarta mulher, passo a narrá-los
mui sucintamente.
Carlota
casara com vinte e dois anos. Não sei por que se apaixonara por José Durval, e
menos ainda no tempo de solteira, de que depois de casada. O marido era para
Carlota um ídolo. Só a idéia de uma infidelidade da parte dele bastava para
matá-la.
Viveram
algum tempo no meio da mais perfeita paz, não que ele não desse à mulher
motivos de desgosto, mas porque eram estes tão encobertos que nunca haviam
chegado aos ouvidos da pobre moça.
Um ano
antes Hortência B., amiga de Carlota, separava-se do marido. Dizia-se que era por motivos de infidelidade conjugal
da parte dele; mas ainda que o não fosse, Carlota receberia a amiga em sua
casa, tão amiga era dela.
Carlota
compreendia as dores que podiam trazer a uma mulher as infidelidades do marido;
por isso recebeu Hortência com os braços abertos e entusiasmo no coração.
Era o
mesmo que se uma rosa abrisse o seio confiante a um inseto venenoso.
Daí a seis
meses Carlota reconhecia o mal que tinha feito. Mas era tarde.
Hortência
era amante de José Durval.
Quando
Carlota descobriu qual era a situação de Hortência em relação a ela, sufocou um
grito. Era a um tempo, ciúme, desprezo, vergonha. Se alguma coisa podia atenuar
a dor que ela sentia, era a covardia do ato de Hortência, que tão mal pagava a
hospitalidade que obtivera de Carlota.
Mas o
marido? Não era igualmente culpado? Carlota avaliou de um relance toda a hediondez
do proceder de ambos, e resolveu romper um dia.
A frieza
que começou a manifestar a Hortência, mais do que isso, a repugnância e o
desdém com que a tratava, despertou no espírito desta a idéia de que era preciso
sair de uma situação tão falsa.
Todavia,
retirar-se simplesmente seria confessar o crime. Hortência dissimulou e um dia
recriminou a Carlota os seus modos recentes de tratamento.
Então tudo
se clareou.
Carlota,
com uma cólera sufocada, lançou em rosto à amiga o procedimento que
tivera em casa dela. Hortência negou, mas era
negar confessando, pois que nenhum tom de sinceridade tinha a sua voz.
tivera em casa dela. Hortência negou, mas era
negar confessando, pois que nenhum tom de sinceridade tinha a sua voz.
Depois
disso era necessário sair. Hortência, negando sempre o crime de que era acusada,
declarou que sairia de casa.
— Mas isso
não desmente, nem remedia nada, disse Carlota com os lábios trêmulos. É
simplesmente mudar o teatro das suas loucuras.
Esta cena
abalou a saúde de Carlota. No dia seguinte amanheceu doente. Hortência apareceu para falar-lhe, mas ela
voltou o rosto para a parede. Hortência não voltou ao quarto, mas também não
saiu da casa. José Durval impôs essa condição.
— Que dirá
o mundo? perguntava ele.
A pobre
mulher foi obrigada a sofrer mais essa humilhação.
A doença
foi rápida e benéfica, porque no fim de quinze dias Carlota expirava.
Os
leitores já assistiram ao enterro dela.
Quanto a
Hortência, continuou a viver em casa de José Durval, até que se passassem os
primeiros seis meses do luto, no fim dos quais casaram-se perante um concurso
numeroso de amigos, ou pessoas que se davam por isso.
Supondo
que os leitores terão curiosidade de saber o que sucedeu depois, aqui termino
com uma carta escrita, depois de dois anos da morte de Carlota, por Valadares a
L. Patrício.
Meu amigo.
Corte, 12 de... — Vou dar-te algumas notícias que te hão de alegrar, como a mim, posto que a
caridade evangélica nos manda lastimar as desgraças alheias. Mas há certas
desgraças que parecem um castigo do céu e a alma sente-se satisfeita quando vê o
crime punido.
Lembras-te
ainda da pobre Carlota Durval, morta de desgosto pela traição do marido e de
Hortência? Sabes que esta ficou a viver em casa do viúvo, e que no fim de seis
meses casaram-se à face da Igreja, como duas criaturas abençoadas do céu? Pois
bem, ninguém as faça que as não pague; Durval está mais do que nunca
arrependido
do passo que deu.
Primeiramente,
ao passo que a pobre Carlota era uma pomba sem fel, Hortência é um dragão de
saias, que não deixa o marido pôr pé em ramo verde. São exigências de toda a
casta, exigências de luxo, exigências de honra, porque a fortuna de Durval não
podendo resistir aos ataques de Hortência, foi-se desmoronando a pouco e pouco.
Os
desgostos envelheceram o pobre José Durval. Mas se fosse apenas isso, era de
agradecer a Deus. O caso, porém, tornou-se pior; Hortência, que traíra a amiga,
não teve dúvida em trair o marido: Hortência tem hoje um amante!
É
realmente triste semelhante coisa, mas eu não sei por que esfreguei as mãos de
contente quando soube da infidelidade de Hortência. Parece que as cinzas da
Carlota deviam estremecer de alegria
debaixo da terra...
Perdoe-me
Deus a blasfêmia, se acaso o é.
Julguei
que estas notícias te seriam agradáveis, a ti que estimastes aquela pobre
mártir.
Ia
acabando sem contar a cena que houve entre Durval e a mulher.
Um bilhete
mandado por H. (o amante) caiu nas mãos de José Durval, não sei por que
terrível acaso. Houve explosão da parte do marido; mas o infeliz não tinha
forças para manter-se na sua posição; dois gritos e dois sorrisos da mulher
puseram-lhe água fria na cólera.
Daí em
diante, Durval anda triste, cabisbaixo, taciturno. Emagrece a olhos vistos.
Pobre homem! afinal de contas começo a ter pena...
Adeus, meu
caro, vai cultivando, etc...
Esta carta
era dirigida a Campos, onde se achava L. Patrício. A resposta deste foi a
seguinte:
Muito me
contas, meu amigo Valadares, acerca dos algozes da Carlota. É uma pagã, não
deixes de crê-lo, mas no que fazes mal, é em mostrares alegria por essa
desgraça. Nem devemos tê-la, nem as cinzas de Carlota se regozijaram no outro
mundo. Os maus, no fim de conta, são dignos de lástima, por serem tão fracos
que não possam ser bons. E basta a punição para ficarmos já condoídos do pobre
homem.
Falemos de
outra coisa. Sabes que os cafezais...
Não
interessa aos leitores saber dos cafezais de L. Patrício.
O que
interessa saber é que Durval morreu de desgosto dentro de pouco tempo, e que
Hortência procurou na devoção de uma velhice prematura a expiação dos erros
passados.
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Nota:
Texto-fonte:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, 1865. Disponível digitalmente
no site: Domínio Público
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