
UMA ÁGUIA SEM ASAS
CAPÍTULO PRIMEIRO
Era uma
tarde de agosto. Caía o sol, e soprava um vento fresco e brando, como para
compensar o dia que estivera extremamente calmoso. A noite prometia ser excelente.
Se a
leitora quer ir comigo ao Rio Comprido, entraremos juntos na chácara do Sr.
James Hope, comerciante inglês desta praça, como se diz em linguagem técnica.
James Hope
viera para o Brasil em 1830, com pouco mais de 20 anos, e começou imediatamente
uma brilhante carreira comercial. Casou pouco depois com a filha de um
compatriota, já nascida aqui, e mais tarde
fez-se cidadão brasileiro, não só no papel, como no coração. Do seu matrimônio,
teve um filho e uma filha; o primeiro, chamado Carlos Hope, seguia a carreira do pai, e
contava 26 anos ao tempo em que começa
este romance; a filha recebeu o nome de Sara e tinha 22 anos.
Sara Hope
era solteira. Por quê? A sua beleza era incontestável; reunia a graça brasileira à gravidade
britânica, e em tudo parecia destinada a
dominar os homens; a voz, o olhar, as maneiras, tudo possuía um misterioso condão fascinador. Além
disto, era rica e ocupava uma invejável posição na sociedade. Dizia-se à boca
pequena que algumas paixões havia já inspirado a interessante moça; mas não constava
que ela as houvesse tido em sua vida.
Por quê?
Esta
pergunta todos a faziam, até o pai que, apesar de robusto e sadio, previa algum
acontecimento que viesse a deixar a família sem chefe, e desejava ver casada a
sua querida Sara.
Na tarde
em que começa esta narrativa, estavam todos assentados no jardim, em companhia
de mais três rapazes da cidade que tinham ido jantar em casa de James Hope.
Dispensem-me de lhes pintar as visitas
do velho comerciante. Bastará dizer que um deles, o mais alto, era advogado principiante, dispondo de algum
dinheiro do pai; chamava-se Jorge; o segundo,
cujo nome era Mateus, era comerciante, sócio de um tio que dirigia uma grande
casa; o mais baixo não era coisa nenhuma, tinha algum pecúlio, e chamava-se Andrade. Estudara medicina, mas não tratava
doentes, por glória da ciência e sossego
da humanidade.
James Hope
estava extremamente alegre e bem disposto, e todos os mais pareciam gozar o
mesmo beatífico estado. Quem entrasse subitamente
no jardim, sem ser pressentido, podia descobrir que os três rapazes procuravam
obter as boas graças de Sara, tão visivelmente
que, não só os pais da moça o percebiam, mas até não podiam encobrir eles
mesmos, uns aos outros, as suas pretensões.
Se isto
era assim, escusado é dizer que a mesma Sara conhecia o jogo dos três rapazes, porque em geral a
mulher sabe que é amada por um homem, antes mesmo que ele o perceba.
Longe de
parecer incomodada com o fogo dos três exércitos, Sara os tratava com tanta bondade e graça que parecia
indicar uma criatura coquete e frívola. Mas quem atentasse alguns largos
minutos, conheceria que ela era mais irônica que sincera, e, por isso mesmo que
os igualava, os desprezava a todos.
James Hope
acabava de contar uma anedota da sua mocidade, ocorrida em Inglaterra. A anedota era
interessante, e o James sabia narrar,
talento difícil e raro. Entusiasmado com os vários pormenores de costumes ingleses a que James Hope teve de
aludir, o advogado manifestou o grande desejo que nutria de ver a Inglaterra, e
em geral o desejo de viajar toda a Europa.
— Há de
gostar, disse Hope. As viagens deleitam muito; e além disso, nunca devemos
desprezar as coisas estranhas. Eu iria de boa vontade à Inglaterra, durante
alguns meses, mas creio que já não posso viver sem o nosso Brasil.
— É o que
me acontece, acudiu Andrade; acredito que lá fora haja muita coisa melhor do que cá; mas nós cá temos
coisas melhores do que lá. Umas compensam as outras; e por isso não valeria a
pena de uma viagem.
Mateus e
Jorge não foram absolutamente desta idéia. Ambos protestaram que dariam algum dia um pulo ao
velho mundo.
— Mas por
que não faz isso que diz, Sr. Hope? perguntou Mateus. Ninguém melhor do que o
senhor pode realizar esse desejo.
— Sim, mas
há um obstáculo...
— Não sou
eu, acudiu rindo Carlos Hope.
— Não és
tu, disse o pai, é Sara.
— Ah!
disseram os rapazes.
— Eu, meu
pai? perguntou a moça.
— Três
vezes tenho tentado a viagem, mas Sara opõe sempre algumas razões, e não vou.
Creio que descobri a causa da resistência dela.
— E qual
é? perguntou Sara, rindo.
— Sara tem
medo do mar.
— Medo!
exclamou a moça, franzindo as sobrancelhas.
O tom com
que ela proferiu esta simples exclamação impressionou o auditório. Bastava
aquilo para pintar um caráter. Houve alguns segundos de silêncio durante os quais
contemplavam a bela Sara, cujo rosto
pouco a pouco readquiriu a calma habitual.
—
Ofendi-te, Sara? perguntou James.
— Ah! isso
não se diz, meu pai! exclamou a moça com todas as harmonias de sua voz. Não podia haver ofensa;
houve apenas uma tal ou qual impressão
de espanto, quando ouvi falar de medo. Meu pai sabe que eu não tenho medo...
— Sei que
não, e já me deste provas disso; mas uma criatura pode ser valorosa e ter medo
ao mar...
— Pois não
é esse o meu caso, interrompeu Sara; se lhe dei algumas razões, é porque me pareceram aceitáveis...
— Pela
minha parte, interrompeu Andrade, penso que foi um erro que o Sr. Hope aceitasse tais razões. Era
conveniente, e mais do que conveniente, era indispensável, que a Inglaterra
visse que flores pode dar uma planta
sua, quando transplantada às regiões americanas. Miss Hope seria lá o mais
brilhante símbolo desta aliança de duas raças
vivaces...
Miss Hope
sorriu ouvindo este cumprimento, e a conversa tomou diversos caminhos.
CAPÍTULO II
Nessa
mesma noite, foram os três rapazes cear no Hotel Provençaux, depois de terem
passado duas horas no Ginásio. Havia já dois ou três meses que andavam naquela campanha sem se
comunicarem uns aos outros as impressões
ou as esperanças que tinham. Estas, porém, se alguma vez as tiveram, começavam a diminuir,
pelo que não tardaria muito que os três pretendentes se abrissem francamente e
dissessem todas as suas idéias a
respeito de Sara.
Aquela
noite foi tacitamente escolhida pelos três para as confidências recíprocas.
Estavam numa sala particular onde ninguém os perturbaria. As revelações
começaram por alusões vagas, mas não tardou
que assumissem um ar de franqueza.
— Por que
negaremos a verdade? disse Mateus depois de alguns remoques recíprocos; todos
três gostamos dela; é claríssimo. E o que também me parece claro é que ela
ainda não se manifestou por nenhum.
— Nem se
manifestará, respondeu Jorge.
— Por quê?
— Porque é
uma namoradeira e nada mais; gosta que lhe façam a corte, e não passa disso. É
uma mulher de gelo. Que te parece, Andrade?
— Não
concordo contigo, acudiu este. Não me parece namoradeira. Pelo contrário, cuido
que é uma mulher superior, e que...
Estacou.
Entrou nesse momento um criado trazendo umas costeletas pedidas. Quando o criado saiu, os outros dois
rapazes insistiram para que Andrade concluísse o pensamento.
— E quê?
disseram eles.
Andrade
não deu resposta.
— Conclui
a tua idéia, Andrade, insistiu Mateus.
— Creio
que ela ainda não encontrou um homem como imagina, explicou Andrade. É romanesca, e só se casará
com alguém que lhe realize um tipo ideal; toda a questão é saber que tipo é
esse; porque, desde que o soubéssemos, tudo estava decidido. Cada um de nós procuraria
ser a reprodução material dessa idealidade desconhecida...
— Talvez
tenhas razão, observou Jorge; bem pode ser isso; mas, nesse caso, estamos nós
em pleno romance.
— Sem
nenhuma dúvida.
Mateus
discordou dos outros.
— Talvez
não seja assim, disse ele; o Andrade terá razão em parte. Creio que o meio de
lhe vencer a esquivança é corresponder, não a um tipo ideal, mas a um
sentimento próprio, a um traço de caráter, a uma expressão de temperamento.
Neste caso, o vencedor será aquele que melhor disser com o gênio dela. Por
outras palavras, cumpre saber se ela quer ser amada por um poeta, se por um
homem de ciência, etc.
— Isso
ainda pior, observou Andrade.
— Pior
será, creio, mas grande vantagem é sabê-lo. Que lhes parece a minha opinião?
Concordaram
os dois com esta opinião.
— Ora bem,
continuou Mateus, pois que assentamos nisto, sejamos francos. Se algum de nós
sente uma paixão exclusiva por ela, deve dizê-lo; a verdade antes de tudo...
— Paixões,
respondeu Jorge, eu já as conheci; amei aos 16 anos. Hoje, tenho o coração frio
como uma lauda das Ordenações. Desejo casar-me para descansar, e se há de ser
com uma mulher vulgar, melhor é que seja com uma formosa e inteligente
criatura... Isto quer dizer que nenhum ódio votarei àquele que for mais feliz
do que eu.
— Minha
idéia é outra, disse Andrade; caso por curiosidade. Uns dizem que o casamento é delicioso, outros que
aborrecido; e todavia os casamentos não acabam nunca. Tenho curiosidade de
saber se é mau ou bom. O Mateus é que me parece verdadeiramente apaixonado.
— Eu?
disse Mateus deitando vinho no cálice; nem por sombras. Confesso, porém, que
lhe tenho alguma simpatia e certa coisa a que chamamos adoração...
— Nesse
caso... disseram os dois.
— Oh!
continuou Mateus. Nada disto é amor, pelo menos amor como eu imagino...
Dizendo
isto, bebeu de um trago o cálice de vinho.
— Estamos
pois concordes, disse ele. Cada um de nós deve estudar o caráter de Sara Hope, e aquele que atinar com
as suas preferências será o feliz...
— Fazemos
um steeple-chase, disse Andrade.
— Não
fazemos só isto, observou Mateus; ganhamos tempo e não nos prejudicamos uns aos
outros. Aquele que se julgar vencedor, declare- o logo; e os outros deixarão o
campo livre. Assim entendidos, conservaremos a nossa recíproca estima.
Concordes
neste plano, os nossos rapazes gastaram o resto da noite em assuntos
diferentes, até que cada um se foi para casa, disposto a morrer ou vencer.
CAPÍTULO III
Algum
leitor achará este pacto romanesco demais, e um pouco fora dos nossos costumes.
Todavia, o fato é verdadeiro. Não direi quem mo referiu, porque não quero fazer
mal a um cidadão honrado.
Celebrado
o pacto, cada um dos nossos heróis procurou descobrir o ponto vulnerável de
Sara.
Jorge foi
o primeiro que supôs tê-lo descoberto. Miss Hope lia muito e era entusiasta dos
grandes nomes literários da época. Quase se pode dizer que nenhum livro, mais
ou menos falado, lhe era desconhecido. E não só lia, discutia, criticava,
analisava, exceto as obras poéticas.
— A
poesia, dizia ela, não se analisa, sente-se ou esquece-se.
Seria esse
o ponto vulnerável da moça?
Jorge
procurou sabê-lo e não esqueceu nenhum meio necessário para isso. Conversaram de literatura longas horas,
e Jorge dava largas a um entusiasmo
poético mais ou menos real. Notou Sara esse prurido literário do rapaz, mas sem
indagar as causas dele, tratou de o aproveitar
no sentido das suas preferências.
Sem
nenhuma ofensa à pessoa de Jorge, posso dizer que ele não era grande conhecedor
em matéria literária, pelo que não poucas vezes lhe acontecia tropeçar
desastradamente. Por outro lado, sentia necessidade de alguma fórmula mais elevada
para o seu entusiasmo e andou catando na memória aforismos deste jaez:
— A poesia
é a linguagem dos anjos.
— O amor e
as musas nasceram no mesmo dia.
— A poesia
e o amor são os dois olhos de Deus.
E outras
coisas mais que a moça ouvia sem admirar muito o espírito inventivo do jovem advogado.
Aconteceu
que um domingo de tarde, andando os dois passeando no jardim, um pouco
separados do resto da família, Sara pregou os olhos no céu tingido com as
rubras cores do ocaso.
Esteve
assim calada durante longo tempo.
—
Contempla a sua pátria? perguntou-lhe com meiguice Jorge.
— A minha
pátria? disse a moça sem perceber a idéia do rapaz.
— É a bela
hora do poente, continuou este, a hora melancólica da saudade e do amor. O dia
é mais alegre, a noite mais terrível; só a tarde é a verdadeira hora das almas
melancólicas... Ah! tarde! Oh! poesia! oh! amor!
Sara
conteve o riso que esteve a ponto de lhe rebentar dos lábios ao ouvir o tom e
ao ver a atitude com que Jorge proferiu aquelas palavras.
— Gosta então
muito da tarde? perguntou ela com um tom irônico que não escaparia a outro.
— Ah!
muito! respondeu Jorge. A tarde é a hora em que a natureza parece convidar os
homens ao amor, à meditação, à saudade, ao arroubo, aos suspiros, a cantar com
os anjos, a conversar com Deus. Posso dizer com o grande poeta, mas variando um
pouco a sua fórmula: tirai a tarde ao mundo, e o mundo será um ermo.
— Isto é
sublime! exclamou a moça, batendo palmas.
Jorge
parecia contente de si. Deitou à moça um olhar lânguido e amoroso e foi o único
agradecimento que deu ao elogio de Sara.
A moça
compreendeu que a conversa podia seguir um caminho menos agradável. Parecia-lhe
ver já dançando nos lábios do rapaz uma confissão intempestiva.
— Creio
que meu pai me chama, disse ela; vamos.
Jorge foi
obrigado a acompanhar a moça, que se aproximou da família.
Os outros
dois pretendentes viram o ar alegre de Jorge, e concluíram que ele estava no
caminho da felicidade. Sara, entretanto, não mostrava a confusão própria de uma moça que
acaba de ouvir uma confissão de amor.
Olhava muitas vezes para Jorge, mas era com uns longes de ironia, e em todo caso perfeitamente
tranqüila.
— Não tem
que ver, dizia Jorge consigo, acertei-lhe com a corda; a rapariga é romanesca;
tem vocação literária; gosta de exaltações poéticas...
Não se
deteve o jovem advogado; a essa descoberta seguiu-se logo uma carta ardente,
poética, nebulosa, carta que nem um filósofo alemão chegaria a entender.
Poupo aos
leitores a íntegra desse documento; mas não resisto à intenção de lhes
transcrever aqui um período, que bem o merece:
“... Sim,
minha loura estrela da noite, a vida é uma aspiração constante para a região
serena dos espíritos, um desejo, uma ambição, uma sede de poesia! Quando duas
almas da mesma índole se encontram, como as
nossas, já
isto não é terra, é céu, céu puríssimo e diáfano, céu que os serafins povoam de
encantadas estrofes!...
Vem, meu anjo, passemos uma vida assim! Inspira-me, e eu serei maior que
Petrarca e Dante,
porque tu
vales mais que Laura e Beatriz!...”
E cinco ou
seis páginas neste gosto.
Esta carta
foi entregue, num domingo, à saída do Rio Comprido, sem que a moça tivesse
ocasião de perguntar o que aquilo era.
Digamos a
verdade toda.
Jorge
passou a noite sobressaltado.
Sonhou que
entrava com Miss Hope em um riquíssimo castelo de ouro e esmeraldas, cuja porta
era guardada por dois arcanjos de longas asas abertas; depois sonhou que o
mundo inteiro, por meio de uma comissão, o coroava poeta, rival de Homero.
Sonhou muitas coisas neste sentido, até que veio a sonhar com um chafariz, que
deitava, em vez de água, espingardas de agulha, verdadeiro disparate que só Morfeu sabe criar.
Três dias
depois foi procurado pelo irmão de Sara.
— Minha
demora é pequena, disse o rapaz; venho por parte de minha mana.
— Ah!
— E
peço-lhe que não veja nisto nada de ofensivo.
— Nisto
quê?
— Minha
mana quis por força que eu viesse restituir-lhe esta carta; e que lhe
dissesse... Em suma, isto é bastante; aqui tem a carta. Ainda uma vez, não há ofensa,
e a coisa fica entre nós...
Jorge não
achava palavra para responder. Estava pálido e vexado. Carlos não poupou
expressões nem carícias para provar ao rapaz que não desejava a menor alteração
na amizade que se votavam um ao outro.
— Minha
mana é caprichosa, dizia ele, é por isso...
— Concordo
que foi um ato de loucura, disse enfim Jorge, animado pelas maneiras do irmão
de Sara; mas o senhor compreenderá que um amor...
—
Compreendo tudo, disse Carlos; e é por isso que lhe peço esqueça isto, e ao mesmo tempo posso afirmar-lhe que
Sara não tem nenhum ressentimento disto... Portanto, amigos como dantes.
E saiu.
Jorge
ficou só.
Estava
acabrunhado, envergonhado, desesperado.
Não
lamentava tanto a derrota como as circunstâncias dela. Entretanto, era preciso
mostrar boa cara à sua fortuna, e o rapaz não hesitou em confessar a derrota
aos dois adversários.
— Safa!
disse Andrade, essa agora é pior! Se ela está disposta a devolver todas as
cartas pelo irmão, é provável que o rapaz se não empregue em outra coisa.
— Não sei
disto, respondeu Jorge; confesso-me vencido, eis tudo.
Durante
esta curta batalha, dada pelo jovem advogado, os outros pretendentes não
estavam ociosos, e cada qual por si procurava descobrir o ponto fraco na couraça de Sara.
Qual deles
acertaria?
Vamos
sabê-lo nas páginas que nos restam.
CAPÍTULO IV
Mais curta
foi a campanha de Mateus; imaginara ele que a moça amaria loucamente a quem lhe
desse sinais de bravura. Concluía isto da
exclamação que lhe ouvira, quando James Hope disse que ela tinha medo do mar.
Tudo
empregou Mateus para seduzir Miss Hope por esse lado. Em vão! a moça parecia cada vez mais
recalcitrante.
Não houve
proeza que o candidato não referisse como glória sua, e algumas fê-las ele mesmo com sobrescrito para
ela.
Sara era
uma rocha.
A nada
cedia.
Arriscar
uma carta seria loucura, depois do fiasco
de Jorge; Mateus julgou prudente abater as armas.
Restava
Andrade.
Teria ele
descoberto alguma coisa? Parecia que não. Todavia, era dos três o mais atilado, e se a causa de isenção
da moça fosse a que eles apontavam não
havia dúvida de que Andrade atinaria com ela.
Durante
esse tempo, ocorreu uma circunstância que vinha transtornar os planos do rapaz. Sara, acusada pelo pai de
ter medo do mar, o induzira a uma viagem à Europa.
James Hope
participou alegre esta notícia aos três moços.
— Mas vão
já? perguntou Andrade quando o pai de Sara lhe disse isto na rua.
— Daqui a
dois meses, respondeu o velho.
—
Valha-nos isso! pensou Andrade.
Dois meses!
Devia vencer ou morrer dentro daquele prazo.
Andrade
auscultava o espírito da moça com perseverança e solicitude; nada lhe era
indiferente; um livro, uma frase, um gesto, uma opinião, tudo Andrade ouvia com
atenção religiosa, tudo examinava cuidadosamente.
Um domingo
em que lá se achavam na chácara todos, em companhia de algumas moças da
vizinhança, falava-se de modas e cada uma dava a sua opinião.
Andrade
conversava alegremente e também discutia o assunto da conversa, mas o seu
olhar, a sua atenção estavam voltados para a bela Sara.
A
distração da moça era evidente.
Em que
pensaria ela?
De
repente, entra pelo jardim o filho de James, que ficara na cidade para aviar
uns negócios do paquete.
— Sabem a
novidade? disse ele.
— Que é?
perguntaram todos.
— Caiu o
ministério.
— Deveras?
disse James.
— Que
temos nós com o ministério? perguntou uma das moças.
— O mundo
caminha bem sem o ministério, observou outra.
— Oremos
pelo ministério, acrescentou piedosamente uma terceira.
Não se
falou mais nisto. Aparentemente, era uma coisa insignificante, um incidente sem resultado, na vida aprazível
daquela abençoada solidão.
Assim
seria para os outros.
Para
Andrade foi um raio de luz, — ou pelo menos um indício veemente.
Notou ele
que Sara ouvira a notícia com atenção profunda demais para o seu sexo, e depois
ficara algum tanto pensativa.
Por quê?
Tomou nota
do incidente.
Noutra
ocasião foi surpreendê-la a ler um livro.
— Que
livro será esse? perguntou ele sorrindo.
— Veja,
respondeu ela apresentando-lhe o livro.
Era uma
história de Catarina de Médicis.
Isto seria
insignificante para outro; para o nosso candidato era um vestígio preciosíssimo.
Com os
apontamentos que tinha, já Andrade podia conhecer a situação; mas, como era
prudente, buscou esclarecê-la melhor.
Um dia
mandou uma cartinha a James Hope, concebida nestes termos:
“Empurraram-me
alguns bilhetes de teatro: é um espetáculo
em benefício de um homem pobre. Sei como
o senhor é
caridoso, e por isso aí lhe remeto um camarote. A peça é excelente.”
A peça era
o Pedro.
No dia
aprazado, lá estava Andrade no Ginásio. Hope não faltou, com a família, ao
espetáculo anunciado.
Nunca
Andrade sentira tanto a beleza de Sara. Estava esplêndida, mas o que aumentava
a beleza e o que lhe inspirava adoração maior, era o concerto de louvores que ele ouvia à
roda de si. Se todos gostavam dela, não era natural que ela só lhe pertencesse
a ele?
Pela razão
de beleza, como por causa das observações que Andrade queria fazer, não tirou
os olhos da moça durante a noite inteira.
Foi ao
camarote dela no fim do segundo ato.
— Venha,
disse-lhe Hope, deixe-me agradecer-lhe a ocasião que me proporcionou de ver
Sara entusiasmada.
— Ah!
— É um
excelente drama este Pedro, disse a moça apertando a mão de Andrade.
—
Excelente só? perguntou ele.
— Diga-me,
perguntou James, este Pedro sobe sempre até ao fim?
— Não o
disse ele no primeiro ato? respondeu Andrade. Subir! subir! subir! Quando um
homem sente em si uma grande ambição, não pode deixar de realizá-la, porque justamente nesse
caso é que se deve aplicar o querer é
poder.
— Tem
razão, disse Sara.
— Pela
minha parte, continuou Andrade, nunca deixei de admirar este caráter soberbo,
natural, grandioso, que me parece falar ao que há de mais íntimo em minha alma!
Que é a vida sem uma grande ambição?
Este
arrojo de vaidade produziu o desejado efeito, eletrizou a moça, a cujos olhos
parecia que Andrade se havia transfigurado.
Bem o
percebeu Andrade, que coroava assim os seus esforços.
Adivinhara
tudo.
Tudo o
quê?
Adivinhara
que Miss Hope era ambiciosa.
CAPÍTULO V
Eram duas
pessoas diferentes até aquele dia; daí a pouco pareciam entender-se, harmonizar-se, completar-se.
Tendo
compreendido e sondado a situação, Andrade não deixou de prosseguir no ataque em regra. Sabia para onde
iam as simpatias da moça; foi com elas,
e tão cauteloso, e ao mesmo tempo tão audaz, que inspirou ao espírito de Sara
pouco disfarçável entusiasmo.
Entusiasmo,
digo, e era esse o sentimento que devia inspirar quem pretendesse o coração de Miss Hope.
Amor é bom
para as almas angélicas.
Sara não
era assim; a ambição não se contenta com flores e horizontes curtos. Não pelo amor, mas pelo
entusiasmo, é que ela devia ser vencida.
Sara via
Andrade com olhos de admiração. Ele soubera, a pouco e pouco, convencê-la de
que era um homem essencialmente ambicioso, confiado na sua estrela, e seguro dos seus
destinos.
Que mais
queria a moça?
Ela era
efetivamente ambiciosa e sedenta de honras e eminências. Se tivesse nascido nas
imediações de um trono, poria esse trono em perigo.
Para que
ela amasse alguém, era necessário que esse pudesse competir com ela no gênio, e
lhe afiançasse a vinda de glórias futuras.
Andrade
compreendera isso.
E tão
hábil se houve que conseguira fascinar a moça.
Hábil,
digo eu, e nada mais; porque, se houve jamais criatura desambiciosa neste
mundo, espírito mais tímido, gênio menos desejoso de mando e poderio, esse foi
sem dúvida o n osso Andrade.
A paz era
para ele o ideal.
E a
ambição não existe sem perpétua guerra.
Como
conciliar, pois, este gênio natural com as esperanças que inspirara à ambiciosa Sara?
Deixava ao
futuro?
Desenganá-la-ia,
quando fosse conveniente?
A viagem à
Europa foi ainda uma vez adiada, porque Andrade, competentemente autorizado
pela moça, pediu-a em casamento ao honrado
comerciante James Hope.
— Perco
ainda uma vez a minha viagem, disse o velho, mas desta vez por um motivo
legítimo e agradável; faço minha filha feliz.
—
Parece-lhe que eu... murmurou Andrade.
— Ande lá,
disse Hope batendo no ombro do futuro genro; minha filha morre pelo senhor.
O
casamento foi celebrado dentro de um mês. Os noivos foram passar a lua-de-mel
na Tijuca. Cinco meses depois estavam ambos na cidade, ocupando uma casa
poética e romanesca em Andaraí.
Até então
a vida foi um caminho semeado de flores. Mas o amor não podia tudo numa aliança
iniciada pela ambição.
Andrade
estava satisfeito e feliz. Simulou enquanto pôde o caráter que não tinha; mas, le naturel chassé, revenait au galop. A pouco e pouco iam manifestando-se as preferências do rapaz por
uma vida calma e pacífica, sem ambições, nem ruído.
Sara
começou a notar que a política e todas as grandezas do Estado aborreciam sobremaneira o marido. Lia alguns
romances, alguns versos, e nada mais, aquele homem que, pouco antes de casar, parecia
destinado a mudar a face do globo. Política era para ele sinônimo de
dormideira.
Tarde
conheceu Sara quanto se havia enganado. Grande foi a sua desilusão. Como ela
possuísse realmente uma alma ávida de grandeza e poderio, sentiu amargamente
este desengano.
Quis
disfarçá-lo, mas não pôde.
E um dia
disse a Andrade:
— Por que
razão a águia perdeu as asas?
— Qual
águia? perguntou ele.
Andrade
compreendeu a intenção dela.
— A águia
era apenas uma pomba, disse ele, passando-lhe o braço à roda da cintura.
Sara
recuou e foi encostar-se à janela.
Caía,
então, a tarde; e tudo parecia convidar aos devaneios do coração.
—
Suspiras? perguntou Andrade.
Não teve
resposta.
Houve
longo silêncio, interrompido apenas pelo tacão de Andrade que batia
compassadamente no chão.
Afinal,
levantou-se o rapaz.
— Olha,
Sara, disse ele, vês este céu dourado e esta natureza tranqüila?
A moça não
respondeu.
— Isto é a
vida, isto é a verdadeira glória, continuou o marido. Tudo mais é manjar de almas doentias. Gozemos isto,
que deste mundo é o melhor.
Deu-lhe um
beijo na testa e saiu.
Sara ficou
longo tempo pensativa, à janela; e não sei se a leitora achará ridículo que ela
vertesse alguma lágrima.
Verteu duas.
Uma pelas
ambições abatidas e desfeitas.
Outra pelo
erro em que estivera até então.
Porquanto,
se o espírito parecia magoado e entorpecido com o desenlace de tantas ilusões, dizia-lhe o
coração que a verdadeira felicidade de
uma mulher está na paz doméstica.
Que mais
lhe direi para completar a narrativa?
Sara disse
adeus às ambições dos primeiros anos, e voltou-se toda para outra ordem de
desejos.
Quis Deus
que ela os realizasse. Quando morrer não terá página na história; mas o marido
poderá escrever-lhe na sepultura: Foi boa esposa e teve muitos filhos.
---
Nota:
Histórias Românticas, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1938. Publicado originalmente em Jornal das Famílias, setembro de 1872. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
Histórias Românticas, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1938. Publicado originalmente em Jornal das Famílias, setembro de 1872. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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