
MARCHA FÚNEBRE
O deputado
Cordovil não podia pregar olho uma noite de agosto de 186... Viera cedo do
Cassino Fluminense, depois da retirada do Imperador, e durante o baile não
tivera o mínimo incômodo moral nem físico. Ao contrário, a noite foi excelente;
tão excelente que um inimigo seu, que padecia do coração, faleceu antes das dez
horas, e a notícia chegou ao Cassino pouco depois das onze.
Naturalmente
concluis que ele ficou alegre com a morte do homem, espécie de vingança que os corações adversos e fracos
tomam em falta de outra. Digo-te que concluis mal; não foi alegria, foi
desabafo. A morte vinha de meses, era daquelas que não acabam mais, e moem,
mordem, comem, trituram a pobre criatura humana. Cordovil sabia dos
padecimentos do adversário. Alguns amigos, para o consolar de antigas injúrias,
iam contar-lhe o que viam ou sabiam do enfermo, pregado a uma cadeira de
braços, vivendo as noites horrivelmente, sem que as auroras lhe trouxessem
esperanças, nem as tardes desenganos. Cordovil pagava-lhes com alguma palavra
de compaixão, que o alvissareiro adotava, e repetia, e era mais sincera naquele
que neste. Enfim acabara de padecer; daí o desabafo.
Este
sentimento pegava com a piedade humana. Cordovil, salvo em política, não gostava
do mal alheio. Quando rezava, ao levantar da cama: “Padre Nosso, que estás no
céu, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu reino, seja feita a tua
vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia nos dá hoje; perdoa
as nossas dívidas, como nós perdoamos aos nossos devedores”... não imitava um
de seus amigos que rezava a mesma prece, sem todavia perdoar aos devedores,
como dizia de língua; esse chegava a cobrar além do que eles lhe deviam, isto
é, se ouvia maldizer de alguém, decorava tudo e mais alguma coisa e ia
repeti-lo a outra parte. No dia seguinte, porém, a bela oração de Jesus tornava a sair dos lábios da véspera com a
mesma caridade de ofício.
Cordovil
não ia nas águas desse amigo; perdoava deveras. Que entrasse no perdão um
tantinho de preguiça, é possível, sem aliás ser evidente. Preguiça amamenta
muita virtude. Sempre é alguma coisa minguar força à ação do mal. Não esqueça
que o deputado só gostava do mal alheio em política, e o inimigo morto era
inimigo pessoal. Quanto à causa da inimizade, não a sei eu, e o nome do homem acabou com a vida.
— Coitado!
descansou, disse Cordovil.
Conversaram
da longa doença do finado. Também falaram das várias mortes

deste
mundo, dizendo Cordovil que a todas preferia a de César, não por motivo do
ferro, mas por inesperada e rápida.
— Tu quoque? perguntou-lhe um colega rindo.
Ao que
ele, apanhando a alusão, replicou:
— Eu, se
tivesse um filho, quisera morrer às mãos dele. O parricídio, estando fora do comum, faria a tragédia mais trágica.
Tudo foi
assim alegre. Cordovil saiu do baile com sono, e foi cochilando no carro, apesar do mal calçado das ruas. Perto de casa, sentiu parar o
carro e ouviu rumor de vozes. Era o caso de um defunto, que duas praças de
polícia estavam levantando do chão.
—
Assassinado? perguntou ele ao lacaio, que descera da almofada para saber o que
era.
— Não sei,
não, senhor.
— Pergunta
o que é.
— Este
moço sabe como foi, disse o lacaio, indicando um desconhecido, que falava a
outros.
O moço
aproximou-se da portinhola, antes que o deputado recusasse ouvi-lo. Referiu-lhe
então em poucas palavras o acidente a que assistira.
— Vínhamos
andando, ele adiante, eu atrás. Parece que assobiava uma polca. Indo a atravessar a rua para o lado do Mangue,
vi que estacou o passo, a modo que torceu o corpo, não sei bem, e caiu sem
sentidos. Um doutor, que chegou logo, descendo de um sobradinho, examinou o
homem e disse que “morreu de repente”. Foi-se juntando gente, a patrulha levou
muito tempo a chegar. Agora pegou dele. Quer ver o defunto?
— Não,
obrigado. Já se pode passar?
— Pode.
—
Obrigado. Vamos, Domingos.
Domingos
trepou à almofada, o cocheiro tocou os animais, e o carro seguiu até à Rua de
S. Cristóvão, onde morava Cordovil.
Antes de
chegar à casa, Cordovil foi pensando na morte do desconhecido. Em si mesma, era boa; comparada à do inimigo
pessoal, excelente. Ia a assobiar, cuidando sabe Deus em que delícia passada ou
em que esperança futura; revivia o que vivera, ou antevia o que podia viver,
senão quando, a morte pegou da delícia ou da esperança, e lá se foi o homem ao
eterno repouso. Morreu sem dor, ou, se alguma teve, foi acaso brevíssima, como
um relâmpago que deixa a escuridão mais escura.
Então pôs
o caso em si. Se lhe tem acontecido no Cassino a morte do Aterrado? Não seria
dançando; os seus quarenta anos não dançavam. Podia até dizer que ele só dançou
até aos vinte. Não era dado a moças, tivera um afeição única na vida, — aos
vinte e cinco anos, casou e enviuvou ao cabo de cinco semanas para não casar
mais. Não é que lhe faltassem noivas, — mormente depois de perder o avô, que
lhe deixou duas fazendas. Vendeu-as ambas e passou a viver consigo, fez duas
viagens à Europa, continuou a política e a sociedade. Ultimamente parecia
enojado de uma e de outra, mas não tendo em que matar o tempo, não
abriu mão delas. Chegou a ser ministro uma
vez, creio que da Marinha, não passou de sete meses. Nem a
pasta lhe deu glória, nem a demissão desgosto. Não era
ambicioso, e mais puxava para a quietação que para o movimento.
abriu mão delas. Chegou a ser ministro uma
vez, creio que da Marinha, não passou de sete meses. Nem a
pasta lhe deu glória, nem a demissão desgosto. Não era
ambicioso, e mais puxava para a quietação que para o movimento.
Mas se lhe
tivesse sucedido morrer de repente no Cassino, ante uma valsa ou quadrilha,
entre duas portas? Podia ser muito bem. Cordovil compôs de imaginação a cena, ele caído de bruços ou de costas, o prazer
turbado, a dança
interrompida...
e dali podia ser que não; um pouco de espanto apenas, outro de susto, os homens
animando as damas, a orquestra continuando por instantes a oposição do compasso
e da confusão. Não faltariam braços que o levassem para um gabinete, já morto,
totalmente morto.
“Tal qual
a morte de César”, ia dizendo consigo.
E logo
emendou:
“Não,
melhor que ela; sem ameaça, nem armas, nem sangue, uma simples queda e o fim.
Não sentiria nada.”
Cordovil
deu consigo a rir ou a sorrir, alguma coisa que afastava o terror e deixava a
sensação da liberdade. Em verdade, antes a morte assim que após longos dias ou
longos meses e anos, como o adversário que perdera algumas horas antes. Nem era
morrer; era um gesto de chapéu, que se perdia no ar com a própria mão e a alma
que lhe dera movimento. Um cochilo e o sono eterno. Achava-lhe um
só defeito, —
o aparato. Essa
morte no meio
de um baile, defronte do Imperador, ao som de Strauss,
contada, pintada, enfeitada nas folhas públicas, essa morte pareceria de
encomenda. Paciência, uma vez que fosse repentina.
Também
pensou que podia ser na Câmara, no dia seguinte, ao começar o debate do
orçamento. Tinha a palavra; já andava cheio de algarismos e citações. Não quis
imaginar o caso, não valia a pena; mas o caso teimou e apareceu de si mesmo. O
salão da Câmara, em vez do do Cassino, sem damas ou com poucas, nas tribunas. Vasto silêncio. Cordovil em pé
começaria o discurso, depois de circular
os olhos pela casa, fitar o ministro e fitar o presidente: “Releve-me a Câmara
que lhe tome algum tempo, serei breve, buscarei ser justo...” Aqui uma nuvem
lhe taparia os olhos, a língua pararia, o coração também, e ele cairia de golpe no chão. Câmara, galerias, tribunas
ficariam assombradas. Muitos deputados correriam a erguê-lo; um, que era
médico, verificaria a morte; não diria que fora de repente, como o do
sobradinho do Aterrado, mas por outro estilo mais técnico. Os trabalhos seriam
suspensos, depois de algumas palavras do presidente e escolha da comissão que
acompanharia o finado ao cemitério...
Cordovil
quis rir da circunstância de imaginar além da morte, o movimento e o saimento, as próprias notícias dos jornais,
que ele leu de cor e depressa. Quis rir, mas preferia cochilar; os olhos é que,
estando já perto de casa e da cama, não quiseram desperdiçar o sono, e ficaram
arregalados.
Então a
morte, que ele imaginara pudesse ter sido no baile, antes de sair, ou no dia
seguinte em plena sessão da Câmara, apareceu ali mesmo no carro. Supôs ele que,
ao abrirem-lhe a portinhola, dessem com o seu cadáver. Sairia assim de uma
noite ruidosa para outra pacífica, sem conversas, nem danças, nem encontros,
sem espécie alguma de luta ou resistência. O estremeção que teve fez-lhe ver que não era verdade. Efetivamente,
o carro entrou na chácara, estacou, e Domingos saltou da almofada para vir abrir-lhe
a portinhola. Cordovil desceu com as
pernas e a alma vivas, e entrou pela porta lateral, onde o aguardava com um
castiçal e vela acesa o escravo Florindo. Subiu a escada, e os pés sentiam que os degraus eram deste mundo;
se fossem do outro, desceriam naturalmente. Em cima, ao entrar no quarto, olhou
para a cama; era a mesma dos sonos quietos e demorados.

— Veio
alguém?
— Não,
senhor, respondeu o escravo distraído, mas corrigiu logo: Veio, sim, senhor;
veio aquele doutor que almoçou com meu senhor domingo passado.
— Queria
alguma coisa?
— Disse que
vinha dar a meu senhor uma boa notícia, e deixou este bilhete — que eu botei ao pé da cama.
O bilhete
referia a morte do inimigo; era de um dos amigos que usavam contar-lhe a marcha da moléstia. Quis ser o primeiro a anunciar o
desenlace, um alegrão, com um abraço
apertado. Enfim, morrera o patife. Não disse a coisa assim por esses termos
claros, mas os que empregou vinham a dar neles, acrescendo que não atribuiu
esse único objeto à visita. Vinha passar a noite; só ali soube que Cordovil
fora ao Cassino. Ia a sair, quando lhe lembrou a morte e pediu ao Florindo que
lhe deixasse escrever duas linhas. Cordovil entendeu o significado, e ainda uma vez lhe doeu a agonia
do outro. Fez um gesto de melancolia e exclamou a meia voz:
— Coitado!
Vivam as mortes súbitas!
Florindo,
se referisse o gesto e a frase ao doutor do bilhete, talvez o fizesse arrepender
da canseira. Nem pensou nisso; ajudou o senhor a preparar-se para dormir, ouviu as últimas ordens e despediu-se.
Cordovil deitou-se.
— Ah!
suspirou ele estirando o corpo cansado.
Teve então
uma idéia, a de amanhecer morto. Esta hipótese, a melhor de todas, porque o
apanharia meio morto, trouxe consigo mil fantasias que lhe arredaram o sono dos olhos. Em parte, era a repetição
das outras, a participação à Câmara, as palavras do presidente, comissão para o
saimento, e o resto. Ouviu lástimas de amigos e de fâmulos, viu notícias
impressas, todas lisonjeiras ou justas. Chegou a desconfiar que era já sonho.
Não era. Chamou-se ao quarto, à cama, a si mesmo: estava acordado.
A
lamparina deu melhor corpo à realidade. Cordovil espancou as idéias fúnebres e
esperou que as alegres tomassem conta dele e dançassem até cansá-lo. Tentou
vencer uma visão com outra. Fez até uma coisa engenhosa, convocou os cinco
sentidos, porque a memória de todos eles era aguda e fresca; foi assim evocando
lances e rasgos longamente extintos. Gestos, cenas de sociedade e de família,
panoramas, repassou muita coisa vista, com o aspecto do tempo diverso e remoto.
Deixara de comer acepipes que outra vez lhe sabiam, como se estivesse agora a
mastigá-los. Os ouvidos escutavam passos leves e pesados, cantos joviais e
tristes, e palavra de todos os feitios. O tato, o olfato, todos fizeram o seu
ofício, durante um prazo que ele não calculou.
Cuidou de
dormir e cerrou bem os olhos. Não pôde, nem do lado direito, nem do esquerdo, de costas nem de bruços. Ergueu-se e
foi ao relógio; eram três horas. Insensivelmente levou-o à orelha a ver se estava
parado; estava andando, dera-lhe corda. Sim, tinha tempo de dormir um bom sono;
deitou-se, cobriu a cabeça para não ver a luz.
Ah! foi
então que o sono tentou entrar, calado e surdo, todo cautelas, como seria a morte, se quisesse levá-lo de repente, para
nunca mais. Cordovil cerrou os olhos com força, e fez mal, porque a força
acentuou a vontade que tinha de dormir;
cuidou de os afrouxar, e fez bem. O sono, que ia a recuar, tornou atrás, e veio
estirar-se ao lado deles, passando-lhe aqueles braços leves e pesados, a um
tempo, que tiram à pessoa todo movimento. Cordovil os sentia, e com os
seus quis conchegá-los ainda mais... A imagem não é boa, mas não tenho outra à mão nem tempo de ir buscá-la. Digo só o resultado do gesto, que foi arredar o sono de si, tão aborrecido ficou este reformador de cansados.
seus quis conchegá-los ainda mais... A imagem não é boa, mas não tenho outra à mão nem tempo de ir buscá-la. Digo só o resultado do gesto, que foi arredar o sono de si, tão aborrecido ficou este reformador de cansados.
— Que terá
ele hoje contra mim? perguntaria o sono, se falasse.
Tu sabes
que ele é mudo por essência. Quando parece que fala é o sonho que abre a boca à pessoa; ele não, ele é a pedra, e ainda a pedra
fala, se lhe batem, como estão fazendo agora os
calceteiros da minha rua. Cada pancada acorda na pedra um
som, e a regularidade do gesto torna aquele som tão pontual que parece a alma
de um relógio. Vozes de conversa ou de pregão, rodas de carro, passos de gente,
uma janela batida pelo vento, nada dessas coisas que ora ouço, animava então a
rua e a noite de Cordovil. Tudo era propício ao sono.
Cordovil
ia finalmente dormir, quando a idéia de amanhecer morto apareceu outra vez. O
sono recuou e fugiu. Esta alternativa durou muito tempo. Sempre que o sono ia a
grudar-lhe os olhos, a lembrança da morte os abria, até que ele sacudiu o
lençol e saiu da cama. Abriu uma janela e encostou-se ao peitoril. O céu queria
clarear, alguns vultos iam passando na rua, trabalhadores e mercadores que
desciam para o centro da cidade. Cordovil sentiu um arrepio; não sabendo se era
frio ou medo, foi vestir um camisão de chita, e voltou para a janela. Parece que era frio, porque não sentia
mais nada.
A gente
continuava a passar, o céu a clarear, um assobio da estrada de ferro deu sinal
de trem que ia partir. Homens e coisas vinham do descanso, o céu fazia economia
de estrelas, apagando-as à medida que o sol ia chegando para o seu ofício. Tudo
dava idéia de vida. Naturalmente a idéia da morte foi recuando e desapareceu de
todo, enquanto o nosso homem, que suspirou por ela no Cassino, que a desejou
para o dia seguinte na Câmara dos Deputados, que a encarou no carro, voltou-lhe
as costas quando a viu entrar com o sono, seu irmão mais velho, — ou mais moço,
não sei.
Quando
veio a falecer, muitos anos depois, pediu e teve a morte, não súbita, mas
vagarosa, a morte de um vinho filtrado, que sai impuro de uma garrafa para
entrar purificado em outra; a borra iria para o cemitério. Agora é que lhe via
a filosofia; em ambas as garrafas era sempre o vinho que ia ficando, até passar inteiro e pingado para a segunda. Morte súbita não acabava
de entender o que era.
---
Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar,
Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de
Janeiro, 1906. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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