
SUJE-SE GORDO!
Uma noite,
há muitos anos, passeava eu com um amigo no terraço do Teatro de S. Pedro de
Alcântara. Era entre o segundo e o terceiro ato da peça A Sentença ou o Tribunal do Júri. Só me ficou o título, e foi justamente o título que nos levou a falar da instituição e de um fato que nunca mais me esqueceu.
— Fui
sempre contrário ao júri, — disse-me aquele amigo, — não pela instituição em
si, que é liberal, mas porque me repugna condenar alguém, e por aquele preceito do Evangelho; “Não queirais julgar para que não sejais
julgados”. Não obstante, servi duas vezes. O tribunal era então no antigo
Aljube, fim da Rua dos Ourives, princípio da Ladeira da Conceição.
Tal era o
meu escrúpulo que, salvo dois, absolvi todos os réus. Com efeito, os crimes não me pareceram provados; um ou dois processos eram mal
feitos. O primeiro réu que condenei era um moço limpo, acusado de haver furtado
certa quantia, não grande, antes pequena, com falsificação de um papel. Não negou
o fato, nem podia fazê-lo, contestou que lhe coubesse a iniciativa ou
inspiração do
crime. Alguém, que não citava, foi que lhe
lembrou esse modo de acudir a uma necessidade
urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido
castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com
tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a
confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência
caluniada.
crime. Alguém, que não citava, foi que lhe
lembrou esse modo de acudir a uma necessidade
urgente; mas Deus, que via os corações, daria ao criminoso verdadeiro o merecido
castigo. Disse isso sem ênfase, triste, a palavra surda, os olhos mortos, com
tal palidez que metia pena; o promotor público achou nessa mesma cor do gesto a
confissão do crime. Ao contrário, o defensor mostrou que o abatimento e a palidez significavam a lástima da inocência
caluniada.
Poucas
vezes terei assistido a debate tão brilhante. O discurso do promotor foi curto,
mas forte, indignado, com um tom que parecia ódio, e não era. A defesa, além do talento do advogado, tinha a circunstância de ser a estréia
dele na tribuna. Parentes, colegas e
amigos esperavam o primeiro discurso do rapaz, e não perderam na espera. O
discurso foi admirável, e teria salvo o réu, se ele pudesse ser salvo, mas o crime metia-se pelos
olhos dentro. O advogado morreu dois anos depois, em 1865. Quem sabe o que se
perdeu nele! Eu, acredite, quando vejo morrer um moço de talento, sinto mais
que quando morre um velho... Mas vamos ao que ia contando. Houve réplica do
promotor e tréplica do defensor. O presidente do tribunal resumiu os debates,
e, lidos os quesitos, foram entregues ao presidente do Conselho, que era eu.
Um dos
jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que lá se passou, não
interessa ao caso particular, que era melhor ficasse também calado, confesso.
Cantarei depressa; o terceiro ato não tarda.
Um dos
jurados do Conselho, cheio de corpo e ruivo, parecia mais que ninguém convencido
do delito e do delinqüente. O processo foi examinado, os quesitos lidos, e as
respostas dadas (onze votos contra um); só o jurado ruivo estava inquieto. No fim, como os votos assegurassem a
condenação, ficou satisfeito, disse que seria um ato de fraqueza, ou coisa
pior, a absolvição que lhe déssemos. Um dos jurados, certamente o que votara
pela negativa, — proferiu algumas palavras de defesa do moço. O ruivo, —
chamava-se Lopes, — replicou com aborrecimento:
— Como,
senhor? Mas o crime do réu está mais que provado.
— Deixemos
de debate, disse eu, e todos concordaram comigo.
— Não
estou debatendo, estou defendendo o meu voto, continuou Lopes. O crime está
mais que provado. O sujeito nega, porque todo o réu nega, mas o certo é que ele
cometeu a falsidade, e que falsidade! Tudo por uma miséria, duzentos mil-réis!
Suje-se gordo! Quer sujar-se? Suje-se gordo!
“Suje-se
gordo!” Confesso-lhe que fiquei de boca aberta, não que entendesse a frase, ao
contrário, nem a entendi nem a achei limpa, e foi por isso mesmo que fiquei de
boca aberta. Afinal caminhei e bati à porta, abriram-nos, fui à mesa do juiz,
dei as respostas do Conselho e o réu saiu condenado. O advogado apelou; se a
sentença foi confirmada ou a apelação aceita, não sei; perdi o negócio de vista.
Quando saí
do tribunal, vim pensando na frase do Lopes, e pareceu-me entendê-la. “Suje-se
gordo!” era como se dissesse que o condenado era mais que ladrão, era um ladrão
reles, um ladrão de nada. Achei esta explicação na esquina da Rua de S. Pedro;
vinha ainda pela dos Ourives. Cheguei a desandar um pouco, a ver se descobria o
Lopes para lhe apertar a mão; nem sombra de Lopes. No dia seguinte, lendo nos
jornais os nossos nomes, dei com o nome todo dele; não valia a pena procurá-lo,
nem me ficou de cor. Assim são as páginas da vida, como dizia meu filho quando
fazia versos, e acrescentava que as páginas vão passando umas sobre outras,
esquecidas apenas lidas. Rimava assim, mas não me lembra a forma dos versos.
Em prosa
disse-me ele, muito tempo depois, que eu não devia faltar ao júri,
para o qual acabava de ser designado.
Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito
evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito,
que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.
para o qual acabava de ser designado.
Respondi-lhe que não compareceria, e citei o preceito
evangélico; ele teimou, dizendo ser um dever de cidadão, um serviço gratuito,
que ninguém que se prezasse podia negar ao seu país. Fui e julguei três processos.
Um destes
era de um empregado do Banco do Trabalho Honrado, o caixa, acusado de um desvio
de dinheiro. Ouvira falar no caso, que os jornais deram sem grande minúcia, e
aliás eu lia pouco as notícias de crimes. O acusado apareceu e foi sentar-se no famoso banco dos réus. Era um homem
magro e ruivo. Fitei-o bem, e estremeci; pareceu-me ver o meu colega daquele julgamento
de anos antes. Não poderia reconhecê-lo logo por estar agora magro, mas era a
mesma cor dos cabelos e das barbas, o mesmo ar, e por fim a mesma voz e o mesmo nome: Lopes.
— Como se
chama? perguntou o presidente.
— Antônio
do Carmo Ribeiro Lopes.
Já me não
lembravam os três primeiros nomes, o quarto era o mesmo, e os outros sinais vieram confirmando as reminiscências; não me tardou
reconhecer a pessoa exata daquele dia remoto. Digo-lhe aqui com verdade que
todas essas circunstâncias me impediram de
acompanhar atentamente o interrogatório, e muitas coisas me escaparam. Quando me dispus a
ouvi-lo bem, estava quase no fim. Lopes negava com firmeza tudo o que lhe era
perguntado, ou respondia de maneira que trazia uma complicação ao processo.
Circulava os olhos em medo nem
ansiedade; não sei até se com uma pontinha de riso nos cantos da boca.
Seguiu-se
a leitura do processo. Era uma falsidade e um desvio de cento e dez contos de
réis. Não lhe digo como se descobriu o crime nem o criminoso, por já ser tarde; a orquestra está afinando os
instrumentos. O que lhe digo com certeza é que a leitura dos autos me
impressionou muito, o inquérito, os documentos, a tentativa de fuga do caixa e
uma série de circunstâncias agravantes; por fim o
depoimento das testemunhas. Eu ouvia ler ou falar e olhava para o
Lopes. Também ele ouvia, mas com o rosto alto, mirando o escrivão, o
presidente, o teto e as pessoas que o iam julgar; entre elas eu. Quando olhou
para mim não me reconheceu; fitou-me algum tempo e sorriu, como fazia aos outros.
Todos
esses gestos do homem serviram à acusação e à defesa, tal como serviram, tempos
antes, os gestos contrários do outro acusado. O promotor achou neles a revelação clara do cinismo, o
advogado mostrou que só a inocência e a certeza da absolvição podiam trazer
aquela paz de espírito.
Enquanto
os dois oradores falavam, vim pensando na fatalidade de estar ali, no mesmo
banco do outro, este homem que votara a condenação dele, e naturalmente repeti
comigo o texto evangélico: “Não queirais julgar, para que não sejais julgados”.
Confesso-lhe que mais de uma vez me senti frio. Não é que eu mesmo viesse a cometer algum desvio de
dinheiro, mas podia, em ocasião de raiva, matar alguém ou ser caluniado de
desfalque. Aquele que julgava outrora, era agora julgado também.
Ao pé da
palavra bíblica lembrou-me de repente a do mesmo Lopes: “Suje-se gordo!” Não imagina o sacudimento que me deu
esta lembrança. Evoquei tudo o que contei agora, o discursinho que lhe ouvi na
sala secreta, até àquelas palavras: “Suje-se gordo!” Vi que não era um ladrão
reles, um ladrão de nada, sim de grande valor. O verbo é que definia duramente
a ação. “Suje-se gordo!” Queria dizer que o homem não se devia levar a um ato
daquela espécie sem a grossura da soma. A ninguém cabia sujar-se por quatro
patacas. Quer sujar-se? Suje-se gordo!
Idéias e
palavras iam assim rolando na minha cabeça, sem eu dar pelo resumo dos debates que o presidente do tribunal fazia. Tinha acabado, leu
os quesitos e recolhemo-nos à sala secreta. Posso dizer-lhe aqui em particular
que votei afirmativamente, tão certo me pareceu o desvio dos cento e
dez contos. Havia, entre outros
documentos, uma carta de Lopes que fazia evidente o crime. Mas parece que nem todos leram com os mesmos olhos que eu. Votaram
comigo dois jurados. Nove negaram a criminalidade
do Lopes, a sentença de absolvição foi lavrada e lida, e o acusado saiu para a
rua. A diferença da votação era tamanha que cheguei a duvidar comigo se teria
acertado. Podia ser que não. Agora mesmo sinto uns repelões de consciência.
Felizmente, se o Lopes não cometeu deveras o crime, não recebeu a pena do meu
voto, e esta consideração acaba por me consolar do erro, mas os repelões
voltam. O melhor de tudo é não julgar ninguém para não vir a ser julgado.
Suje-se gordo! suje-se magro! suje-se como lhe parecer! o mais seguro é não
julgar ninguém... Acabou a música, vamos para as nossas cadeiras.
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Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar,
Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de
Janeiro, 1906. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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