
UM CAPITÃO DE VOLUNTÁRIOS
Indo a
embarcar para a Europa, logo depois da proclamação da República, Simão de
Castro fez inventário das cartas e apontamentos; rasgou tudo. Só lhe ficou a narração que ides ler; entregou-a a um amigo para
imprimi-la quando ele estivesse barra
fora. O amigo não cumpriu a recomendação por achar na história alguma coisa que
podia ser penosa, e assim lho disse em carta. Simão respondeu que estava por
tudo o que quisesse; não tendo vaidades literárias, pouco se lhe dava de vir ou
não a público. Agora que os dois faleceram, e não há igual escrúpulo, dá-se o
manuscrito ao prelo.
Éramos
dois, elas duas. Os dois íamos ali por visita, costume, desfastio, e finalmente
por amizade. Fiquei amigo do dono da casa, ele meu amigo. Às tardes, sobre o jantar, — jantava-se cedo em
1866, — ia ali fumar um charuto. O sol ainda entrava pela janela, onde se via
um morro com casas em cima. A janela oposta dava para o mar. Não digo a rua nem
o bairro; a cidade posso dizer que era o Rio de Janeiro. Ocultarei o nome do
meu amigo; ponhamos uma letra, X... Ela, uma delas, chamava-se Maria.

Quando eu
entrava, já ele estava na cadeira de balanço. Os móveis da sala eram poucos, os ornatos raros, tudo simples. X... estendia-me a mão
larga e forte; eu ia sentar-me ao pé da janela, olho na
sala, olho na rua. Maria, ou já estava ou vinha de dentro. Éramos nada um para o outro;
ligava-nos unicamente a afeição de X... Conversávamos; eu saía para casa ou ia
passear, eles ficavam e iam dormir. Algumas vezes jogávamos cartas, às noites,
e, para o fim do tempo, era ali que eu passava a maior parte destas.
Tudo em
X... me dominava. A figura primeiro. Ele robusto, eu franzino; a minha graça
feminina, débil, desaparecia ao pé do garbo varonil dele, dos seus ombros largos,
cadeiras largas, jarrete forte e o pé sólido que, andando, batia rijo no chão.
Dai-me um bigode escasso e fino; vede nele as suíças longas, espessas e encaracoladas,
e um dos seus gestos habituais, pensando ou escutando, era passar os dedos por
elas, encaracolando-as sempre. Os olhos completavam a figura, não só por serem
grandes e belos, mas porque riam mais e melhor que a boca. Depois da figura, a
idade; X... era homem de quarenta anos, eu não passava dos vinte e quatro.
Depois da idade, a vida; ele vivera muito, em outro meio, donde saíra a
encafuar-se naquela casa, com aquela senhora, eu não vivera nada nem com pessoa
alguma. Enfim, — e este rasgo é capital, — havia nele uma fibra castelhana, uma
gota do sangue que circula nas páginas de Calderón, uma atitude moral que posso
comparar, sem depressão nem riso, à do herói de Cervantes.
Como se
tinham amado? Datava de longe. Maria contava já vinte e sete anos, e parecia haver recebido alguma educação. Ouvi que o primeiro
encontro fora em um baile de máscaras, no antigo Teatro Provisório. Ela trajava uma
saia curta, e dançava ao som de um pandeiro. Tinha os pés admiráveis, e foram
eles ou o seu destino a causa do amor de
X... Nunca lhe perguntei a origem da aliança; sei só que ela tinha uma filha,
que estava no colégio e não vinha à casa; a mãe é que ia vê-la. Verdadeiramente
as nossas relações eram respeitosas, e o respeito ia ao ponto de aceitar a
situação sem a examinar.
Quando
comecei a ir ali, não tinha ainda o emprego no banco. Só dois ou três meses depois é
que entrei para este, e não interrompi as relações. Maria tocava piano; às vezes, ela e a amiga Raimunda
conseguiam arrastar X... ao teatro; eu ia com eles. No fim, tomávamos chá em
sala particular, e, uma ou outra vez, se havia lua, acabávamos a noite indo de
carro a Botafogo.
A estas
festas não ia Barreto, que só mais tarde começou a freqüentar a casa. Entretanto,
era bom companheiro, alegre e rumoroso. Uma noite, como saíssemos de lá, encaminhou a conversa para as
duas mulheres, e convidou-me a namorá-las.
— Tu
escolhes uma, Simão, eu outra.
Estremeci
e parei.
— Ou
antes, eu já escolhi, continuou ele; escolhi a Raimunda. Gosto muito da Raimunda.
Tu, escolhe a outra.
— A Maria?
— Pois que
outra há de ser?
O alvoroço
que me deu este tentador foi tal que não achei palavra de recusa, nem palavra
nem gesto. Tudo me pareceu natural e necessário. Sim, concordei em escolher Maria; era mais velha que eu três
anos, mas tinha a idade conveniente para
ensinar-me a amar. Está dito, Maria. Deitamo-nos às duas conquistas com ardor e
tenacidade. Barreto não tinha que vencer muito; a eleita dele não trazia
amores, mas até pouco antes padecera de uns que rompera
contra a vontade, indo o amante casar com uma
moça de Minas. Depressa se deixou consolar. Barreto um dia, estando eu a
almoçar, veio anunciar-me que recebera uma carta dela, e mostrou-ma.
contra a vontade, indo o amante casar com uma
moça de Minas. Depressa se deixou consolar. Barreto um dia, estando eu a
almoçar, veio anunciar-me que recebera uma carta dela, e mostrou-ma.
— Estão
entendidos?
— Estamos.
E vocês?
— Eu não.
— Então
quando?
— Deixa
ver; eu te digo.
Naquele
dia fiquei meio vexado. Com efeito, apesar da melhor vontade deste mundo, não
me atrevia a dizer a Maria os meus sentimentos. Não suponhas que era nenhuma
paixão. Não tinha paixão, mas curiosidade. Quando a via esbelta e fresca, toda
calor e vida, sentia-me tomado de uma força nova e misteriosa; mas, por um
lado, não amara nunca, e, por outro, Maria era a companheira de meu amigo. Digo
isto, não para explicar escrúpulos, mas unicamente para fazer compreender o meu
acanhamento. Viviam juntos desde alguns anos, um para o outro. X... tinha
confiança em mim, confiança absoluta, comunicava-me os seus negócios,
contava-me coisas da vida passada. Apesar da desproporção da idade, éramos como estudantes do mesmo ano.
Como
entrasse a pensar mais constantemente em Maria, é provável que por algum gesto
lhe houvesse descoberto o meu recente estado; certo é que, um dia, ao apertar-lhe a mão, senti que os dedos
dela se demoravam mais entre os meus. Dois dias depois, indo ao correio,
encontrei-a selando uma carta para a Bahia. Ainda não disse que era baiana? Era
baiana. Ela é que me viu primeiro e me falou. Ajudei-lhe a pôr o selo e despedimo-nos. À porta ia a
dizer alguma coisa, quando vi ante nós, parada, a figura de X...
— Vim
trazer a carta para mamãe, apressou-se ela em dizer.
Despediu-se
de nós e foi para casa; ele e eu tomamos outro rumo. X... aproveitou a ocasião
para fazer muitos elogios de Maria. Sem entrar em minudências acerca da origem das relações,
assegurou-me que fora uma grande paixão igual em ambos, e concluiu que tinha a
vida feita.
— Já agora
não me caso; vivo maritalmente com ela, morrerei com ela. Tenho uma só pena; é
ser obrigado a viver separado de minha mãe. Minha mãe sabe, disse-me ele
parando. E continuou andando: sabe, e até já me fez uma alusão muito vaga e
remota, mas que eu percebi. Consta-me que não desaprova; sabe que Maria é séria
e boa, e uma vez que eu seja feliz, não exige mais nada. O casamento não me
daria mais que isto...
Disse
muitas outras coisas, que eu fui ouvindo sem saber de mim; o coração batia-me
rijo, e as pernas andavam frouxas. Não atinava com resposta idônea; alguma
palavra que soltava, saía-me engasgada. Ao cabo de algum tempo, ele notou o meu
estado e interpretou-o erradamente; supôs que as suas confidências me
aborreciam, e disse-mo rindo. Contestei sério:
— Ao
contrário, ouço com interesse, e trata-se de pessoas de toda a consideração e respeito.
Penso
agora que cedia inconscientemente a uma necessidade de hipocrisia. A idade das paixões é confusa, e naquela
situação não posso discernir bem os sentimentos e suas causas. Entretanto, não
é fora de propósito que buscasse dissipar no ânimo de X... qualquer possível
desconfiança. A verdade é que ele
me ouviu agradecido. Os seus grandes olhos de
criança envolveram-me todo, e quando nos despedimos,
apertou-me a mão com energia. Creio até que lhe ouvi dizer: “Obrigado!”
me ouviu agradecido. Os seus grandes olhos de
criança envolveram-me todo, e quando nos despedimos,
apertou-me a mão com energia. Creio até que lhe ouvi dizer: “Obrigado!”
Não me
separei dele aterrado, nem ferido de remorsos prévios. A primeira impressão da
confidência esvaiu-se, ficou só a confidência, e senti crescer-me o alvoroço da
curiosidade. X... falara-me de Maria como de pessoa casta e conjugal; nenhuma alusão às suas prendas físicas, mas a minha
idade dispensava qualquer referência direta. Agora, na rua, via
de cor a figura da moça, os seus gestos igualmente
lânguidos e robustos, e cada vez me sentia mais fora de mim. Em casa
escrevi-lhe uma carta longa e difusa, que rasguei meia hora depois, e fui
jantar. Sobre o jantar fui à casa de X...
Eram
ave-marias. Ele estava na cadeira de balanço, eu sentei-me no lugar do costume,
olho na sala, olho no morro. Maria apareceu tarde, depois das horas, e tão anojada que não tomou parte na conversação.
Sentou-se e cochilou; depois tocou um pouco de piano e saiu da sala.
— Maria
acordou hoje com a mania de colher donativos para a guerra, disse-me ele. Já
lhe fiz notar que nem todos quererão parecer que... Você sabe... A posição
dela... Felizmente, a idéia há de passar; tem dessas fantasias...
— E por
que não?
— Ora,
porque não! E depois, a guerra do Paraguai, não digo que não seja como todas as
guerras, mas, palavra, não me entusiasma. A princípio, sim, quando o López
tomou o Marquês de Olinda, fiquei indignado; logo depois perdi a impressão, e agora,
francamente, acho que tínhamos feito muito melhor se nos aliássemos ao López
contra os argentinos.
— Eu não.
Prefiro os argentinos.
— Também
gosto deles, mas, no interesse da nossa gente, era melhor ficar com o López.
— Não;
olhe, eu estive quase a alistar-me como voluntário da pátria.
— Eu, nem
que me fizessem coronel, não me alistava.
Ele disse
não sei que mais. Eu, como tinha a orelha afiada, à escuta dos pés de Maria,
não respondi logo, nem claro, nem seguido; fui engrolando alguma palavra e
sempre à escuta. Mas o diabo da moça não vinha; imaginei que estariam
arrufados. Enfim, propus cartas, podíamos jogar uma partida de voltarete.
— Podemos,
disse ele.
Passamos
ao gabinete. X... pôs as cartas na mesa e foi chamar a amiga. Dali ouvi algumas
frases sussurradas, mas só esta me chegaram claras:
— Vem! é
só meia hora.
— Que
maçada! Estou doente.
Maria
apareceu no gabinete, bocejando. Disse-me que era só meia hora; tinha dormido mal, doía-lhe a cabeça e contava
deitar-se cedo. Sentou-se enfastiada, e começamos a partida. Eu arrependia-me
de haver rasgado a carta; lembrava-me alguns trechos dela, que diriam bem o meu
estado, com o calor necessário a persuadi-la. Se a tenho conservado,
entregava-lhe agora; ela ia muita vez ao patamar da escada despedir-se de mim e
fechar a cancela. Nessa ocasião podia

dar-lha;
era uma solução da minha crise.
Ao cabo de
alguns minutos, X... levantou-se para ir buscar tabaco de uma caixa de folha-de-flandres, posta sobre a secretária. Maria fez então um
gesto que não sei como diga nem pinte. Ergueu as cartas à altura dos olhos para
os tapar, voltou-os para mim que lhe ficava à esquerda, e arregalou-os tanto e
com tal fogo e atração, que não sei como não entrei por eles. Tudo
foi rápido. Quando ele voltou fazendo um
cigarro, Maria tinha as cartas embaixo dos olhos, abertas em leque, fitando-as
como se calculasse. Eu devia estar trêmulo; não obstante, calculava também, com
a diferença de não poder falar. Ela disse então com placidez uma das palavras
do jogo, passo ou licença.
Jogamos
cerca de uma hora. Maria, para o fim, cochilava literalmente, e foi o próprio
X... que lhe disse que era melhor ir descansar. Despedi-me e passei ao corredor,
onde tinha o chapéu e a bengala. Maria, à porta da sala, esperava que eu saísse
e acompanhou-me até à cancela, para fechá-la. Antes que eu descesse, lançou-me um dos braços ao pescoço,
chegou-me a si, colou-me os lábios nos lábios, onde eles me depositaram um
beijo grande, rápido e surdo. Na mão senti alguma coisa.
— Boa
noite, disse Maria fechando a cancela.
Não sei
como não caí. Desci atordoado, com o beijo na boca, os olhos nos dela, e a mão
apertando instintivamente um objeto. Cuidei de me pôr longe. Na primeira rua,
corri a um lampião, para ver o que trazia. Era um cartão de loja de fazendas,
um anúncio, com isto escrito nas costas, a lápis: “Espere-me amanhã, na ponte
das barcas de Niterói, a uma hora da tarde”.
O meu
alvoroço foi tamanho que durante os primeiros minutos não soube absolutamente o
que fiz. Em verdade, as emoções eram demasiado grandes e numerosas, e tão de
perto seguidas que eu mal podia saber de mim. Andei até ao Largo de S.
Francisco de Paula. Tornei a ler o cartão; arrepiei caminho, novamente parei, e
uma patrulha que estava perto talvez desconfiou dos meus gestos. Felizmente, a
respeito da comoção, tinha fome e fui cear ao Hotel dos Príncipes. Não dormi
antes da madrugada; às seis horas estava em pé. A manhã foi lenta como as agonias lentas. Dez minutos
antes de uma hora cheguei à ponte; já lá achei Maria, envolvida numa capa, e
com um véu azul no rosto. Ia sair uma barca, entramos nela.
O mar
acolheu-nos bem. A hora era de poucos passageiros. Havia movimento de lanchas,
de aves, e o céu luminoso parecia cantar a nossa primeira entrevista. O que
dissemos foi tão de atropelo e confusão que não me ficou mais de meia dúzia de
palavras, e delas nenhuma foi o nome de X... ou qualquer referência a ele.
Sentíamos ambos que traíamos, eu o meu amigo, ela o seu amigo e protetor. Mas, ainda que o não sentíssemos,
não é provável que falássemos dele, tão pouco era o tempo para o nosso
infinito. Maria apareceu-me então como nunca a vi nem suspeitara falando de mim
e de si, com a ternura possível naquele lugar público, mas toda a possível, não
menos. As nossas mãos colavam-se, os nossos olhos
comiam-se, e os corações batiam provavelmente ao mesmo compasso
rápido e rápido. Pelo menos foi a sensação com que me separei dela, após a
viagem redonda a Niterói e S. Domingos. Convidei-a a desembarcar em ambos os
pontos, mas recusou; na volta, lembrei-lhe que nos metêssemos numa caleça
fechada: “Que idéia faria de mim?” perguntou-me com gesto de pudor que a transfigurou. E
despedimo-nos com prazo dado, jurando-lhe que eu não deixaria de ir vê-los, à
noite, como de costume.
Como eu
não tomei da pena para narrar a minha felicidade, deixo a parte deliciosa da
aventura, com as suas entrevistas, cartas e palavras, e mais os sonhos e
esperanças, as infinitas saudades e os renascentes desejos. Tais aventuras são
como os almanaques, que, com todas as suas mudanças, hão de
trazer os mesmos dias e meses, com os seus
eternos nomes e santos. O nosso almanaque apenas durou um
trimestre, sem quartos minguantes nem ocasos de sol. Maria era um modelo de
graças finas, toda vida, toda movimento. Era baiana,
como disse, fora educada no Rio Grande do Sul, na campanha, perto da fronteira. Quando lhe falei do seu primeiro
encontro com X... no Teatro Provisório, dançando ao som de um pandeiro,
disse-me que era verdade, fora ali vestida
à castelhana e de máscara; e, como eu lhe pedisse a mesma coisa, menos a
máscara, ou um simples lundu nosso, respondeu-me como quem recusa um perigo:
trazer os mesmos dias e meses, com os seus
eternos nomes e santos. O nosso almanaque apenas durou um
trimestre, sem quartos minguantes nem ocasos de sol. Maria era um modelo de
graças finas, toda vida, toda movimento. Era baiana,
como disse, fora educada no Rio Grande do Sul, na campanha, perto da fronteira. Quando lhe falei do seu primeiro
encontro com X... no Teatro Provisório, dançando ao som de um pandeiro,
disse-me que era verdade, fora ali vestida
à castelhana e de máscara; e, como eu lhe pedisse a mesma coisa, menos a
máscara, ou um simples lundu nosso, respondeu-me como quem recusa um perigo:
— Você
poderia ficar doido.
— Mas X...
não ficou doido.
— Ainda
hoje não está no seu juízo, replicou Maria rindo. Imagina que eu fazia isto só...
E em pé,
num maneio rápido, deu uma volta ao corpo, que me fez ferver o sangue.
O
trimestre acabou depressa, como os trimestres daquela casta. Maria faltou um dia
à entrevista. Era tão pontual que fiquei tonto quando vi passar a hora. Cinco, dez,
quinze minutos; depois vinte, depois trinta, depois quarenta... Não digo as vezes
que andei de um lado para outro, na sala, no corredor, à espreita e à escuta,
até que de todo passou a possibilidade de vir. Poupo a notícia do meu desespero,
o tempo que rolei no chão, falando, gritando ou chorando. Quando cansei,
escrevi-lhe uma longa carta; esperei que me escrevesse também, explicando a
falta. Não mandei a carta, e à noite fui à casa deles.
Maria pôde
explicar-me a falta pelo receio de ser vista e acompanhada por alguém que a
perseguia desde algum tempo. Com efeito, haviam-me já falado em não sei que
vizinho que a cortejava com instância; uma vez disse-me que ele a seguira até à
porta da minha casa. Acreditei na razão, e propus-lhe outro lugar de encontro,
mas não lhe pareceu conveniente. Desta vez achou melhor suspendermos as nossas
entrevistas, até fazer calar as suspeitas. Não sairia de casa. Não compreendi então que a principal
verdade era ter cessado nela o ardor dos primeiros dias. Maria era outra,
principalmente outra. E não podes imaginar o que vinha a ser essa bela
criatura, que tinha em si o fogo e o gelo, e era mais quente e mais fria que
ninguém.
Quando me
entrou a convicção de que tudo estava acabado, resolvi não voltar lá, mas nem por isso perdia a esperança; era
para mim questão de esforço. A imaginação, que torna presentes os dias
passados, fazia-me crer facilmente na possibilidade de restaurar as primeiras
semanas. Ao cabo de cinco dias, voltei; não podia viver sem ela.
X...
recebeu-me com o seu grande riso infante, os olhos puros, a mão forte e sincera;
perguntou a razão da minha ausência. Aleguei uma febrezinha, e, para explicar o
enfadamento que eu não podia vencer, disse que ainda me doía a cabeça. Maria
compreendeu tudo; nem por isso se mostrou meiga ou compassiva, e, à minha
saída, não foi até ao corredor, como de costume.
Tudo isto
dobrou a minha angústia. A idéia de morrer entrou a passar-me pela cabeça; e,
por uma simetria romântica, pensei em meter-me na barca de Niterói, que
primeiro acolheu os nossos amores, e, no meio da baía, atirar-me ao mar. Não
iniciei tal plano nem outro. Tendo encontrado casualmente o meu amigo Barreto,
não vacilei em lhe dizer tudo; precisava de alguém para falar comigo mesmo. No
fim pedi-lhe segredo; devia pedir-lhe especialmente que não contasse nada a
Raimunda. Nessa mesma noite ela soube tudo. Raimunda era um espírito
aventureiro, amigo de entrepresas e novidades. Não se lhe dava,

talvez, de
mim nem da outra, mas viu naquilo um lance, uma ocupação, e cuidou em reconciliar-nos; foi o que eu soube depois, e é o que dá
lugar a este papel.
Falou-lhe
uma e mais vezes. Maria quis negar a princípio, acabou confessando tudo,
dizendo-se arrependida da cabeçada que dera. Usaria provavelmente de circunlóquios
e sinônimos, frases vagas e truncadas, alguma vez empregaria só gestos. O texto
que aí fica é o da própria Raimunda, que me mandou chamar à casa dela e me referiu todos os seus esforços, contente de si
mesma.
— Mas não
perca as esperanças, concluiu; eu disse-lhe que o senhor era capaz de matar-se.
— E sou.
— Pois não
se mate por ora; espere.
No dia
seguinte vi nos jornais uma lista de cidadãos que, na véspera, tinham ido ao quartel-general apresentar-se como
voluntários da pátria, e nela o nome de X..., com o posto de capitão. Não
acreditei logo; mas eram os mesmos, na mesma ordem, e uma das folhas fazia
referências à família de X..., ao pai, que fora oficial de marinha, e à figura esbelta
e varonil do novo capitão; era ele mesmo.
A minha
primeira impressão foi de prazer; íamos ficar sós. Ela não iria de vivandeira
para o Sul. Depois, lembrou-me o que ele me disse acerca da guerra, e achei
estranho o seu alistamento de voluntário, ainda que o amor dos atos generosos e
a nota cavalheiresca do espírito de X... pudessem explicá-lo. Nem de coronel
iria, disse-me, e agora aceitava o posto de capitão. Enfim, Maria; como é que ele, que tanto lhe queria, ia
separar-se dela repentinamente, sem paixão forte que o levasse à guerra?
Havia três
semanas que eu não ia à casa deles. A notícia do alistamento justificava a
minha visita imediata e dispensava-me de explicações. Almocei e fui. Compus um
rosto ajustado à situação e entrei. X... veio à sala, depois de alguns minutos
de espera. A cara desdizia das palavras; estas queriam ser alegres e leves, aquela era fechada e torva,
além de pálida. Estendeu-me a mão, dizendo:
— Então,
vem ver o capitão de voluntários?
— Venho
ouvir o desmentido.
— Que
desmentido? É pura verdade. Não sei como isto foi, creio que as últimas notícias...
Você por que não vem comigo?
— Mas
então é verdade?
— É.
Após
alguns instantes de silêncio, meio sincero, por não saber realmente que dissesse,
meio calculado, para persuadi-lo da minha consternação, murmurei que era melhor
não ir, e falei-lhe na mãe. X... respondeu-me que a mãe aprovava; era viúva de
militar. Fazia esforços para sorrir, mas a cara continuava a ser de pedra. Os
olhos buscavam desviar-se, e geralmente não fitavam bem nem longo. Não
conversamos muito; ele ergueu-se, alegando que ia liquidar um negócio, e pediu-me que voltasse a vê-lo. À
porta, disse-me com algum esforço:
— Venha
jantar um dia destes, antes da minha partida.

— Sim.
— Olhe,
venha jantar amanhã.
— Amanhã?
— Ou hoje,
se quiser.
— Amanhã.
Quis
deixar lembranças a Maria; era natural e necessário, mas faltou-me o ânimo. Embaixo arrependi-me de o não ter feito. Recapitulei a
conversação, achei-me atado e incerto; ele
pareceu-me, além de frio, sobranceiro. Vagamente,
senti alguma coisa mais. O seu aperto de mão tanto à entrada, como à saída, não
me dera a sensação do costume.
Na noite
desse dia, Barreto veio ter comigo, atordoado com a notícia da manhã, e
perguntando-me o que sabia; disse-lhe que nada. Contei-lhe a minha visita da manhã,
a nossa conversação, sem as minhas suspeitas.
— Pode ser
engano, disse ele, depois de um instante.
— Engano?
— Raimunda
contou-me hoje que falara a Maria, que esta negara tudo a princípio, depois
confessara, e recusara reatar as relações com você.
— Já sei.
— Sim, mas
parece que da terceira vez foram pressentidas e ouvidas por ele, que estava na
saleta ao pé. Maria correu a contar a Raimunda que ele mudara inteiramente;
esta dispôs-se a sondá-lo, eu opus-me, até que li a notícia nos jornais. Vi-o
na rua, andando: não tinha aquele gesto sereno de costume, mas o passo era
forte.
Fiquei
aturdido com a notícia, que confirmava a minha impressão. Nem por isso deixei
de ir lá jantar no dia seguinte. Barreto quis ir também; percebi que era com o
fim único de estar comigo, e recusei.
X... não
dissera nada a Maria; achei-os na sala, e não me lembro de outra situação na
vida em que me sentisse mais estranho a mim mesmo. Apertei-lhes a mão, sem olhar para ela. Creio que ela
também desviou os olhos. Ele é que, com certeza, não nos observou; riscava um
fósforo e acendia um cigarro. Ao jantar falou o mais naturalmente que pôde,
ainda que frio. O rosto exprimia maior
esforço que na véspera. Para explicar a possível alteração, disse-me que embarcaria
no fim da semana, e que, à proporção que a hora ia chegando, sentia dificuldade
em sair.
— Mas é só
até fora da barra; lá fora torno a ser o que sou, e, na campanha, serei o que
devo ser.
Usava
dessas palavras rígidas, alguma vez enfáticas. Notei que Maria trazia os olhos
pisados; soube depois que chorara muito e tivera grande luta com ele, na véspera,
para que não embarcasse. Só conhecera a resolução pelos jornais, prova de
alguma coisa mais particular que o patriotismo. Não falou à mesa, e a dor podia
explicar o silêncio, sem nenhuma outra causa de constrangimento pessoal. Ao
contrário, X... procurava falar muito, contava os batalhões, os oficiais novos,
as probabilidades de vitória, e referia anedotas e boatos, sem curar de
ligação. Às vezes, queria rir; para o fim, disse que naturalmente voltaria
general, mas ficou tão carrancudo depois deste gracejo, que não tentou outro. O jantar acabou frio; fumamos, ele
ainda quis falar da guerra, mas o assunto estava exausto. Antes de sair,
convidei-o a ir jantar comigo.
— Não
posso; todos os meus dias estão tomados.
— Venha
almoçar.
— Também
não posso. Faço uma coisa; na volta do Paraguai, o terceiro dia é seu.
Creio
ainda hoje que o fim desta última frase era indicar que os dois primeiros dias
seriam da mãe e de Maria; assim, qualquer suspeita que eu tivesse dos motivos
secretos da resolução, devia dissipar-se. Nem bastou isso; disse-me que escolhesse
uma prenda em lembrança, um livro, por exemplo. Preferi o seu último retrato, fotografado a pedido da mãe, com a farda de
capitão de voluntários. Por dissimulação, quis que assinasse; ele
prontamente escreveu:
“Ao seu
leal amigo Simão de Castro oferece o capitão de voluntários da pátria X...” O
mármore do rosto era mais duro, o olhar mais torvo; passou os dedos pelo
bigode, com um gesto convulso, e despedimo-nos.
No sábado
embarcou. Deixou a Maria os recursos necessários para viver aqui, na Bahia, ou
no Rio Grande do Sul; ela preferiu o Rio Grande, e partiu para lá, três semanas
depois, a esperar que ele voltasse da guerra. Não a pude ver antes; fechara-me a porta, como já me havia fechado o rosto e o coração.
Antes de
um ano, soube-se que ele morrera em combate, no qual se houve com mais denodo
que perícia. Ouvi contar que primeiro perdera um braço, e que provavelmente a vergonha de ficar aleijado o fez atirar-se contra
as armas inimigas, como quem queria acabar de vez. Esta versão
podia ser exata, porque ele tinha desvanecimentos das belas formas; mas a causa
foi complexa. Também me contaram que Maria, voltando do Rio Grande, morreu em
Curitiba; outros dizem que foi acabar em Montevidéu. A filha não passou dos
quinze anos.
Eu cá
fiquei entre os meus remorsos e saudades; depois, só remorsos; agora admiração
apenas, uma admiração particular, que não é grande senão por me fazer sentir
pequeno. Sim, eu não era capaz de praticar o que ele praticou. Nem efetivamente
conheci ninguém que se parecesse com X... E por que teimar nesta letra?
Chamemo-lo pelo nome que lhe deram na pia, Emílio, o meigo, o forte, o simples
Emílio.
---
Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar,
Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de
Janeiro, 1906. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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