
RUI DE LEÃO
CAPÍTULO PRIMEIRO
Consta de
crônicas inéditas e secretas que, ali pelos anos de 1630, vivia no interior do
Brasil, um fidalgo chamado Rui de Leão, varão de boas prendas, extremado na
língua do país e aparentado com uma família tamoia, por ter casado com uma das
suas mais belas filhas.
Rui de
Leão contava nesse tempo cerca de quarenta anos. Era robusto, corado, ativo,
tão enérgico na alma como no corpo. Tinha no rosto uns longes de melancolia que
se dissipavam muita vez sem que de todo se extinguissem. Parece que a causa dessa desconhecida tristeza
prendia com infortúnios que sofrera em Portugal, e que o trouxeram ao Brasil
em um dos régios
galeões. O certo é que o nosso fidalgo, esquecendo
totalmente a grandeza da sua raça, não duvidou em unir-se pelos laços do
matrimônio à filha de um velho pajé.
Matrimônio,
digo eu, unicamente para usar de um termo corrente; mas a verdade é que não se
deve ligar a esta palavra a idéia cristã que lhe damos. O matrimônio do fidalgo
consistiu nas cerimônias indígenas. Debalde o padre Pires tentou converter a
esposa do fidalgo e santificar a união. Rui de Leão respondia que, de ora em
diante, era tamoio, pois que sua mulher o era, e mandou embora o padre.
Tamoio
ficou o nosso fidalgo, menos no traje, que o conservou civilizado e português. Mas até isso veio a perder daí a
poucos anos, por conselho do pajé que um dia lhe disse:
— Carão
branco, tu és a nossa lua, tu és o nosso irmão, mas só uma coisa te falta. O caju é igual ao caju; o coco é igual
ao coco; só tu carão branco, em vez de seres igual a todos nós, usas de umas
roupas semelhantes às dos nossos inimigos. Por que recusas vestir como nós as
plumas da arara e as cores do jenipapo?
— Pajé,
respondeu Rui de Leão, a pele do carão branco não está afeita ao clima do teu país.
O pajé
sorriu, contemplou o céu, inseriu o dedo mínimo no canto do olho esquerdo e
ejaculou resposta filosófica:
— A água
bate na pedra e fura a pedra: o costume reforma a natureza.
Rui de
Leão estremeceu ouvindo estas palavras na boca do pajé; não lhe parecia que ele
as tirasse do seu cérebro. O sogro entristeceu, insistiu no pedido, e Rui
de Leão depois de meia hora de conferência
cedeu, e despiu-se dos calções, do gibão e dos sapatos.
de Leão depois de meia hora de conferência
cedeu, e despiu-se dos calções, do gibão e dos sapatos.
Grande foi
a festa que seguiu à encarnação do fidalgo no vestuário do deserto.
Nanavi,
sua esposa, fez um esplêndido cocar de plumas com que ele se adornou garridamente.
Entre Rui
de Leão e Júlio César nenhum ponto de contato havia; mas uma circunstância
ligava estes dois grandes homens: eram ambos calvos como a ocasião.
Imaginem o
prazer com que o fidalgo recebeu o cocar; foi por assim dizer a sua coroa de
louros cesariana. Na tarde desse famoso dia houve reunião na cabana do pajé.
Peitos de
papagaio, costeletas de tatu, e outras viandas saborosas serviram de pasto aos
convivas. Quando o sol começou a ficar triste, todos os convivas entraram a
bailar, e bailaram até que o cansaço e o vinho os prostraram no mais profundo
sono.
Extrema
era a confiança da tribo no fidalgo, que logo se habituou aos mais duros exercícios.
Não havia
guerra em que não colhesse imarcescíveis louros, nem matança de vítima a que
não levasse um par de famintos queixos.
A primeira
vez que figurou numa destas festas, era a vítima um galhardo mancebo indígena,
que, segundo o uso, fora engordado previamente por uma velha de seus oitenta
janeiros bem puxados.
Convocou-se
toda a gente da vizinhança, e Rui de Leão teve a glória de ser escolhido para
dar o golpe mortal no rapaz.
Não se
pode descrever a alegria do fidalgo, quando lhe foi conferida essa honra suprema.
Quando ele
apareceu à porta da cabana com a maça mortífera em punho, e o colar de dentes humanos ao pescoço (ordem
honorífica daqueles povos bárbaros), houve um geral murmúrio de admiração.
A única
coisa com que os filhos do deserto embirraram, foi com o nariz de Rui de Leão,
nariz cristianíssimo, verdadeiro contraste com os narizes da gentilidade.
Rezam as
crônicas que esta diferença nasal esteve a ponto de provocar um levantamento no
povo; mas a influência do pajé e a presença da graciosa Nanavi mataram em flor
todo o projeto de insurreição.
Bizarro entrou
na praça o nosso Rui de Leão, e logo se encaminhou para a espécie de palanques
onde a vítima devia ser imolada.
Imediatamente
apareceu o condenado tirado por dois robustos rapazes, e rodeado por uma meia
dúzia de velhos tocando nos seus alguidares, ao passo que uma orquestra
executava em tíbias humanas ásperas variações dos Rossinis do tempo.
Rui de
Leão levantou a maça e começou a atordoar a vítima levemente, no meio dos
aplausos da multidão, até que, com um golpe em cheio, lhe reduziu o crânio a migalhas. Houve
então a repartição da carne da vítima.
Rui de
Leão obteve larga parte e é fama que lhe achou melhor gosto do que outrora nos
guisados da civilização.
Tais foram
as grandes estréias antropófagas de Rui de Leão, que nos outros exercícios desbancava
ao mais pintado.
Apanhar um
papagaio no ar com a flecha ou um peixe no rio; atirar ao arco com pés e mãos,
tudo isso nada era para o nosso fidalgo.
Como os
tamoios eram amigos de vagabundear, depressa o nosso Rui de Leão perdeu o gosto
de fazer ninho, tão pronunciado nos povos civilizados, e era de ver a presteza com que ele construía e
desfazia sua cabana.
A tudo se
afez o esposo de Nanavi. Entretanto é difícil que um homem civilizado perca de
todo a sua tendência propagandista.
Rui de
Leão, posto que achasse bons os costumes do deserto, teve idéia de introduzir neles alguns usos da Europa.
Inúteis
foram os seus esforços.
Os índios
recusaram toda inovação política ou social nos seus hábitos.
Rui de
Leão ficou com a sua vontade.
Aqui temos
pois o nosso herói, na época em que começa esta história, provada em documentos
de incontestável autenticidade.
Justamente
no ano de 1630, dois séculos antes da revolução do Campo da Aclamação, estava
Rui de Leão conversando com o pajé, a respeito das últimas águas, quando Nanavi
apareceu à porta da cabana e comunicou ao esposo a agradável notícia de que
dentro de pouco tempo seria pai.
Rui de
Leão ardia por ver algum fruto da sua união com a tamoia.
Levantou-se
e exclamou:
— Ainda
bem Nanavi: a mangueira não ficou estéril.
— Não,
respondeu a índia.
—
Bem-vinda seja essa criança que há de receber a herança de seu pai e a bênção
de seu avô.
— Ai, não!
exclamou o pajé. Quando teu filho aparecer no mundo, já eu estarei morto.
O pajé
disse estas palavras com tom profético.
Rui de
Leão estremeceu e involuntariamente procurou as algibeiras dos calções, que já
não usava, para meter-lhe as mãos dentro. Nanavi entrou a chorar.
O pajé
consolou a família com uma dissertação filosófica a respeito da sorte; comparou
a vida à luz fugaz do pirilampo: comparação de que os poetas começaram a usar
mais tarde; e concluiu pedindo alguma coisa que comer.
Adivinhara
o pajé. Dois meses antes de vir à luz o rebentão da ilustre raça dos Ruis de
Leão, o pajé adoeceu gravemente. Chamaram-se
os físicos da localidade. Era um deles o ilustre Urumbeba, profundo conhecedor
do corpo humano e seus achaques; e o outro o não menos ilustre Mandijbiyuruçu, versado no conhecimento das
plantas e raízes.
Entraram
estas duas glórias da Academia do sertão com a gravidade própria do caso.
Examinaram
o enfermo, e declararam que era necessária uma conferência entre si, pelo que
se retiraram as mais pessoas.
Quando os
dois físicos ficaram sós, rompeu o silêncio de Urumbeba:
— O rio está
crescendo muito, disse ele.
— Já
reparei nisso; parece que alagará tudo como na lua passada.
— Além
disso, eu tive um sonho.
— Ah!
— Sonhei
que uma cobra imensa desenvolvendo-se
pela terra, enrolara
a tribo toda.
— Uma
cobra?
Urumbeba percebeu
que o colega não atinava com o sentido do sonho.
— Sim, uma
cobra disse Urumbeba e essa cobra é a imagem do rio que nos cercará a todos
nós.
Mandijbiyuruçu
ficou muito assustado com o sonho de Urumbeba, e concordou na necessidade de
levantar as tendas.
Conversaram
largamente nesse assunto até que, passada uma hora, um gemido do pajé veio
lembrar-lhes o objeto principal da conferência.
Na opinião
de Urumbeba o doente devia tomar um cozimento de aipim, dado em quatro porções
de uma cuia cada uma; ao passo que Mandijbiyuruçu optou por uma aplicação de
inimbóia cozida e dada em duas partes com fomentações de caataia.
Divididas
as opiniões, foi necessário que as discutissem.
Mas o
doente piorara, e Rui de Leão veio dizer aos médicos que o pajé estava mal.
Foram os
médicos ter com o enfermo e conheceram que era chegada a última hora; mas como o pajé padecia muito,
resolveram que o melhor remédio era dar-lhe uma cacetada na cabeça —
extrema-unção daqueles povos incultos.
O pajé
compreendeu a situação e pediu para falar particularmente ao genro.
Quando se
acharam sós, disse o pajé:
— Quero
dar-te um presente, o melhor presente que um mortal pode dar a outro, porque o recebi eu mesmo das mãos de Tupã.
Rui de
Leão arregalou os olhos.

— Eu tenho
ainda vida até o sol que vem.
— Quando
vier a noite sairemos ao terreiro; quero ir contigo a um lugar secreto.
Prometeu
Rui de Leão acudir ao convite do pajé. Efetivamente, quando veio a noite, saiu
o pajé encostado ao genro, e a seis ou sete passos da cabana, mandou o pajé que Rui de Leão cavasse certo
montículo de terra. Cavou o fidalgo, e não tardou que aparecesse um vaso
hermeticamente tapado.
— Isto,
disse o pajé, é um segredo que me acompanha sempre. Quando me mudo de um lugar
para outro, levo o vaso comigo e enterro-o atrás da cabana.
Rui de
Leão contemplava o vaso, sem poder adivinhar o que continha.
Veio em
auxílio dele o pajé.
— Era uma
noite em que eu, não podendo dormir, fui sentar-me à beira do mar contemplando
as estrelas. Estava ali já havia muito tempo, quando me apareceu um vulto cheio
de luz e me disse: “Pajé, queres que eu te dê a imortalidade?” “Quero, respondi
eu, beijando a terra.” “Toma este vaso; aqui tens um licor que te dará a
imortalidade; bebe-o quando quiseres, serás imortal.”
Rui de
Leão teve um movimento generoso.
— Ah!
disse ele, bebe depressa.
O pajé
empurrou levemente o genro.
— Não! se
eu quisesse ser imortal, não o teria já bebido? Aceitei o licor com alegria e
guardei-o para beber mais tarde. Profundos desgostos me amarguraram a vida; não
quero ser imortal. Tu sim; és feliz; podes ser imortal. Dou-to; é para ti. Mas
agora enterra o vaso; ninguém deve saber disto.
Rui de
Leão enterrou o vaso.
A noite
estava escura; uma coruja piou em cima de uma árvore; o pio da coruja e o
murmurar do rio eram os únicos sons que se ouviam. Quando Rui de Leão se levantou, viu que o pajé tremia, segurou-o
para não cair. Era tarde; o pajé expirou.
Grande foi
a dor de Nanavi, quando soube da morte do pai. A cerimônia fúnebre impressionou
a todos, porque a palavra do pajé era respeitada e adorada, e todos sabiam que
se perdia nele uma glória da raça tamoia.
CAPÍTULO II
Rui de
Leão voltou ao lugar onde se achava enterrado o vaso do elixir. Desenterrou-o,
tirou-lhe a tampa e examinou atentamente o conteúdo. Era um líquido amarelo,
com seus reflexos azuis quando recebia os raios do sol.
A porção
não era muita, nem para o fim proposto era preciso mais.
O cheiro
do líquido era uma mistura de almíscar e canela.
O esposo
de Nanavi enterrou o vaso e sentou-se sobre uma pedra que lhe ficava ao pé.
Não se
pode saber que tempo gastou Rui de Leão nas profundas reflexões em
que se mergulhou o seu espírito. Apenas
sabemos que, quando Rui de Leão levantou a cabeça, tinha um sorriso nos lábios.
que se mergulhou o seu espírito. Apenas
sabemos que, quando Rui de Leão levantou a cabeça, tinha um sorriso nos lábios.
— Ilusão!
exclamou ele; isto é impossível. Por que motivo não vi logo que o pajé era
vítima de um sonho, ou desejava impor a sua privança com Tupã? Imortalidade! só
Deus poderia dá-la, mas esse não a dá com certeza: a verdade é esta. Eia, Rui
de Leão, evoca o teu bom senso; não sejas tamoio em tudo. O pajé podia iludir
aos outros, mas a mim!...
Levantou-se,
deu dois passos e parou contemplando o lugar onde estava enterrado o precioso
vaso.
— E,
contudo, disse ele, era tão bom possuir a imortalidade! Ver correr os séculos uns
após e outros; ver passar as gerações; o nascimento e a queda dos impérios, e
ficar sobranceiro a tudo; zombar do tempo e dos homens!... Oh! seria uma grande
ventura, e se realmente o elixir do pajé...
Ouviu uns
passos. Era Nanavi.
— Pensas
no teu país? perguntou a indígena.
— O meu
país é o teu, Nanavi, a minha pátria é o teu amor. Que teria eu lá mais do que
tenho aqui? O sol é o mesmo; pisa-se a mesma terra; respira-se o mesmo ar.
Vive-se a mesma vida; morre-se da mesma morte.
Nanavi
lançou os braços à roda do pescoço de Rui de Leão; este beijou-a ternamente na
testa.
— Andas
pensativo... que tens?
— Nada;
saudades do pajé.
— Pobre
pai!
Rui de
Leão sentou-se sobre uma pedra.
— Era um
grande homem teu pai, disse ele.
— Era um
sábio.
— Sim,
era.
— Ninguém
melhor do que ele, continuou Nanavi, sabia ler no céu, nem combinar as raízes
da terra.
Rui
estremeceu.
— Que
tens?
— Nada.
Teu pai conhecia as virtudes das raízes?
— Quem as
não conhece entre os filhos de Tupã?
— Tens
razão.
— Meu pai
era mais sábio que todos os outros; mas não o dizia a ninguém.
Rui de
Leão ficou pensativo.
— Quem
sabe, dizia ele consigo, quem sabe se o pajé não combinou este elixir por meios
secretos, e modestamente o atribuiu a origem divina?
Não sem
admirar a modéstia do pajé, Rui de Leão demorou-se nesta idéia e concluiu que,
em todo o caso, não sendo provável que o sogro lhe quisesse mal, a bebida se
não lhe desse a imortalidade, também não daria a morte.
Dois meses
depois veio à luz um amável pimpolho, fruto da união do fidalgo com a indígena.
Segundo o
uso, Rui de Leão meteu-se na cama, tomou os caldos, recebeu as visitas, ao
passo que a mulher foi cuidar dos arranjos da casa. Urumbeba foi visitar assiduamente a Rui, não porque ele
carecesse dos seus serviços médicos, mas
porque era conversador e alegre nas horas de bom humor.
Numa das
ocasiões, disse-lhe que havia chegado àquela região um padre da nação de Rui,
homem apessoado e de falas de mel.
— Onde
está? perguntou Rui.
— Anda
perto; foi visto na foz do rio.
Daí a dias
apareceu efetivamente o padre Norberto, que andava em missão. Disseram-lhe que
havia ali um homem seu compatriota; foi vê-lo. Eram conhecidos.
O frade
Norberto falou de Portugal e da família de Rui. Disse-lhe que os seus parentes se achavam mortos com exceção de um
primo que fora meter uma lança em África.
— Pouco me
importa saber, frade Norberto, do que vai lá pela minha família, nem se são
vivos ou mortos. Hoje a minha família é Nanavi e meu filho.
Justamente
nessa ocasião acordou o pequerrucho; o frade Norberto viu o fruto do amor da
indígena com o europeu; e disse ao fidalgo.
— Vamos
batizá-lo?
— Não.
— Pois
quê! não quer?
— Não.
— Meu
Deus! continuou o frade Norberto, será isso possível! dir-se-á que estes gentios nascidos e criados sem a luz da fé,
são mais fáceis de converter que V. Mercê nascido e criado no seio da Igreja.
O
argumento não tinha resposta; por isso mesmo o fidalgo tentou sofismá-lo. O digno
frade ouviu-o silencioso.
Quando o
fidalgo acabou disse o frade:
— Peço a
Deus que não faça cair sobre V. Mercê a justa pena deste ato... E saiu.
Logo nessa
noite, teve Rui de Leão uma intensa febre; no dia seguinte piorou. Nenhuma
raiz, nenhuma folha pôde abrandar o mal do pobre Rui. Esgotou-se a farmacopéia
do deserto; a doença tinha todos os sinais de ser mortal. Três dias durou esta
luta entre a natureza e a ciência. Ao cabo desse tempo resolveu-se que, se o
último remédio não produzisse efeito, devia recorrer-se ao medicamento eleitoral do cacete.

Rui não
sabia que já estava condenado, mas suspeitava-o bem, porque o remédio que lhe deram como definitivo nenhum efeito
produzira. Viu a morte diante de si; lembrou-se das palavras do frade Norberto;
contemplou o filho, apenas nascido, a
mulher ainda no viço dos anos. Todas estas coisas juntas fizeram com que Rui reunisse todas as suas forças (que bem poucas
eram), e tentasse de noite ir ao elixir da imortalidade.
Fê-lo a
muito custo; logo à porta da cabana teve um desmaio. Conseguiu levantar-se sem
despertar ninguém. Caminhou lentamente para o montículo onde estava enterrado o vaso; cavou a terra com as
unhas; arrancou o vaso e bebeu parte do conteúdo.
No dia
seguinte amanheceu melhor. Os parentes de Nanavi, que já preparavam os ventres para o condigno enterro do estrangeiro ilustre, ficaram agradavelmente
surpresos quando viram a rápida melhora que naturalmente atribuíram ao remédio que tomara.
Restabeleceu-se
Rui de Leão da moléstia, e grande alegria houve por isso, pois o fidalgo era
realmente a luz daquela gente e o melhor conselho dos casos difíceis.
Certeza de
que estava imortal, não a tinha ainda Rui de Leão; mas certeza de que o elixir
curasse febres teimosas, essa adquiriu logo. Esperemos o resto, dizia ele
consigo.
E esperou.
Não tardou
que se admirasse toda a gente daquelas paragens da robustez crescente de Rui de
Leão; era o segundo efeito do elixir. Multiplicaram-se-lhe as forças e a atividade, coisa que sumamente
agradava a Nanavi, pois naquele tempo e entre aqueles povos, a glória não
estava em agitar um junco parisiense, mas em brandir uma pesada maça de guerra.
Com os
anos cresceram as esperanças de Rui. O tempo nenhuma ação tinha nele; não só os
poucos cabelos que tinha continuaram a ficar pretos, senão que lhe nasceram
outros, e dentro em pouco tempo tinha o homem uma verdadeira floresta na
cabeça, a qual floresta, atenta à falta de pentes no sertão, era uma verdadeira
floresta virgem. Nenhuma ruga lhe afeiou o rosto: nenhum abalo lhe fraqueou o pulso.
Tinha Rui
sessenta anos e era o mesmo homem dos quarenta. Não eram isto indícios da imortalidade? Rui adquiriu a plena
certeza de que tinha vencido a morte.
Não
aconteceu o mesmo à pobre Nanavi, que andando um dia a colher frutas no mato,
recebeu em cima da cabeça um tronco que a levou desta para melhor. Ficou a
criança, rapazote de largas esperanças, único fruto dos amores de Rui e Nanavi.
Como o
frade Norberto continuasse em missão, encontrou-o um dia o nosso neo-tamoio e
travou conversa com ele.
Sem
descobrir o segredo do pajé, disse-lhe que tinha meios de fazer uma conversão
em larga escala durante longos decorreres de anos; que para isso ajudaria com
dedicação os frades da companhia não somente com as luzes que tinha da língua
do Brasil como também pela autoridade moral que adquirira entre os índios;
finalmente que por prova de que servia sinceramente a igreja, dava a batizar o
filho de Nanavi.
— De boa
razão é vosso procedimento Sr. Rui de Leão e eu estou que a fé
colherá grande proveito com o auxílio de vossa
pessoa. Suspeitar de vossa sinceridade fora além de injustiça, erro grosseiro,
porquanto entrais no corpo da Igreja passando a porta preciosa e precedendo ao
inocente filho que nos dais para batizar
e iniciar na fé. Onde está a mãe?
colherá grande proveito com o auxílio de vossa
pessoa. Suspeitar de vossa sinceridade fora além de injustiça, erro grosseiro,
porquanto entrais no corpo da Igreja passando a porta preciosa e precedendo ao
inocente filho que nos dais para batizar
e iniciar na fé. Onde está a mãe?
— A mãe
morreu.
— Culpa
vossa, Sr. Rui de Leão; perdeu-se uma alma pela obstinação com que V. M. se
houve...
— Estou
arrependido, padre Norberto, disse Rui ajoelhando aos pés do frade.
Foi
batizado o pequeno e iniciado nos preceitos da fé cristã, ao passo que o pai incumbido
de arrebanhar a gentilidade, saiu pelo sertão acompanhado pelo frade Norberto e
outro.
Longo
tempo andou nessa missão. Colheu a Igreja preciosos frutos dela e quando voltaram
todos três para asilo dos frades houve grande e preciosa festa em honra de
todos e principalmente de Rui. Os frades asseveraram à porfia que a piedade do
fidalgo fora exemplar e os seus esforços incessantes.
Notaram
todos, porém, que se os frades voltaram alquebrados pelas fadigas e perigos,
Rui estava tão sadio e robusto como fora. Maior admiração houve quando o
fidalgo confessou ter mais de sessenta anos.
— Não
admira, respondeu o fidalgo rindo; eu adquiri o privilégio desta gente que vive
geralmente até os cem anos.
Ficou o
nosso Rui no convento acompanhando os frades. Uma noite veio do sertão uma
horda de índios, e atacou o asilo monástico com desusado vigor. A defesa foi
quase toda nula contra os ferozes índios. Após uma luta porfiada, Rui conseguiu
fazer ouvir a sua voz e acalmar os ânimos. Os índios foram embora deixando dois
cadáveres dos seus. Dos frades tinham morrido dois às envenenadas flechas do
inimigo. A todos admirou, porém, que Rui recebesse uma flecha nas costas, que a
arrancasse, e não morresse como acontecera aos outros.
— Que
mistério é esse irmão? perguntou-lhe um frade.
— Nenhum,
respondeu Rui; provavelmente a flecha não vinha ervada.
Correram
os anos; os frades estavam substituídos à proporção que iam morrendo; e assim
se chegou aos anos de 1730, sem que Rui perdesse sequer um dos traços de sua
vigorosa pessoa.
Toda a
gente ficava pasmada diante de semelhante prodígio. Prodígio havia de certo porque de cem anos por cima é
impossível não ter já todos os sinais da velhice; porém não... nunca Rui deixou
de ter a mesma cara.
Foi em
1730 que um oficial régio tendo sabido da maravilhosa mocidade de Rui, ofereceu-se para levá-lo à corte de Lisboa a
fim de apresentá-lo ao rei que era então D. João V. Partiram.
CAPÍTULO III
É incrível
que nenhuma história publicada daquele tempo mencione a chegada deste
prodigioso sujeito à corte de Lisboa e dos casos que aí houve.
Rui não
foi apresentado ao rei, não se sabe bem por que razão; mas andou por
toda a parte; figurou nos solares da fidalguia
como nas casas dos mesteirais; espantou damas, condes e burgueses; falou de
coisas acontecidas um século antes; causou em suma o mesmo assombro que o
célebre conde de S. Germano em Paris, ainda que este misterioso personagem não
possuísse o dom da imortalidade achado pelo pajé.
toda a parte; figurou nos solares da fidalguia
como nas casas dos mesteirais; espantou damas, condes e burgueses; falou de
coisas acontecidas um século antes; causou em suma o mesmo assombro que o
célebre conde de S. Germano em Paris, ainda que este misterioso personagem não
possuísse o dom da imortalidade achado pelo pajé.
Sabido é
que às mulheres agrada o misterioso e o raro. Uma D. Beatriz, formosíssima fidalga daquele tempo, veio a
enamorar-se do nosso Rui que também se enamorou dela. Como a moça estivesse
para casar com D. Álvaro, marquês de
P... saiu este paladino a campo e desafiou Rui por um combate singular.
Não era
homem de recusar duelo o nosso Rui; aceitou o reto do fidalgo, que o não era
mais que ele, e bateram-se à espada nas imediações de Lisboa.
Infelizmente
o uso da flecha desabituara o viúvo de Nanavi ao uso da espada. O marquês era
esperto jogador desta arma. O combate era desigual. Todavia, não aceitou Rui o
conselho dos que lhe diziam que fizesse um estudo prévio.
Durou o
duelo uns vinte minutos de angústia para os padrinhos de Rui; ao cabo desse
tempo, D. Álvaro varou o nosso homem de meio a meio. Correram todos ao ferido
que imediatamente caiu no chão lavado em sangue.
— Está
morto! exclamaram todos.
— Ainda
não, disse Rui; não estou morto.
E com a
própria mão estancou o sangue, enquanto um físico, adrede convidado, lhe administrou os primeiros socorros.
— Morre
daqui a duas horas, disse tristemente o cirurgião aos padrinhos de Rui.
Duas horas
depois, Rui aparecia nas ruas de Lisboa, com grande espanto do povo que ouvira
falar no duelo e nos resultados dele.
— Sabem
que mais? dizia o cirurgião, aquele homem é o diabo.
Naqueles
tempos de fé uma descoberta desta ordem equivalia ao exílio perpétuo do homem.
Rui viu fecharem-se-lhe as portas dos palácios, as hospedarias, as casas todas
enfim; e compreendeu que estava abandonado.
Ajuntou
algum dinheiro que tinha, guardou na algibeira um frasco contendo o resto do
elixir de imortalidade, e partiu para Espanha.
Ali deixou
de dizer quem era, nem a idade que tinha; viveu desconhecido. Mas não deixou de
lhe ser proveitoso e incógnito. Jogou a sorte nas casas em que isso se fazia e
ganhou somas fabulosas.
— Que
farei agora? perguntava Rui a si mesmo.
Partiu
para a Alemanha e dispôs-se a estudar. Com o dinheiro que tinha ganho nas
tavolagens de Castela, pôde o nosso célebre Rui de Leão ocorrer às despesas do
estudo.
Ao cabo de
longos anos, era ele doutor em teologia, filosofia, matemática, direito, medicina,
profundo antiquário, extremado nas ciências físicas e químicas; em suma o
doutor dos doutores, a expressão mais alta da ciência humana. Aprendeu o latim,
o grego, o árabe, o armênio, o turco, o hebraico. Traduziu para várias línguas
as obras de Santo Agostinho e S. Tomás; fundou uma academia arqueológica e um liceu de filosofia; comentou
os atos dos apóstolos, escreveu
uma história dos mártires, fez descobertas
arqueológicas em Roma, anunciou dois cometas e espantou toda a Europa
científica não menos pela profundidade e variedade dos seus conhecimentos, como
pelo prodigioso número de acontecimentos antigos a que presenciara.
uma história dos mártires, fez descobertas
arqueológicas em Roma, anunciou dois cometas e espantou toda a Europa
científica não menos pela profundidade e variedade dos seus conhecimentos, como
pelo prodigioso número de acontecimentos antigos a que presenciara.
Graças à
riqueza que facilmente adquiriu, casou o nosso homem com uma fidalga de Espanha
cinco vezes marquesa e rica de mais a mais. Durou pouco o casamento; a mulher
faleceu dois anos depois, e foi essa a maior dor de sua vida, posto que a morta
lhe deixara uma grande riqueza nas mãos.
De novo se
entregou aos estudos da ciência, com redobrado ardor. Mas apesar da admiração que o mundo científico lhe votara,
apesar da espécie de infalibilidade que adquirira perante as sociedades e
academias, o nosso Rui entrou a sofrer de um incurável aborrecimento. Tinha quase dois
séculos e a vida já lhe pesava; o mundo não lhe oferecia espetáculo novo; a
ciência perdera o prestígio do princípio:
o imortal começou a desejar a morte.
Mas era
tarde.
Como acharia
ele a morte?
Rui
recorreu ao suicídio; sabia que era um crime perante Deus e os homens; mas não
tinha outro recurso. Achava-se então em Lisboa, mas como já muitos dos que o
conheceram antes tinham morrido, ninguém viu nele o mesmo Rui de Leão e ele
teve o cuidado de trazer nome suposto.
Ali
resolveu acabar os seus dias. Foi ao Tejo e atirou-se à água; em ocasião em que
não podia ser socorrido. Sabia nadar, mas não quis usar do que sabia. Debalde!
o corpo voltou à tona e desceu até esbarrar num galeão, de onde foi visto e
pescado.
De outra
vez recorreu à faca mas o mais que conseguiu foi abrir no pescoço uma ferida
que se curou rapidamente.
Era
impossível morrer.
Imagine
quem puder o suplício deste homem condenado a ser imortal, a ver os mesmos dias,
as mesmas comédias — este Tântalo da morte, ambicionando aquilo que os outros
receiam — pedindo ao céu como a suprema felicidade uma cova para dormir.
A situação
é de si tão patética que eu não preciso lacrimejar o estilo; basta dizer a
coisa para que ela seja compreendida.
Depois de
estudar tudo e tudo ver; depois de passear pelas várias partes do mundo, sem
encontrar novidade que lhe divertisse o ânimo; depois de ser assíduo espectador
de tudo quanto pudesse despertar a curiosidade de um homem enfadado como, por
exemplo, o homem de botas de cortiça, o boneco jogador de xadrez e outros,
determinou Rui de Leão voltar ao Brasil nos princípios deste século ali pelos
anos de mil oitocentos e tantos, estando ainda cá o rei.
Efetivamente
aqui aportou no Rio de Janeiro o imortal Rui. A cidade não oferecia então o
aspecto que hoje tem. A rua do Ouvidor não era a via elegante da capital; nem o
Rocio estava transformado no jardim que aí vemos. Eram os belos tempos de Vidigal e seus granadeiros, de cujas
proezas tão habilmente falou o nosso chorado Dr. Manuel de Almeida, talento
como poucos.
Rui tratou
de encobrir-se o mais que pôde; entrou como verdadeiro desconhecido. Contudo a
presença de um homem tão sábio e tão rico, não era
coisa que passasse despercebida ao povo nem à
corte. Não tardou que fosse convidado
para as melhores casas e os vários fidalgos de respeito do rei porfiaram em recebê-lo à sua sala. Era
parceiro obrigado no whist dos
velhos fidalgos, grande par do minueto, excelente cavaleiro do garfo, em suma a
flor da boa roda.
coisa que passasse despercebida ao povo nem à
corte. Não tardou que fosse convidado
para as melhores casas e os vários fidalgos de respeito do rei porfiaram em recebê-lo à sua sala. Era
parceiro obrigado no whist dos
velhos fidalgos, grande par do minueto, excelente cavaleiro do garfo, em suma a
flor da boa roda.
Mas esse
recreio durou pouco. No fim de dois meses voltou Rui de Leão às suas mágoas
antigas.
Foi então
que lhe aconteceu um caso decisivo na sua vida.
Entre as
damas que mais apreciavam o saber e os dotes do ilustre Rui, havia uma D.
Madalena de Sousa e Pedroiça, criatura tão notável pela graça do semblante,
quanto pelas virtudes fidalgas da vida. Rui ficara sempre com um grande pendor às mulheres, o que era
naturalmente um corretivo da imortalidade, porquanto ser imortal e aborrecer as
mulheres seria estar no pior de todos os infernos deste mundo e do outro.
Agradou-lhe
D. Madalena, mas esta posto que o apreciasse muito, não lhe aceitou o coração.
Coração repelido é o ideal da pertinácia. Rui multiplicou as suas armas
galantes, a ver se colhia a esquiva dama, e esta sempre isenta, dava de tábua
às seduções do namorado.
Durou esta
luta cerca de dois anos.
Uma noite,
vindo recolher-se para casa o nosso Rui, surdiu-lhe em frente um sujeito e lhe
disse:
— Quer
saber por que razão D. Madalena lhe recusa a mão?
— Quero.
— Ama a
outro.
—
Impossível.
— É
verdade!
O sujeito
tinha a cara meio coberta com uma das abas do capote. Descobriu-se então e Rui
pedindo a lanterna ao criado que tinha com ele, pôde reconhecer a um parente de
Madalena.
Passava-se
esta cena nos Cajueiros e o nosso Rui morava perto do Valongo: convidou o
parente da moça para acompanhá-lo à casa.
Quando lá
chegaram, tomou palavra o parente da moça, D. Martim, e disse:
— D.
Madalena ama o licenciado Álvares e quer casar com ele; o pai opõe-se ao casamento e já a ameaçou com o convento. É
essa a razão por que não aceita o seu amor.
— Mas,
disse Rui, eu não sei que diabo achou ela no licenciado...
— Nem eu,
mas a verdade é esta.
Rui
refletiu na dificuldade de sua posição.
— Deste
modo, disse ele, perco o meu tempo...
— Como eu
perdi, replicou D. Martim: também eu a amei, mas nada pude
conseguir. O licenciado transtornou-lhe a
cabeça. Que lhe havemos de fazer?
conseguir. O licenciado transtornou-lhe a
cabeça. Que lhe havemos de fazer?
— Dar uma
lição ao licenciado.
D. Martim
piscou o olho, via-se-lhe no rosto que ele não vinha para outra coisa.
— Como lhe
daremos a lição?
— Como?
— É
verdade que ele costuma a falar com a prima às escondidas...
— A horas
mortas?
— Sim.
Chega ao portão e ela fala de cima da janela que dá para o jardim.
— Basta.
— Qual é o
seu plano? perguntou D. Martim arranjando o capote.
—
Esganá-lo.
— Mas isso
é perigoso; o intendente da polícia não é de graças.
— Qual
intendente! exclamou Rui; pois eu cá vou consultar intendente para esganar um patife?
Saiu D.
Martim exultando de contente, e Rui deitou-se meditando na vingança que devia
tomar do rival.
Na
subseqüente noite não apareceu Rui de Leão em casa da família de D. Madalena, e
foi esperar o licenciado no sítio indicado por D. Martim. A noite era escura: e
ameaçava temporal. Rui saíra de casa sem criado nem lampião. Armou-se com uma
faca, encostou-se à parede e esperou que batesse a hora da vingança.
Ao cabo de
longo tempo, que é sempre longo para quem espera, Rui de Leão ouviu passos ao
longe na direção do ponto em que se achava. Ao mesmo tempo abriu-se a janela de
Madalena e o vulto da moça apareceu como Julieta quando esperava Romeu e a
escada.
Era a hora
suprema.
Coseu-se o
doutor dos doutores com a parede e esperou o feliz rival que se aproximava
cautelosamente. Mal o pobre namorado soltava as primeiras palavras, saltou-lhe
acima o fidalgo e enterrou-lhe no estômago uma comprida faca. O licenciado
apenas deu um gemido e tentou murmurar o nome de Madalena. Caiu. Rui afastou-se
rapidamente do teatro do crime.
No dia
seguinte de manhã apareceu a polícia, levantou o cadáver, fez-lhe os exames
precisos, e começou as indagações para ver de onde partia o crime.
A primeira
suspeita recaiu sobre o pai de Madalena cuja oposição ao licenciado era
conhecida; mas o pai, vendo contra si a espada da lei, declarou que talvez fosse
antes o crime praticado por um indivíduo que igualmente pretendia Madalena,
homem de boa presença, formado em várias matérias e conhecido em toda a cidade.
Houve da
parte do intendente tão virtuosa repulsa ao ouvir tão negra suspeita, que o
nosso Rui se lha visse, devia votar-lhe eterna gratidão.

Todavia,
como a justiça não podia deixar de averiguar tudo, mandou-se chamar Rui de
Leão, que apenas chegou negou o crime. Entretanto deu-se-lhe busca em casa, e
achou-se-lhe a faca ensangüentada, que por um incrível descuido Rui esquecera
de lavar ou deitar fora. Interrogada a criadagem, confessou que o amo saíra de
casa à noite, sem escudeiro, embuçado num capote e escondendo alguma coisa.
Todos os
indícios eram contra o assassino.
A justiça
d’el-rei tomou conta do réu; abriu-se processo em regra e ao cabo de algum
tempo foi condenado Rui de Leão a morrer de morte natural na forca.
Madalena,
que até então estimara a prisão e o processo do réu, teve pena dele quando
soube que ia morrer enforcado.
Não
deixara de lembrar-se que a causa daquele crime era ela. Rui aparecia aos olhos da moça com um aspecto tão interessante
que ela lhe daria a mão de esposa se tanto
fosse preciso para livrá-lo da forca.
Pobre
licenciado! ...
Marcado o
dia para execução, levantou-se no largo de Moura a forca, e o cortejo saiu da
cadeia com o juiz, o padre, o carrasco e o pregoeiro. Troava a campa à frente, lia o pregoeiro a sentença da relação
em cada esquina, e lá ia o nosso Rui recebendo do sacerdote as consolações que
o carrasco lhe não podia dar.
Grande
número de povo enchia o largo da execução, mas quem pensa o leitor que estava
entre os espectadores? D. Martim mais pálido que a morte, vítima do remorso e
da curiosidade, causa indireta do crime e da desgraça. Queria ele ouvir as
últimas palavras do condenado, de que receava alguma revelação relativa à sua
pessoa.
Subiu Rui
as escadas da forca, colocou-se em posição conveniente, abriu a boca para fazer
um discurso, mas os tambores cobriram a voz do orador.
Imediatamente
entrou o carrasco nas honrosas funções que a lei lhe conferia em nome do evangelho, e o corpo de Rui de Leão
ficou pendente da forca.
A pouco e
pouco foi saindo o povo aterrado com o espetáculo; e em todas as boticas e
casas de barbeiro da cidade foi comentado o crime do defunto.
Quando
veio a noite foi o carrasco tirar da forca o cadáver do réu acompanhado do
respectivo ajudante. Cortou a corda e o corpo foi à terra.
— Ai!
disse Rui, — atordoado com a queda.
— Que foi?
perguntou o carrasco ajudante.
— Não sei;
foi um gemido de cão.
Aproximaram-se
do corpo; mas qual não foi o seu espanto? Rui desatava tranqüilamente o laço da
corda e dizia:
— Levem-me
a uma hospedaria que tenho fome.
O carrasco
e o ajudante não ouviram mais do que a palavra, — levem-me; viram o gesto de Rui e deitaram a correr. Toda a
cidade ficou em alarma. Só falava do enforcado que ressuscitara.

— Estava
inocente! gritavam uns.
— É um
santo! diziam outros.
Entretanto
o ex-enforcado procurou tranqüilamente coisa que comesse e cama em que
dormisse.
CAPÍTULO IV
O
desenleio maravilhoso e misterioso deste acontecimento assustou o pai de D. Madalena. A superstição foi grande arma em
favor de Rui de Leão, que alguns dias depois ousou apresentar-se em casa da
moça e pedi-la em casamento.
A leitora
aplaude já a recusa de Madalena. Madalena aceitou.
Previamente
perdoado do crime cometido, Rui de Leão casou com Madalena, e confiou que ao
menos teria durante alguns anos uma vida feliz; até que de novo o tomasse o
tédio da vida.
Entretanto,
D. Martim descontente com o desenlace do caso, explicou a seu modo a
ressurreição do rival.
— Foi
naturalmente, dizia ele, a um oficial foi naturalmente acordo entre o réu e o
carrasco. Deu-lhe este um laço fraco, e o homem pôde ressuscitar...
— Mas se
eu vi o contrário, respondia o oficial.
— Viu
mal...
Jurou D.
Martim vingar-se de Rui. Como?
Cogitou um
meio seguro; estreitou relações com o marido de Madalena. Era para ele
grandíssima dor e profundíssimo despeito ver o rival ao lado daquela a quem ele
amava apesar de tudo. Mas o ciúme suporta tudo.
Quando
julgou que as relações estivessem firmadas entre ambos e bania do ânimo de Rui
qualquer suspeita contra ele, D. Martim tratou de comprar um dos criados do
rival e a poder de patacões conseguiu que o criado se prestasse ao crime.
Costumava
Rui tomar uma xícara de chá uma hora depois do jantar. Uma tarde, achando-se
todos três na sala, achou-se Rui afrontado; tinha comido muito e a digestão era
laboriosa.
— Que
sentes mais? perguntou Madalena.
— Nada
mais. Eu já sei qual é o remédio; mande vir o chá mais cedo.
Deu ordem,
e o criado trouxe a xícara de chá. D. Martim olhou para o criado, e este
fez-lhe sinal de que o veneno estava dentro.
Quem
olhasse então para D. Martim veria a expressão de triunfo que lhe transluzia no
olho.
— Enfim,
disse ele consigo.
Rui tomou
tranqüilamente o chá, conversou pouco, estendeu-se na cadeira de couro e adormeceu.

D. Martim
ficou a sós com Madalena.
—
Madalena! disse ele.
— Que
ousadia é essa? disse a moça.
— Ousadia,
não. Ouça-me, eu ainda a amo...
— D.
Martim não me parece de cavalheiro o seu proceder.
— Por quê?
perguntou D. Martim com um sorriso infernal.
— Não vê
quem ali está?
— Ali?
— Sim.
— Ali está
um cadáver.
— Um
cadáver? perguntou a moça ficando pálida.
— Quase.
Daqui a dez minutos é um cadáver.
—
Explique-se, D. Martim, por quem é!
— Ah!
pensa que eu não teria a minha vingança?
D. Martim
estava fora de si; ajoelhou-se aos pés de Madalena; esta fugiu para o interior.
No
entanto, acordou Rui, bocejou, levantou-se e deu com os olhos em D. Martim, que
estava no fundo da sala mais branco que uma toalha.
— Que tem
você? D. Martim...
— Eu
nada... disse D. Martim sem tirar os olhos do rival.
— Pois,
senhor, continuou este, o chá precipitou a digestão, sinto-me melhor. Onde está Madalena?
A moça
ouvira a voz do marido e correu à sala.
D. Martim
esperava a todo momento ver cair fulminado o nosso fidalgo e já se arrependera
das palavras que dissera nesse sentido a Madalena.
Esta
perguntou ao marido como se achava; e ele respondeu que muito melhor.
— Proponho
que joguemos alguma coisa para passar a noite que promete ser fria. O primo
fica,... não?
— Eu...
não... mas...
— Fica de
certo.
Jogaram
até tarde; tomaram chá; e Rui não morreu como o outro esperava.
Foi
naturalmente o patife do criado, pensou D. Martim.

Mas o
criado estava igualmente espantado. Olhava para D. Martim, e não sabia explicar
aquele mistério.
Quando D.
Martim de lá saiu, foi acompanhado pelo cúmplice que lhe jurou ter posto no chá
a dose de veneno convencionada.
— Mas
então que foi aquilo?
— Eu sei
lá, senhor... Creio que um tiro...
— E
prometes ajudar-me na empresa?...
— Prometo.
— Bem;
iremos ao tiro.
Prepararam
emboscada ao invencível Rui de Leão; deu-se o caso na Rua do Piolho, em noite
de tormenta, estando a rua mais deserta que um Saara. O criado armou-se com o
arcabuz do crime; e desfechou o tiro na cara de Rui. A vítima soltou um espirro
e continuou tranqüilamente a viagem.
O criado
desmaiou.
Rui
compreendia que D. Martim lhe preparava golpes sobre golpes; mas confiado no elixir do pajé, mostrava-se indiferente às
emboscadas e ao veneno do rival.
A única
questão seria a infidelidade da mulher.
Mas esta
era um modelo de amor e constância. Amava-o com ardor apesar de ir já longe a
lua de mel.
Por isso
mesmo durou pouco a felicidade.
Madalena
faleceu de uma pneumonia aguda.
— Quê! exclamou
o pobre imortal; pois eu hei de ver morrer todos aqueles a quem amo e hei de
arrastar este castigo de vida?
Enterrou-se
a mulher de Rui com a pompa digna da riqueza do marido. Aborrecido por estar no lugar onde lhe morrera
a esposa, Rui determinou partir para a Europa e assim o fez em 1825 depois de
declarar a sua intenção de ficar brasileiro.
D. Martim
foi para Angola, onde morreu de desgostos.
Correram
os anos.
Em 1835
aportou outra vez ao Rio de Janeiro o invencível Rui de Leão, disposto a não
viajar mais e a esperar aqui o dia do juízo final. Achou o espírito público agitado
com a política. Não havia loja em que se não conversava da coisa pública; e os
nomes tais e tais eram citados como modelos do estadista, conforme pertenciam a esta ou aquela cor
política.
É difícil
estar entre políticos muito tempo sem adquirir a febre que os devora. Além
disso, Rui de Leão não tinha ensaiado esse gênero de distração. Nem a ciência,
nem o amor, nem o jogo, lhe apresentavam pasto suficiente ao seu espírito
sedento de ocupação.
Para se
calcular bem a situação do nosso herói basta ter em lembrança o tédio de um dia
em que não temos nada que fazer. Multipliquemos esse dia pela
eternidade e aí teremos a tortura moral deste
verídico sujeito escolhido pelo destino
para ser o exemplo único de uma aborrecida imortalidade.
eternidade e aí teremos a tortura moral deste
verídico sujeito escolhido pelo destino
para ser o exemplo único de uma aborrecida imortalidade.
A política
correspondeu aos desejos de Rui de Leão.
Desde que
entrou em comunicação com os chefes de um dos partidos, viu logo que aquilo era
turbilhão para uns trinta ou quarenta anos.
— Ao
menos, disse ele consigo, passarei este tempo mais satisfeito até que descubra
outro meio que me substitua a política.
Fundou
logo uma gazeta denominada A
Alvorada cujo programa era vago como a hora
que o título fazia lembrar. Um dos períodos mais práticos era este:
Reunir
todos os elementos de prosperidade em favor da liberdade, consubstanciar a
ordem nas aspirações do país, transformar o torpor em atividade, eis o programa
da imprensa independente e é o meu.
Os
leitores gostaram deste programa; mas o jornal adverso, que se denominara O Grito da Nação atacou os
princípios da Alvorada com esta simples pergunta:
Onde é que
o colega viu que a liberdade prática, única, resoluta, firme, invencível pode,
abraçando elementos contrários, ostentar princípios, idéias, melhoramentos,
que, simbolizando a honra de uma época, destruam a poeira de um passado
recente?
Tal foi o
começo de uma polêmica estrondosa que ainda hoje existiria se a morte igual
para os homens e as gazetas não tivesse destruído o Grito e a Alvorada, dentro
de alguns meses.
Os
talentos de jornalista de nosso Rui de Leão foram apreciados por amigos e adversários:
efetivamente, Rui tinha a capacidade especial que se exige na imprensa
política. O Grito da Nação andou atrapalhado durante a existência da Alvorada que dias
pouco lhe sobreviveu.
O partido
de Rui esperou a primeira ocasião para apresentá-lo candidato por uma das províncias, o que aconteceu pouco tempo
antes da morte da gazeta. A candidatura foi aceita pelos caudilhos da localidade.
A Alvorada mencionou o fato como a aurora de uma grande vida política, pois
o digno Rui de Leão era, nem mais nem menos, um homem de Plutarco.
— Quem é
este Rui de Leão? perguntaram uns.
— Não sei,
respondiam outros, mas parece que é um grande homem.
— Parece
que sim.
Onde quer
que se falasse de Rui, manifestavam-se logo grandes esperanças em favor dele.
Se ele
passava, era apontado como um grande político, um Pitt, um Pombal.
De maneira
que, antes de entrar no parlamento, já o nosso Rui de Leão tinha a reputação
feita. Se morresse logo, morria em cheiro de santidade.
Mas como
morreria o imortal? Foi eleito.
Os
leitores me dispensarão de dizer o que houve quando a pessoa deste ilustre doutor
penetrou no recinto da Cadeia Velha. Cumprimentado e abraçado por
amigos, olhado com desconfiança por
adversários, Rui de Leão era o homem da situação, a esfinge que daria a palavra
do futuro.
amigos, olhado com desconfiança por
adversários, Rui de Leão era o homem da situação, a esfinge que daria a palavra
do futuro.
Quando
algum deputado orava não deixava de aludir delicadamente ao redator da Alvorada, como um
dos homens mais eminentes do país e da câmara.
Numerosos
apoiados acolhiam estas palavras de justiça.
Durante
uns trinta dias esteve calado o novo representante da nação, com grave desgosto
dos seus amigos, que atribuíam grande poder de palavra a um homem tão insigne no
uso da pena.
Os
adversários que tinham a mesma opinião estimaram aquele silêncio e só desejavam
que continuasse do mesmo modo.
Um dia,
porém, no meio do grande barulho da assembléia, pediu a palavra o nosso Rui de
Leão. Fez-se imediatamente profundo silêncio; os deputados correram a fazer
grupo à volta do orador; o povo das galerias debruçou-se mais para não perder
nada, e o próprio presidente, pondo a mão em forma de concha na orelha,
preparou-se para ouvir a estréia parlamentar do redator da Alvorada.
Modesto e
moderado em suas aspirações, Rui de Leão começou assim o seu discurso:
Sr.
presidente. Das pessoas que o país mandou representá-lo, eu sou, sem dúvida, o
mais humilde e o menos competente (Não apoiados). Vejo, Sr. presidente, que me rodeiam as capacidades do
país não só entre os meus amigos como entre os meus adversários (Muito bem!)
porque eu, senhores, quando contemplo os
talentos, apreço as opiniões (Sensação). Nada valho, senhores...
Muitas
vozes: Não apoiado!
O Sr. X. —
Vale muito...
O orador:
— Nada valho, mas sinto em mim que posso ajudar o edifício da grandeza
nacional, não como o arquiteto que traça o plano, mas como o servente que carrega a pedra (Aplausos).
Para
construir esse edifício, senhores, que tem feito o governo? Onde estão os seus
planos? Que materiais possui? Com que operários conta? Não aparece nada disto.
Agarrados às pastas, os nobres ministros só apreciam o poder pelos prazeres que
ele dá, prazeres frívolos e indignos de cidadãos de um grande país, em vez de
se consagrarem todos, e a todas as horas, e com todas as forças, ao desenvolvimento
da herança que receberam, senhores, e que deverão passar aos nossos filhos!
Aqui houve
uma tal explosão de protestos e aplausos, que o orador foi obrigado a calar-se
algum tempo, e o presidente a agitar a campainha, verdadeira inutilidade no
parlamento, porque, quando todos gritam, a campainha tem pouca força moral para
acalmar a tempestade.
Serenada
aquela, depois de trocados alguns ditos mais ou menos enérgicos, continuou o nosso orador, e daí em diante não
houve cena igual, porque a eloqüência de Rui de Leão arrebatava amigos e
adversários, e todos estavam pendentes dos lábios do novo Demóstenes.
Não
resisto à tentação de transcrever das memórias secretas (porque os anais não
trazem os discursos de Rui), a peroração do famoso discurso.
Ei-la:

Tenho
vivido muito, senhores, e conheço profundamente os homens e as coisas. A
ciência dos Estados não é uma vã palavra; estudei-as nas obras dos homens públicos e no
estudo pessoal dos acontecimentos. Aquele grande e imortal Catão é para mim o
tipo da probidade política, o modelo dos partidários, a consolação das
causas
vencidas, a lição dos povos, o espantalho dos déspotas, o espelho dos cidadãos
(bravo!), a glória da humanidade, o emblema do passado que desmoronou, a
esperança do futuro que se levanta! (Aplausos.)
Dir-me-eis,
talvez, senhores, que eu devia imitar aquele grande homem recorrendo à morte? (Não! não!) Não o
faço, não, não poderia fazê-lo! De mais a causa da verdade estará assim
perdida? Eu vejo sentados nas cadeiras
ministeriais homens que traem os seus deveres e são capazes de vender a
consciência por um prato de lentilhas (Sussurros!); mas, senhores, não nos
iludamos; por ser Catão, é preciso resistir ao despotismo de César, e onde está
César? Alguém conhece entre os seus adversários um César? (Ouçam! ouçam!)
Descansemos,
pois; não recorramos a um exemplo que seria funesto, porque a causa da verdade
está salva, desde que houver entre nós e a oposição, a força e a união
necessárias para vencer estes carregadores de pastas! (Aplausos).
Senhores,
vou concluir. Os hebreus atravessaram o deserto guiados por uma coluna de fogo.
Somos os hebreus da política; a coluna de fogo é a verdade; ali nas cadeiras
ministeriais está a terra de promissão. Emboquemos as trombetas da franqueza, avancemos
com as tropas da vontade, empunhemos a espada da decisão, e aqueles cairão;
aqueles homens serão cadáveres políticos porque, senhores, pouco dista de um
moribundo a um cadáver.
Esta monumental
peroração, que os professores deviam dar aos seus alunos de retórica, causou imensa impressão na Câmara.
Os
ministros quiseram responder; mas era impossível. Só havia atenção para o vulto
impudente do nosso Rui que, sendo cumprimentado por grande número de senhores
deputados, recebeu no dia seguinte convite para um jantar que lhe deu a Câmara, sem distinção de partidos.
— Que
discurso! dizia um.
— Um
monumento!
— É
Mirabeau!
— É
Cícero!
— Nunca
ouvimos tal...
— É o
Demóstenes moderno.
— Está
fundada a eloqüência brasileira.
Tais eram
as conversações do povo e da Câmara acerca do discurso de Rui de Leão.
Ainda no
jantar que lhe deram, o ilustre orador teve ocasião de assombrar a todos com um soberbíssimo speech, no qual,
aludindo à circunstância de estarem ali amigos e adversários, proferiu esta
frase tão imortal como o autor:

“Estou
aqui como os mortos no cemitério: a terra e o jantar nivelam as condições e as
opiniões: o estômago é eclético.”
Seria
longo enumerar os prodígios de eloqüência do nosso Rui e dizer que serviços
importantes prestou ele à causa do partido. Bastará mencionar que dentro de
pouco foi ele constituído chefe do partido e aclamado o primeiro homem do
parlamento.
Mas cedo
se aborreceu da posição e da vida política.
Tendo
concluído a legislatura, o nosso homem declarou que se retirava à vida privada.
Gastaram-se
muitas ferraduras e pedras das ruas em visitas à casa de Rui, a fim de ver se
alcançaria que ele desistisse do intento.
Impossível.
Rui
persistiu na intenção de deixar a vida pública.
— Mas
nós!...
— Não
desisto do meu plano.
— Por quem
é...
—
Impossível.
Retirou-se
para o norte, e lá se escondeu arrastando uma vida que lhe era odiosa.
Um belo
dia cai a notícia de que rompera a guerra com o ditador López.
Rui
alistou-se como capitão de voluntários e partiu para o sul. Fez proezas incríveis,
colocou-se à frente das balas, queria a morte a todo custo.
Impossível.
A morte
respeitava-o.
Um dia,
saindo fora do acampamento, encontrou um oficial paraguaio.
— Senhor,
disse ele, sou inimigo: mate-me.
O
paraguaio disparou-lhe um tiro, que lhe não fez mal nenhum. Acudiu a companhia
de Rui e o trouxe para o acampamento.
Desesperado,
voltou o homem à corte e aqui ficou, até que se deu o acontecimento que vou
resumir e com o qual se conclui a história.
Travou Rui
conhecimento com um médico homeopata, Álvares Melo; era excelente conhecedor da
ciência e Rui gostava de conversar sobre medicina.
Um dia
conversando em casa de Bernardes disse Rui ao Doutor Álvares:
— Nunca
pude compreender o princípio homeopático.
— Por quê?
— Acho ele
contraditório.
— Não é,
disse Álvares; os maiores luminares da alopatia escreveram máximas que apóiam o princípio homeopático.
— Acho
isso um sofisma.
— Não é, e
vai ver.
Álvares
entrou a explicar detidamente o sistema homeopático ao amigo; acumulou
exemplos; raciocinou com calma e ciência, pois era homem que sabia o que dizia.
Rui ficou
um tanto abalado.
Foi para
casa e estudou o sistema homeopático com o afinco que lhe era peculiar, sempre
que queria saber profundamente uma coisa.
Dentro de
pouco estava convencido.
Mas então
que disse ele?
— Tupã! és
tudo; mas erraste. Fizeste-me imortal; mas deste ao mundo a homeopatia.
Venço-te com as tuas armas. Similia similibus curantur; estás vencido.
Bebeu o
resto do elixir do pajé. No dia seguinte morreu.
Assim
acabou este grande homem, após quase três séculos de existência, tendo colhido
louros na guerra, na ciência e no parlamento; feliz no jogo e nos amores; mimoso
da fortuna; homem, enfim, que provou praticamente que a morte, longe de ser um
mal, é um corretivo necessário aos aborrecimentos da vida.
Imitemo-lo
nas façanhas e no amor ao estudo; não no desejo de ser imortal; e convencemo-nos
de que o melhor elixir de imortalidade não vale os sete palmos de terra de
Caju.
---
Nota:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, de 1/1872 a
3/1872. Disponível
digitalmente no site: Domínio Público
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