
QUEM QUER SER LOBO...
CAPÍTULO PRIMEIRO
A CARTEIRA PERDIDA
Na última
noite de carnaval do ano de 1863, houve em um dos hotéis desta boa cidade do Rio de Janeiro uma lauta
ceia que durou até ao raiar do dia. Os
convivas saíram a pouco e pouco, e foram uns a pé, outros de carro, a caminho
do respectivo domicílio.
O último
que saiu do hotel era um rapaz magro, alto, franzino na aparência, mas dotado de grande vigor de
pulso, como alguns durante a noite e o
baile tiveram ocasião de experimentar. Saiu um tanto trôpego, já pelo cansaço,
já pelo vinho, e aos olhos não espantados das quitandeiras que passavam para o
mercado, dos varredores das ruas e dos entregadores de jornais, foi tomando a direção
da casa, que era no fim da Rua da Ajuda.
Justamente
no ponto em que se cruzam as ruas da Ajuda, Ourives, S. José e Parto, o nosso tardio conviva deu com o
pé num objeto; abaixou-se para ver o que era; era uma carteira. Olhou em volta
de si; as ruas estavam desertas; nas
lojas abertas, ninguém havia que o pudesse ver. Meteu a carteira no bolso e
seguiu para casa.
O moleque
já o esperava acordado, depois de ter dormido em santa paz a noite anterior. O
moço subiu as escadas lentamente, despiu-se, e antes de se entregar às delícias
do sono, examinou a carteira e o conteúdo.
A carteira
era de couro da Rússia e fechada por uma fita de borracha. Abriu-a sofregamente e inventariou os objetos
que continha:
Dois
recibos de cabeleireiro.
Um de
alfaiate.
Duas
contas sem recibo.
Uma flor
seca.
Dois
cartões da barca Ferry.
Uma letra
por encher.
Três
advertências amargas de credores.
Três notas
de dois mil-réis.
Uma carta
de namoro.
Aparentemente
eram outras tantas indicações para saber quem era o dono do achado, que não
valia a pena guardar.
Engano.
As contas
estavam rasgadas justamente no lugar onde devera estar o nome, e as cartas dos
credores e de namoro não tinham sobrescrito.
— Leve o
diabo a dono disto! exclamou o rapaz, que me fez construir tantos castelos no ar... Devia tê-lo
adivinhado. O destino não me faz senão destas. José!
Veio o
moleque.
—
Acorda-me amanhã às 11 horas; preciso sair.
Dada esta
ordem, meteu-se o rapaz nos lençóis, e o leitor pode fazer o mesmo se me está lendo de noite. Ao capítulo
seguinte, saberá quem era o rapaz e o que saiu da carteira.
CAPÍTULO II
Z. Y.
Coelho era
o nome do mancebo que festejara tão lautamente o carnaval na última noite, que
saíra por último do hotel, que encontrara
a carteira na Rua de S. José e ficara logrado nas suas esperanças.
Tinha
vinte e seis anos e exercia o emprego que lhe dava para comer, vestir, e gozar
a vida, desde que não quisesse ir além dos limites razoáveis que a posição lhe impunha.
Nesse
ponto, é que pegava o carro.
Coelho
tinha mais ambições que dinheiro, e não há pior situação que a de um homem cujo
espírito está acima das algibeiras. Ter a algibeira acima do espírito, dizem os poetas
que não é coisa de todo desejável: estou que falam teoricamente.
Em todas
as loterias, comprava um meio bilhete que lhe saía invariavelmente branco. Um dia, conseguiu
tirar quarenta mil-réis, fato que coincidiu com a queda do ministério de Caxias
e a morte de um parente chegado. Gastou
os vinte mil-réis recebidos no aluguel do carro, na compra de luvas para ir ao
enterro, e deu o resto a um pobre.
Casamento
rico era uma das suas ambições, mas em vão alongava os olhos pela cidade; não aparecia noiva que lhe
ficasse à mão.
Coelho
desistiu do intento.
Ultimamente,
parecia resignado à sorte. Começou a viver solitário, e desse programa só o
carnaval o arrancou por três dias. Foi muito festejado pelos amigos e respectivas damas e
fez coisas do arco-da-velha. Mas aquela exceção acabou com o último dia: na
quarta-feira de Cinzas, reatou o fio à regra.
O achado
da carteira pareceu-lhe providencial, e desde o lugar onde se deparara o misterioso objeto, até o fim da
Rua da Ajuda, foi fazendo mil castelos no ar.
Já sabemos
como se lhe dissiparam todos. Ao dia seguinte, tão pobre estava como na
véspera.
Só uma
grande e excepcional dedicação aos negócios públicos poderia fazer que um rapaz
fosse à repartição depois de uma terça-feira de carnaval. Coelho levantou-se da cama, à hora
em que o criado foi cumprir a ordem de o
acordar.
Almoçou
pouco e tratou de vestir-se para sair. Antes disso, olhou de relance a carteira
que estava sobre a secretária.
— José! disse
ele.
— Senhor.
— Hás de
levar um anúncio ao Jornal
do Comércio.
E olhando
a carteira:
— Se tu
soubesses, miserável objeto, as ilusões que me deste ontem! E com as ilusões os
terríveis desenganos que sofri... Por que não trouxeste em teu bojo uns vinte
contos pelo menos? — Era pouco, mas era alguma coisa...
Dizendo
isto, foi maquinalmente abrindo a carteira. Inventariou de novo os papéis que
havia dentro; abriu de novo todos os escaninhos; nada! Ia já deitá-la a um canto com um gesto
de desespero, quando, entre duas notas de dois mil-réis, descobriu um papelinho
dobrado.
— Que é
isto? dizia ele.
O papel
era fino, azulado e perfumado. Cheirava a amores. Coelho desdobrou-o rapidamente com a ansiedade
própria de quem fareja mistérios. A
letra era bem talhada e segura; poucas linhas eram, e diziam assim:
“18 de
Fevereiro.
“Meu C...
Meu tio
vai amanhã para a Tijuca, e minha tia há de ter visitas. Vem amanhã ao jardim;
estarei na janela do
fundo, e
contar-te-ei o que se passou. — Tua L...”
Eu faltaria
à verdade e às regras mais elementares do romance se não dissesse que o rapaz
leu e releu esta carta muitas vezes. Não faltaria tanto às regras do romance, mas
faltaria com certeza à verdade, se não contasse que à sexta ou sétima leitura o
nosso herói deu dois pulos no gabinete, pregou os olhos no teto e chegou a
carta aos lábios.
A causa
dessa alegria, na aparência inverossímil, sabê-la-á o leitor desde que eu lhe disser que o papel da carta
era marcado, e que a marca constava de
duas iniciais, Z. Y., que estas duas iniciais eram as de Zózimo Ypsilanti, e
que este nome arrevesado era de um grego que naquele tempo negociava nesta
praça.
— É dele,
não há dúvida, dizia o rapaz consigo; creio que em nenhuma outra língua há quem se chame Z. Y.
Não; Z. Y. tem um perfume helênico. Trata-se da sobrinha de Ypsilanti; é
preciso tirar daqui as vantagens possíveis. Exploremos o assunto.
Toda esta
cena se passara em frente do moleque, que, desde que viu o senhor dar pulos na
sala, concluiu logicamente que estaria nas fronteiras da demência. Conseqüentemente, deu
dois passos para a porta com idéia de fugir apenas visse da parte do Coelho
algum gesto menos pacífico, e ir logo dar parte ao inspetor do quarteirão,
medida aliás inteiramente inútil, porque
o inspetor só estava em casa das Ave-Marias em diante.
— José, disse Coelho, não é preciso ir levar o anúncio ao Jornal do Comércio. Viste-me
dar dois pulos há pouco?
— Vi, sim,
senhor.
— Foi de
alegria, José; recebi uma carta de meu irmão que está na Bahia. Fizemos as pazes, e é por isso que
estou alegre. Recomendo-te, porém, não digas isto a ninguém; toma estes seis
mil-réis.
E deu-lhe
as três notas que achara na carteira.
— Sim,
senhor, obrigado.
José saiu
do gabinete mais tranqüilo, contente com a explicação e o dinheiro.
CAPÍTULO III
L.
Coelho não
saiu de casa antes das cinco horas. Gastou todo o tempo a investigar um meio de
tirar vantagem da misteriosa carta, e tão depressa organizava um programa, como
o achava impraticável. Se os reunisse
todos em cinco atos e sete quadros, teria produzido um excelente melodrama.
Aqui,
perguntará naturalmente o leitor se valia a pena gastar tanto tempo com uma
carta que aparentemente não dizia nada. Perdôo à ignorância do leitor esta
pergunta infundada, e passo a resumir as razões que justificam no meu herói as
longas horas de meditação a que se
entregou.
Lúcia
Soares era uma moça de vinte e dois anos, sobrinha da mulher de Zózimo Ypsilanti, e universal herdeira de
ambos. Ypsilanti passava por ter uma grande fortuna; aparentemente, tinha muito
pouco, e havia quem lhe não desse quinze contos por tudo; mas a maioria do povo dizia que Ypsilanti era senhor de
duzentos contos bem puxados. Os hábitos de avarento davam alguma
verossimilhança a este boato; vestia mal e grosseiramente; gastava pouco,
regateava muito e não dava nada a
ninguém. Se fosse pobre, se ao menos a opinião o julgasse tal, aquilo seria
refletida economia; mas, com a fama de rico de que ele gozava, a economia era
pura avareza.
Ora, se a
riqueza fazia de Lúcia uma das três Graças, a natureza tinha-a feito uma das
três Fúrias. Uma testa curtinha, uns olhos vesgos, pequenos e apagados, um
lábio superior oblíquo, umas faces grossas, tais eram os dotes negativos que
recebera do berço. A inteligência era
como os olhos, vesga, pequena e apagada. A educação, porém, fora algum tanto esmerada.
Lúcia tocava piano, sabia muitas coisas
de costura, desenhava bem e falava corretamente a língua francesa.
Deram-lhe
tais prendas os pais, que desse modo quiseram emendar a natureza, e deixar-lhe
alguma herança real. Era órfã desde a idade de 17 anos, e vivia com os tios,
que a amavam e procuravam fazê-la feliz.
Coelho já
a conhecia de algum tempo; estivera com ela numa reunião em que lhe disseram
que Lúcia seria senhora algum dia do melhor de duzentos contos de réis.
Infelizmente, estava o nosso mancebo à busca de outra herança de algarismo
igual, com a diferença que a dona em
questão era excepcionalmente bonita.
Coelho
sabia perfeitamente que a riqueza deve rimar com a beleza, e ainda não
compreendia naquele tempo o verso solto. Agora, porém, que se achava
desenganado de achar o casamento, já se contentava com uma toante e a sobrinha
do grego era justamente o que lhe convinha.
De que
maneira, porém, conseguiria ele, com o auxílio de uma carta, entrar na posse
dos bens de Ypsilanti?
A sua
primeira idéia foi menos ambiciosa. Sabendo que o tio de Lúcia era um velho
irritável e severíssimo, lembrou-se de
ir ameaçar o namorado
de Lúcia, e restituir-lhe a carta mediante recompensa. Este meio, porém, pareceu-lhe indigno, e foi posto
de lado.
Às cinco
horas, nada tinha resolvido; saiu para jantar no hotel; e teve a felicidade de não encontrar conhecido.
Enquanto comia, pensava no caso. Ao meio do jantar, trouxe-lhe o criado um
jornal para ler.
Recusou.
— Quer
alguma ilustração?
— Não
quero nada.
Dizendo
isto, arredou os jornais com a mão. Nesse momento, porém, leu o título de um
capítulo do folhetim que um dos jornais estava publicando.
O título
era: — De noite, todos os
gatos são pardos.
— Ah!
Este grito
soltado por Coelho chamou a atenção dos fregueses e dos criados da casa. Um destes correu assustado
para ele e perguntou se se engasgara com algum osso. Coelho observou-lhe que,
estando a comer ervas, era humanamente impossível engasgar-se com um osso, e
pediu-lhe polidamente que o deixasse acabar de jantar.
A razão do
grito é clara: o provérbio era um raio de luz.
— De
noite, todos os gatos são pardos, repetia ele consigo; irei ao jardim de Lúcia em lugar do namorado... e o
resto à sorte.
Tendo
adotado um plano, dispôs-se a jantar com mais tranqüilidade. Comeu e bebeu à larga, pediu charutos e café,
recostou-se na cadeira, e esperou que a digestão se fizesse em boa paz.
CAPÍTULO IV
NO JARDIM
Às
ave-marias estava Coelho em casa pronto e preparado para ir à entrevista. Não sabia bem o que lhe
aconteceria nessa noite, mas tinha uma
tal ou qual confiança no resultado da aventura.
Quase a
pôr o pé na rua, surgiram-lhe no espírito duas dúvidas.
Primeiro:
Seria
tarde ou cedo a hora da entrevista?
Segundo:
Não iria
ele encontrar-se com o outro, visto que a carta já estava aberta, o que era sinal de que ele a houvesse
lido?
Durante um
quarto de hora, esteve o nosso Coelho indeciso. A empresa chegou a parecer-lhe
extravagante.
— O que
estou fazendo é absurdo, dizia ele sentando-se no sofá; não se faz isto na vida
real, em 1863, na cidade do Rio de Janeiro. Estou simplesmente doido. Isso
contado não se acredita.
Mas com
estas idéias lhe foram aparecendo outras. Uma voz secreta dizia-lhe que tentasse a empresa, porque o
desenlace seria completo. Coelho ainda
procurou chamar a razão em seu auxílio, mas era tarde: o destino havia-se apoderado dele.
O jardim
tinha uma porta para a rua. Eram oito horas da noite; e, posto que a rua não
fosse muito freqüentada, era ainda cedo para poder impunemente penetrar no jardim.
Coelho
encostou-se ao muro, e estando a porta aberta, enfiou o olhar para dentro.
Descobriu duas janelas, uma fechada e outra aberta; no interior, havia luz.
Entretanto,
nem no jardim, nem na casa havia o menor vestígio de gente.
—
Naturalmente, está ela na sala, pensava Coelho; o diabo é eu não saber a hora; pode vir alguém e
descobrir-me... E se me fecham a porta?
O outro talvez tenha alguma chave...
Nesse
ponto, ouviu passos na calçada. Um vulto aproximava-se costeando o muro.
— É ele,
pensou Coelho.
Sua
primeira idéia foi recuar, ou passar para o lado oposto; mas refletiu que esta
mesma prevenção podia descobrir o seu intento.
O vulto
veio andando, andando, andando, até que enfrentou com ele.
Parou.
Coelho
estremeceu.
— Estou
perdido! disse ele consigo.
O vulto
meteu a mão no bolso sem tirar os olhos de Coelho, sacou um objeto que ele não
viu, mas que supôs ser um ferro; tirou o chapéu e disse polidamente:
— Faz
favor do fogo?
Coelho
respirou.
Deu-lhe o
charuto em que o homem acendeu o seu e prosseguiu viagem, sem voltar os olhos para trás.
— Sempre
sou um medroso! disse Coelho consigo. Creio que se o homem me lança a mão, eu morreria de medo.
Mas também o caso é arriscado; se o meu
rival se apresenta, estou perdido; pelo menos, entro em uma luta desagradável.
Neste
caminho das suas reflexões, Coelho passou do medo ao terror. Parecia-lhe ver já
diante de si o desconhecido namorado, munido de um cacete, ou de um punhal, e ele morto ou
espancado, na sala da polícia,
interrogado pela autoridade, examinado pelos médicos; e no dia seguinte, o seu
nome impresso em todas as folhas, e o caso contado com todos os pormenores.
Quis
fugir.
Mas, de
repente, sentiu um rumor no jardim.
Era a moça
que chegava com estrépito, sem dúvida para dar sinal ao namorado, caso ele
estivesse nas imediações.
Coelho não
pôde resistir.
Deitou um
olhar à rua; ninguém o via nesse momento. Persignou-se e entrou no jardim.
Lúcia viu
aparecer à porta o vulto e fez um sinal com o lenço. Coelho aproximou-se
cautelosamente da janela, que ficava elevada. A idéia da existência de algum cão atravessou-lhe o
espírito:
— Oh! meu
Deus! disse ele.
E estacou.
Mas a moça
estava presente e não havia recuar.
Continuou
a andar na direção da janela.
— És tu,
Carlos? perguntou a moça.
— Sou eu,
disse Coelho, com voz fraca.
— Não pude
vir mais cedo, disse Lúcia, porque minha tia quis por força que eu ficasse na sala. Agora pude sair
sem que ela reparasse. A nossa conversa não pode ser longa. Ninguém te viu?
— Ninguém,
murmurou Coelho, que não queria ser descoberto pela voz.
— Sabes o
que tem acontecido?
— Não.
— Meu tio
anda desconfiado do nosso amor.
— Ah!
— Ouvi-o
no domingo estar conversando com minha tia e dizendo que havia de saber quem
era o brejeiro que andava a namorar-me, e que lhe havia de quebrar as costelas.
Ouviu-se
um suspiro; ele pensou que era alguém de casa, mas reparou que era ela mesma.
— Não te
parece que estamos mal? perguntou a moça.
— Sim,
disse Coelho.
— Mas que
tens hoje? disse ela. Estás tão calado! Não me respondes senão com palavras
soltas. Sofres alguma coisa?
— Oh!
— É aquela
dor de peito que te continua a dar?
— É.
— Pobre
Carlos!
Neste
momento, ouviu-se um rumor. Era um pisar mansinho na areia do jardim.
— Que
será? pensou Coelho.
— Guardei
uma flor para ti, disse a moça. Queres?
— Quero,
grunhiu Coelho.
— Lá vai.
E Lúcia
debruçando-se na janela atirou a flor, que Coelho apanhou e levou aos lábios.
— Céus!
que é isto? murmurou a moça.
Era a voz
de um cão que se ouvira, e a voz de alguém que animava o cão.
— Há
alguém?
— Há,
disse Coelho mais morto que vivo.
— Há de
ser o preto.
E olhou na
direção do latido.
Coelho não
queria saber se era ou não o preto; a sua idéia definitiva era dirigir-se à porta e pôr-se ao fresco.
Nesse
sentido, começou a recuar; mas o latido do cão aproximava-se e dentro de pouco
tempo um vulto de homem e um vulto de cão se apresentaram em frente de Coelho.
O cão
parou e pareceu consultar o homem. Este fez um sinal e chegou-se a Coelho.
Coelho
encomendou a alma a Deus.
Um grito ouviu-se da janela. Era Lúcia, que desapareceu imediatamente.
— Quem é o
senhor? disse o vulto.
— Eu...
balbuciou Coelho.
— Sim...
diga!
— Eu...
— Eu quem?
E como
Coelho não respondesse, o vulto pegou-lhe no braço e procurou arrastá-lo para
dentro. Coelho resistiu.
— Vou
dizer tudo, gritou ele.
— Venha cá
dentro; estaremos mais a gosto.
Era
impossível resistir; Coelho acompanhou o vulto.
CAPÍTULO V
O VULTO
Ao
rés-do-chão, e por baixo das janelas, havia uma sala, com uma mesa e poucas cadeiras, iluminada por um bico
de gás.
Aí
entraram o vulto, Coelho e o cão.
Este foi
acocorar-se a um canto com os olhos em Coelho à espera de um sinal do vulto.
Coelho e o
vulto encararam-se antes de se sentarem.
— Ah!
exclamou o vulto.
— Ah!
exclamou Coelho.
— Pois é o
senhor?
— Eu...
— Temos o eu outra vez, disse o vulto, que era nem
mais nem menos Ypsilanti.
— Vou
explicar-lhe tudo, disse Coelho, resolvido a contar a história da carteira, o
mau pensamento que tivera, e obter assim o perdão do que acabava de fazer.
—
Sente-se, disse Ypsilanti.
Coelho
obedeceu. Ypsilanti sentou-se em frente dele, do outro lado.
— O senhor
sabe, disse o velho tio de Lúcia, que acaba de fazer uma coisa muito feia.
— Sei,
sim, senhor.
— Uma
coisa horrível, que eu não lhe perdoarei jamais?
Coelho
estendeu a mão:
— Se me
quiser ouvir, disse ele.
— Ouvi-lo?
Mas que me dirá o senhor para justificar o que acaba de fazer? É desse modo que
pretende haver alguma coisa que possuo? Está
em minhas mãos, e eu posso fazer do senhor o que quiser. Que diria o senhor se eu o denunciasse à polícia
como ratoneiro?
— Senhor!
— E
ratoneiro é o senhor, porque tirar um par de galinhas de um quintal e um par de
contos da algibeira de um homem honesto, é a mesma coisa; só difere o meio. O
senhor quis tirar-me um par de contos...
— Enfim, —
disse Coelho ansioso por explicar tudo, e chamar o furor do velho para o verdadeiro ratoneiro, como ele
disse, — enfim, eu espero convencê-lo de que não sou tão culpado como pareço.
— Há de
ser difícil.
— Não é.
— Estou
ouvindo.
Ypsilanti
tirou um charuto do bolso, acendeu e começou a fumar tranqüilamente, enquanto
Coelho começava a narração do achado da carteira
e do pensamento que tivera: não lhe ocultou que a circunstância de não ter
dinheiro, que a ambição de possuir alguma coisa o levara àquele erro.
— Tal é,
senhor Ypsilanti, o motivo que aqui me trouxe. Foi um erro de que eu me envergonho, mas o senhor pode ver
na franqueza com que eu confesso tudo, o arrependimento que já tenho do que
fiz.
Agora, só
me resta pedir o seu perdão... ou expor-me ao que o senhor quiser fazer.
Ypsilanti
soltou uma gargalhada.
Coelho
enfiou.
— De que
se ri? disse ele.
— De que
me hei de rir? Da sua imaginação fecunda. Em tão pouco tempo, criou o senhor um romance, que eu
poderia aceitar se já não tivesse estes cabelos brancos.
— Pois
crê...
— Não
creio em nada do que o senhor me disse...
Coelho
encolheu os ombros.
— Então,
não sei o que lhe hei de dizer...
— A
verdade.
— Já a
disse.
— Não; a
outra.
— Não há
senão esta.
— Quero
ouvir a outra verdade, que é a única verdadeira. E não é melhor ser franco? Por
que não me confessa que ama minha sobrinha,
que esta lhe corresponde, e que o senhor nutre a esperança de casar com ela?
Ypsilanti
disse estas palavras com um modo tão brando que Coelho começou a ver as coisas
por outra face. Esperava encontrar um tigre, e achou-se diante de um cordeiro.
Cordeiro
não o era ele tanto, porque logo depois das palavras acima transcritas, rompeu
nestas:
— Vamos!
fale, meu atrevido! meu sedutor de donzelas!
— Eu já
lhe disse a verdade.
— Não
disse. A verdade é que o senhor namora a pequena há alguns meses, que tem vindo
algumas vezes ao jardim, segundo me consta, que lhe escreve e é correspondido.
Coelho fez
um gesto para falar.
Ypsilanti
continuou:
— E pensa
que não sei a razão por que me não tem falado? É porque receia que eu lha
recuse. Sabe que eu tenho fama de severo e que só admitirei casamento em condições vantajosas...
Esta é a verdade.
Ypsilanti
estava outra vez com o modo brando, e Coelho de novo se animou a tirar proveito
da situação.
— Ora,
conquanto eu deseje para minha sobrinha um noivo rico, não faço disso questão principal. Pode ser pobre
e honesto. Se está nessas condições, por
que não me fala? Era melhor; não daria que falar.
Luziu nos
olhos de Coelho a posse de algumas dezenas de contos de réis. Era argumento melhor que todos os
raciocínios. A disposição de Ypsilanti o animou a dar mais um passo.
— Pois,
senhor Ypsilanti, disse Coelho; tudo confesso; é verdade, eu amo sua sobrinha e
peço-lha em casamento. A ocasião não é talvez própria, mas...
— Própria
é, disse Ypsilanti; mas confesse que procedeu muito indignamente até hoje, e que, se eu não fosse
uma boa alma, o senhor devia estar morto
a esta hora.
Dizendo
isto, bateu o velho com a mão na mesa; o cão grunhiu do seu lugar; e Coelho cuidou seriamente que
ainda não estava salvo.
Mas tudo
passou depressa.
— Pois,
senhor, venha amanhã pedi-la oficialmente. E prometa desde já que a há de fazer feliz.
— Juro!
disse Coelho. E peço-lhe que acredite, senhor Ypsilanti, que não é a idéia da
sua riqueza que me fez amar sua sobrinha, mas...
Ypsilanti
sorriu.
— Bem sei,
bem sei, disse ele.
Depois
acompanhou-o até à porta do jardim.
— Até
amanhã.
— Até
amanhã.
CAPÍTULO VI
MISTÉRIO
Fechou-se
a porta do jardim. Coelho parou na rua, atônito. Durante um quarto de hora, não
pôde dar um passo.
Tudo lhe
parecia um sonho.
De duas
uma:
Ou tinha
de ser metido numa terrível embrulhada, de que era incerto que saísse bem, ou
então, a sua felicidade era certa.
Mas como
supor a segunda hipótese?
Enganar o
tio era possível; mas a sobrinha? Quando esta o visse reconheceria
perfeitamente o engano e teria franqueza para dizer ao velho que o seu namorado não era ele mas
outro. O velho perdoaria aos dois, e descarregaria sobre ele todo o furor.
Coelho
caminhou lentamente para casa meditando no que acabava de ocorrer. Cada vez se lhe entranhava mais no
espírito a convicção de que a situação era para ele terrível; e ao mesmo tempo
perguntava a si mesmo como pudera crer
que fosse possível conseguir alguma coisa nas condições em que lhe apareceu a
carta.
— Eu
estava doido, sem dúvida, dizia consigo Coelho. Supor que poderia dali sair
alguma coisa boa, era realmente ter perdido o juízo.
Quando
chegou a casa estava resolvido a abrir mão da sobrinha de Ypsilanti.
— Mas será
isso possível? perguntava Coelho a si mesmo; depois do que se passou,
conhecendo-me ele, ainda que pouco, é impossível deixar a empresa. Em rigor, eu
devo-lhe uma satisfação. Não há remédio. Em que situação me fui colocar!
Depois a
idéia dos contos réis de novo lhe apareceu com todo o seu cortejo de gozos e fantasias.
— Rico,
dizia ele; rico! Oh! isto é um sonho! Eu posso estar rico daqui a um mês. Foi a
minha estrela que me levou lá; está dito. — E poderia satisfazer a sua ânsia de fazer
figura.
Pelas
quatro horas, conseguiu fechar os olhos.
Mas os
sonhos continuaram os cálculos; e o nosso Coelho acordou tarde, bem disposto, risonho e quase rico;
pelo menos, rico de imaginação.
O moleque
começou a experimentar a feliz mudança operada no ânimo do senhor. Não recebeu o pontapé matinal
de costume, e teve o gosto de assobiar uma ária sem medo de interrupção.
Coelho
mandou comprar um par de luvas brancas, e encomendar um carro, preparou-se,
perfumou-se, e ensaiou-se para a arriscada empresa. Enquanto não saía de casa,
tudo parecia ir facilmente, mas apenas se meteu no carro, e este começou a
rodar pelas ruas da cidade na direção da casa do grego, tudo se foi alterando
no espírito do rapaz.
— Mas eu
estou vivendo em pleno romance de ontem para cá, dizia o mísero; isto é uma
loucura. A rapariga vai reconhecer-me, adivinhará tudo, ou antes, não adivinhará nada, mas
compreenderá ao menos que não sou eu o
namorado, e tudo se desfaz e eu estou em pior posição do que ontem. O velho, apesar da
confissão que lhe fiz, não me há de perdoar a audácia, desde que souber que eu
efetivamente a pratiquei. Tudo isso é rematada loucura.
E o carro
ia andando.
Então,
voltava à mente de Coelho a idéia do dinheiro, e esta doce imaginação o seduzia
e lançava uma espécie de véu sobre os perigos que ele antevia. Imaginava um
belo prédio, carros, bailes, jóias, passeios,
todos os sonhos de um homem que não tem e quer possuir.
Mas, como
o carro andava sempre, e o momento decisivo ia se aproximando, Coelho tornava
aos seus terrores, e de novo hesitava se
devia ir à casa do velho ou voltar para trás.
No meio
dessas alternativas lembrou-lhe um meio que conciliava as esperanças com os receios.
— Entro,
pensava ele; o velho recebe-me; faço o meu pedido. Mandam vir a pequena, e apenas esta aparecer,
antes que saiba do assunto, faço-lhe um
gesto para que se não oponha, como quem lhe explicará o caso depois. Ela
imaginará que estou de acordo com o namorado,
e aguardará a explicação. Quando vier a ocasião, procurarei expor a verdade.
Sim, este é o verdadeiro meio.
Com este
pensamento foi até à casa de Ypsilanti. O velho já o esperava com ansiedade; recebeu-o cortesmente,
ainda que não sem um ar severo, que
aliás lhe era peculiar.
Feitos os
cumprimentos e presente a tia de Lúcia, expôs Coelho o objeto da sua visita,
proferindo um pequeno discurso análogo ao ato, que o velho ouviu com um
significativo meneio de cabeça.
— Pela
minha parte, disse este, consinto no pedido que faz; mas é mister que minha
sobrinha consinta também. Vou mandar chamá-la.
D.
Manuela, esposa de Ypsilanti, dignou-se aprovar a resposta do marido e mandou chamar Lúcia. Não tardou que a
sobrinha aparecesse à porta,
convenientemente vestida, e com os olhos baixos.
Coelho estremeceu.
Não
contara com este gesto de modéstia, tão natural da moça que é pedida para
casar, e não sabia como fazer o gesto que devia salvar a situação.
Lúcia
aproximou-se lentamente do grupo.
— Meu tio,
murmurou ela.
—
Senta-te, Lúcia, disse D. Manuela.
Lúcia
sentou-se, sempre com os olhos pregados no chão.
Coelho
estava em suores frios. Debalde olhava para ela, a moça não levantava os olhos.
Começou a tossir para ver se ela levantava os olhos. Ypsilanti, vendo a insistência da
tosse, mandou fechar a janela que ficara por trás de Coelho.
Tudo
estava perdido.
— Lúcia,
disse o velho tio, este senhor vem pedir-te em casamento. Aceitas o seu pedido?
Houve um
silêncio.
“Vai olhar
para mim, — pensou Coelho, — tudo está acabado”.
— Então?
disse D. Manuela.
— Aceito.
— Tudo
está arranjado, disse Ypsilanti; resta marcar o dia do casamento.
Outro
silêncio.
Lúcia não
levantara os olhos do chão. Coelho estava em brasas. Esperava o momento em que ela ia levantar os
olhos e soltar um grito de surpresa.
Como ela
insistia em não olhar para ele, achou ele que o mais prudente era esquivar-se quanto antes e, por
meio de uma carta, explicar-lhe tudo.
Ia já a
levantar-se, quando Ypsilanti lhe disse:
— Toma chá
conosco, Sr. Coelho?
Coelho! O
nome próprio do homem! Era impossível que, ao ouvir o nome de Coelho, a moça não levantasse os olhos
com pasmo.
Nada!
Esta
surpresa foi a maior sensação que o nosso herói tivera até aquele momento.
— Será
surda? perguntou ele. Mas não; ontem ouvia perfeitamente os meus monossílabos.
— Então,
Sr. Coelho? repetiu Ypsilanti. Não toma chá conosco?
— Peço
desculpas.
— E eu não
lhas dou, — acudiu dona Manuela, — há de tomar chá.
— Minha
senhora; é-me impossível, disse Coelho com os olhos pregados em Lúcia; tenho um objeto imperioso
que me impede de aceitar este gracioso
convite.
Coelho
disse estas palavras com voz clara e firme. Lúcia moveu a cabeça para ele.
Coelho nem
teve tempo de respirar; fez um gesto com os olhos, enquanto a moça, parecendo não reparar no gesto,
volvia a cabeça para o tio e tia, e
mostrava-se completamente senhora de si.
— Não
entendo, concluiu entre si o rapaz.
Conversaram
ainda algum tempo, até que o pretendente se despediu sem que a noiva lhe desse o menor sinal de
surpresa. Parecia que o amava há muito tempo.
— Que
mistério será este? dizia ele no carro; seja o que for, a moça está caída; vou
enfim ser rico.
CAPÍTULO VII
A SOMBRA DE BANQUO
Coelho
abençoou o acaso e o carnaval, autores do achado da carteira anônima e da misteriosa carta que o levou à
fortuna.
Começou a
freqüentar a casa de Ypsilanti, logo no dia seguinte, à espera de uma ocasião
em que pudesse esclarecer o mistério que parecia estar envolvido na indiferença com que
Lúcia o ouviu e aceitou.
Durante
oito dias, não pôde ter a ocasião desejada.
No nono
dia, porém, alcançou ensejo de falar a sós com a noiva, e desde as primeiras
palavras notou que ela, em vez de lhe dizer alguma coisa a respeito da situação em que se
achava, conversou placidamente dos seus planos futuros.
— Lúcia,
disse ele, aproveito esta ocasião para explicar-te a nossa situação.
— Que
situação?
— A
situação em que me coloquei para contigo. Naquela noite em que fui ao jardim conversar...
— Ah! eras
tu? perguntou ela admirada.
Mais
admirado, porém, ficou o nosso Coelho. Eras tu! Então ela confessa que, dez
dias antes, supunha ter falado ao outro namorado, e apesar disso ia casar com
ele, sem nenhum escrúpulo nem resistência?
Havia aí
um mistério. Como descobri-lo?
— De um
modo simples, disse Coelho consigo mesmo; pergunto-lho.
E depois
de um silêncio:
— Lúcia,
pergunto-lhe; admiras-te de que fosse eu quem naquela noite estava no jardim;
supunhas então que era o outro... Quem?
Lúcia
franziu a testa, levantou a cabeça, mediu e rapaz de alto a baixo e saiu da
janela.
— Está
tudo perdido, pensou Coelho; lá se me vai a pequena, e com ela... Reparemos o
erro.
O erro não
era difícil reparar. Lúcia parece que esperava por isso mesmo.
— Olhe,
disse ela, há um mistério aparente, mas uma coisa muito natural, que eu só lhe
explicarei depois de casada.
E disse
isto com um ar tão mimoso, que por um triz não endireita a boca.
Coelho
deu-se por satisfeito.
Foi
marcado o dia do casamento e começaram a correr os banhos. Lúcia estava mais
alegre que a mais alegre moça deste mundo; Ypsilanti dignou-se abrir um riso
prazenteiro; e Coelho fez grandes promessas
aos seus credores.
Dez dias
antes do casamento, estava Coelho em casa devaneando e construindo os mais soberbos castelos, quando
o moleque veio dizer-lhe que um sujeito mal-encarado o procurava.
— Conheces
quem seja?
— Nunca o
vi, não, senhor.
— Manda-o
entrar.
Daí a
pouco chegava Coelho à sala e dava com um homem alto, vestido de preto, sobrecasaca abotoada,
cabelos em desordem e olhar ameaçador.
Coelho
pôs-se em guarda.
— Que me
quer?
Silêncio.
— Que me
quer? repetiu ele.
— Tenho a
honra de falar ao Sr. Coelho?
— Sim,
senhor.
— Queria
dar-lhe duas palavras.
— Pode
falar.
Sentaram-se.
— Chamo-me
Carlos...
— Ah!
— Ah?
Coelho
estremeceu.
O homem
continuou:
— Carlos
Alves da Anunciação. Já ouviu alguma vez pronunciar o meu nome?
— Não me
lembra...
— Lúcia
devia casar comigo.
— Ah!
— Ah?
Coelho
tornou a estremecer.
— E foi o
senhor que me arrancou a felicidade das mãos, quem me lançou no abismo de todas as misérias, porque
eu...
Não pôde
continuar; tapou a cara com as mãos, e pareceu, — pareceu ao menos, — chorar à
larga.
Coelho
ficou comovido.
—
Peço-lhe, disse este, que não me acuse...
— Não o
acuso de nada, respondeu Alves, eu apenas digo que foi o senhor quem me fez
desgraçado, não por vontade própria, mas por irrisão da minha sorte. Seja o que
Deus quiser...
Alves
parecia mais calmo.
—
Falei-lhe um pouco exaltadamente, mas é a dor que me obriga a estes
arrebatamentos. Se soubesse como eu sofro!
— Mas que
lhe poderei eu fazer agora? disse Coelho.
O homem
pareceu não ouvir essas palavras.
— Às
vezes, cuido que estou doido. Sinto um fogo em mim; uma ardência... Ah!
E, dizendo
isto, começou a passear pela sala com grandes passos e sacudimentos de cabeça.
De
repente, parou o homem.
— Sr.
Coelho, disse ele, eu quero perdoar-lhe e não posso.
—
Perdoar-me? Mas que culpa...
Coelho
estacou.
Estaria o
homem informado da entrevista no jardim, e teria assim descoberto o achado da
carteira? Nesse caso, era positivo que a noiva estava de acordo com o antigo
namorado.
Coelho
perdia-se num mar de conjecturas.
—
Perdoar-me o quê?
—
Perdoar-lhe a minha morte.
— A sua
morte?
— Sim,
porque eu vou morrer.
— Não! não
deve morrer! Mas, em todo caso, já lhe disse, que tenho eu com isso? Que me
quer o senhor?
Alves
encarou-o, pôs o chapéu na cabeça e saiu.
CAPÍTULO VIII
A INDENIZAÇÃO
Coelho
ficou atônito.
A entrada
e a saída daquele homem seria inexplicável se ele não estivesse doido.
Só a loucura podia explicar semelhante procedimento.
Coelho deu
graças a Deus de se ver livre do doido, e deu ordem ao moleque de nunca mais
abrir a porta àquele sujeito.
A ordem
era inútil.
O homem
reapareceu à porta da sala.
— Ainda
aqui! exclamou Coelho.
— É
verdade, respondeu Alves. Venho propor-lhe um meio de nos reconciliarmos.
Coelho fez
um gesto de impaciência.
— Mas,
senhor, nós nunca estivemos conciliados, nem brigados. Não sei que haja
necessidade...
— Há,
respondeu tranqüilamente o homem. Quer ouvir-me?
— Fale.
— Eu
disse-lhe há pouco que amava a sobrinha de Ypsilanti. — Coelho fez um gesto afirmativo. — Era mentira, disse
Alves.
— Ah!
— É
verdade, era mentira, não a amava; o meu fim era fazer um bom casamento, isto
é, um casamento rico.
— Ainda
bem que o confessa, disse Coelho, respirando.
—
Confesso.
Coelho
levantou-se.
— Nesse
caso, disse ele, se e senhor tem a impudência de confessar que não amava a
pessoa em questão, se confessa que queria um casamento rico, por que razão está
aqui?
— Estou
aqui por uma razão bem simples, respondeu tranqüilamente o homem.
— Qual?
— Porque o
senhor...
E parou.
— Porque
eu... disse Coelho.
O homem
cravou os olhos nele.
— Porque
eu... repetiu Coelho.
— Porque o
senhor também a não ama.
— O quê?
disse Coelho espantado.
— O senhor
também a não ama...
— Essa
agora!...
— O seu
fim é também fazer um casamento de dinheiro... concluiu calmamente o homem.
Coelho
estava estupefato.
— De que
se admira? perguntou Alves.
— Da sua
audácia.
— Em que
consiste a minha audácia?
— Meu caro
senhor, isto é ridículo, disse Coelho encolerizado; a ninguém dou o direito de duvidar dos meus
sentimentos.
— Não digo
que o senhor dê esse direito a ninguém, retorquiu Alves sentando-se sossegadamente,
mas eu é que o tomo por minhas mãos.
— Mas
enfim que quer o senhor?
Alves
assumiu um ar melancólico, e respondeu:
— Que o
senhor me indenize da perda que sofro em não casar com aquele anjo.
Coelho não
podia cair em si. Alves falava com tanta segurança, que era impossível não
supor nele uma resolução inabalável.
— Então,
quer liquidar esse negócio comigo?
— Creio
que o senhor não fala sério.
Coelho
começou a refletir. Não lhe convinha ter por inimigo um homem, cuja audácia se manifestara já tão singularmente.
Tratou de ladear a questão.
— Eu não
hesitaria em socorrê-lo, disse ele, caso o senhor precisasse, mas confesso que
não possuo nada.
Alves
sorriu.
— Há de
possuir.
— Mas...
— Eu não
venho pedir-lhe socorro, mas uma indenização. Saibamos de uma coisa antes de
tudo: adota essa indenização em princípio?
— Em
princípio, nego-lha.
— Ah!
Houve um
silêncio.
— Está
bem, disse Alves, deixemos os princípios; vamos aos fatos. Está pronto a dar-ma?
— Mas,
senhor, isto é uma ladroeira, disse Coelho, levantando a voz para que o moleque
o ouvisse.
— Não,
senhor, é uma indenização.
— Pois
bem, disse Coelho, depois de alguns instantes de reflexão. Vejamos as suas
condições.
— Bravo!
vejo que nos entendemos. As minhas condições são: dez contos de réis pagos dois
meses depois do seu casamento.
— Dez
contos! exclamou Coelho.
— Sem lhe
rebater um real; é largar ou pegar. Não é mau; o senhor deve entrar na posse de uns cem contos de réis
pelo menos, além das esperanças; e nega
uns pobres dez contos a quem lhe cede o lugar?
— Nada,
não lhe dou um vintém, disse resolutamente Coelho.
— Sério?
— Sério.
— Olhe lá.
— Já
disse; não lhe dou um vintém. Isto seria ridículo se não fosse infame. Peço-lhe
que se retire.
Alves
soltou uma gargalhada, pôs o chapéu na cabeça, cumprimentou o dono da casa e saiu dizendo:
— Até à
vista.
CAPÍTULO IX
AH!
Coelho
respirou apenas se viu só. Repetiu ao moleque a ordem que lhe havia dado e
preparou-se para dar boas notícias à noiva.
Logo nessa
noite, estando com ela, falou na estranha visita que lhe fizera Alves.
— Sabes
quem foi hoje à minha casa?
— Quem
foi?
— O Carlos
Alves.
— Ah!
disse ela empalidecendo.
— Não o
recrimino por isso; sei que foi o teu primeiro namorado. Quero só dizer-te que
escapaste de uma infâmia.
— Como?
— Aquele
homem não era digno de ser teu marido, continuou Coelho; era um infame. Se soubesses o que praticou
comigo...
Lúcia
estava perturbada com o assunto da conversa.
— Falemos
de outra coisa, disse ela.
—
Compreendo o teu melindre, e respeito-o. Depois de casado, contar-te-ei tudo. Não imaginas... Queria
casar contigo por interesse.
Lúcia
arregalou os olhos.
— Deveras?
disse ela.
— É
verdade; teve o descaramento de o confessar; é um cínico. Eu te contarei tudo
depois.
A conversa
não passou além.
Correram
os dias sem novidade. Aproximou-se o dia do casamento. Ypsilanti queria dar um banquete, que o noivo
aprovou, mas a mulher e a sobrinha foram de opinião que o casamento à capucha
era melhor.
— Pois vá
à capucha, disse o grego.
Na véspera
do casamento, o noivo deu parte a dois ou três amigos íntimos, e foi dar a última vista de olhos na
casa. A casa estava ornada com certo luxo, para o qual teve Coelho de pedir
algumas somas emprestadas. De noite, foi à casa da noiva, mas voltou cedo para descansar e dar umas últimas
providências.
Não se
admirou pouco de ver a sala com luz, coisa que não havia durante a sua
ausência.
— Há de
ser alguma visita, pensou ele.
Subiu as
escadas.
Céus!
Era Alves!
O
ex-namorado de Lúcia estava assentado no sofá brincando com uma bengala.
Defronte dele estava o moleque pedindo-lhe que saísse.
— Entra a
propósito, disse Alves, o seu moleque conhece pouco os deveres de hospitalidade. Quer pôr-me fora
daqui. Diga-lhe que é uma grosseria.
Coelho fez
um sinal ao moleque, que se retirou.
Apenas
ficou só com o ex-rival, disse:
— Sr.
Alves, há de convir que isto vai passando os limites, não estou disposto a sofrer as suas importunações, já
lhe disse que...
— O senhor
disse-me que não me daria os dez contos de réis, cuidei que estava brincando, porque, na situação em
que o senhor se acha, só por brincadeira
pode dizer uma monstruosidade de tal calibre. Os dez contos hão de vir ter às
minhas mãos.
—
Ameaça-me?
— Não
ameaço; discuto. Não quer pagar-me a indenização que lhe peço? É um desejo impossível de satisfazer.
Vou dizer a razão.
E metendo
a mão no bolso tirou um papel.
— Sabe o
que é isto?
— Não.
— É uma
carta.
Coelho
levantou os ombros.
— Uma
carta de sua noiva.
— Ah!
— Se o
senhor me não der o dinheiro, publico-a.
— Mas isto
é uma...
— É uma
defesa. Quer ler a carta?
Coelho fez
um gesto de recusa.
— Há de
confessar, disse este, que o senhor é muito infame!
— Mais
talvez do que o senhor pensa; disse tranqüilamente Alves; não tenho só esta
carta; tenho mais trinta e sete cartas, cada qual mais ardente. Imagine o efeito desse regimento
epistolar em letra redonda. É
coruscante.
— Basta,
disse Coelho; sacrifico-me, já que é preciso. Que condições quer?
— Já lhe
disse: dez contos de réis a pagar daqui a dois meses. Trago a letra.
— É
previdente.
— A
previdência é a mãe da vitória.
Alves
tirou do bolso uma letra, que ali mesmo encheu, e Coelho assinou trêmulo de
raiva.
— Adeus,
meu caro Sr. Coelho. Ainda havemos de ser amigos.
Coelho não
disse palavra.
Alves saiu
saltitante e alegre.
A noite do
pobre noivo foi atribulada.
O dia
seguinte, porém, desfez as más impressões da noite. Sorria-lhe a idéia de que a fortuna mudava enfim. A
felicidade foi mais completa; logo de
manhã recebeu a visita do Alves, ia dizer-lhe que apenas recebesse os dez
contos de réis, receberia as trinta e sete cartas de Lúcia.
A
cerimônia do casamento passou-se sem novidade. Todos estavam alegres como é de
costume nesses dias. O velho Ypsilanti parecia haver recobrado a pouca alegria
que tinha outrora; estava brando como uma cera, esfregando as mãos, piscava os
olhos, todo ele era ventura e prazer.
Que direi
eu da noiva, que não seja sabido por quantos têm assistido a um casamento?
Estava acanhada, modesta, reservada, mas no fundo do seu coração era imensa a
alegria.
Não menos
feliz estava Coelho. A mulher era positivamente um dragão, mas em compensação era herdeira de um
bom par de contos de réis. Este era o principal objeto do amor do rapaz.
Não
admira, pois, que todo entregue às delícias do noivado, o nosso Coelho de todo esquecesse o seu singular
credor. Correram as semanas sem ele dar
por elas. No fim de dois meses, bateu-lhe Alves à porta.
Coelho
estremeceu quando o viu entrar.
— Venho para
cobrar a letra que me deve, e que se vence amanhã.
— Bem,
disse Coelho, venha amanhã.
— A que
horas?
— Às dez
horas.
— Cá
estarei. Passe bem.
— Passe
bem.
E saiu
Alves.
Coelho
correu à casa do sogro.
Explicou-lhe
com franqueza que devia pagar uma letra.
Ypsilanti
respondeu:
— Não lhe
posso dar o dinheiro que me pede.
— Mas,
senhor...
— Não lhe
posso dar o dinheiro que me pede.
Coelho
começou a irritar-se.
— Mas,
senhor, esta dívida de honra, fi-la para salvar o decoro do seu nome.
E explicou-lhe
tudo.
— Céus!
exclamou o velho; será verdade isso que me diz?
—
Puríssima verdade.
Ypsilanti
levantou os braços com desespero:
— Oh! meu
Deus! meu Deus!
— Que é?
— Mas eu
não tenho dinheiro; não sou rico como o senhor pensa; todos os meus haveres andam por oito contos.
— Ah!
exclamou o rapaz petrificado.
Imagina-se
o desespero do pobre rapaz quando soube do logro em que caíra.
E o logro
era talvez o menos; o risco em que se achava com a dívida que contraíra era o pior, — sem falar na que
fez para montar a casa.
Correu
para a casa furioso; a mulher foi a primeira que pagou as favas.
Tudo se
arranjou entretanto. Alves, sabedor das desgraças de Coelho, pela confissão que este lhe fez, houve por bem
perdoar-lhe a dívida.
— Pago com
dez contos, disse ele, o risco de que o senhor me livrou.
Coelho
estava desesperado; julgou ter dado um grande golpe na má sorte financeira, e
fora vencido por ela; estava mais pobre que dantes. Ficara-lhe só o amor.
Um dia,
seis meses depois de casado, e feliz, contou ele à mulher toda a cena da carteira, e perguntou-lhe por
que razão o aceitara tão facilmente para
marido, sabendo que não era ele o namorado.
Lúcia
respondeu ingenuamente:
— Porque
você era mais bonito.
---
Nota:
Texto-fonte: Histórias Românticas, Machado de Assis, Rio
de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1938. Publicado originalmente em Jornal das
Famílias, agosto de 1872. Disponível digitalmente no
site: Domínio Público
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