
DECADÊNCIA DE DOIS GRANDES HOMENS
Os antigos freqüentadores do Café
Carceller hão de recordar-se de um velho que ali ia todas as manhãs às oito horas,
almoçava, lia os jornais, fumava um charuto, dormia cerca de meia hora e saía.
Estando de passagem no Rio de Janeiro, aonde viera para tratar questões
políticas com os ministros, atirei-me ao prazer de estudar todos os originais
que encontrava, e não tenho dúvida em confessar que até então só tinha
encontrado cópias. O velho apareceu a tempo; tratei de analisar o tipo.
Era meu
costume — costume das montanhas mineiras — acordar cedo e almoçar cedo. Ia
fazê-lo ao Carceller, justamente à hora do velho, dos empregados públicos e dos
escreventes de cartório. Sentava-me à mesa que enfrentava com a do velho, e que
era a penúltima do lado esquerdo contando do fundo para a rua. Era ele homem de
seus cinqüenta anos, barbas brancas, olhos encovados, cor amarela, algum
abdome, mãos ossudas e compridas. Comia vagarosamente algumas fatias de
pão-de-ló e uma chávena de chocolate. Durante o almoço não lia; mas apenas
acabado o chocolate, acendia um charuto que tirava do bolso, que era sempre do
mesmo tamanho, e que no fim de certo tempo tinha a virtude de o fazer adormecer
e deixar cair das mãos o jornal que estivesse lendo. Encostava então a cabeça à
parede, e dormia plácido e risonho como se algum sonho agradável lhe estivesse
dançando no espírito; às vezes abria os olhos, contemplava o vácuo, e
continuava a dormir tranqüilamente.
Indaguei
do caixeiro quem era aquele freguês.
— Não sei,
respondeu; almoça aqui há quatro anos, todos os dias, à mesma hora.
— Tem ele
por aqui algum conhecido?
— Nenhum;
aparece só e retira-se só.
Aguçava-me
a curiosidade. Ninguém conhecia o velho; era mais uma razão para conhecê-lo eu.
Procurei travar conversa com o desconhecido, e aproveitei uma ocasião em que
ele acabava de engolir o chocolate e procurava com os olhos algum jornal.
— Aqui
está este, disse-lhe eu, indo levar-lhe.
—
Obrigado, respondeu-me o homem sem levantar os olhos e abrindo a folha.
Não
obtendo mais nada, quis travar conversa por outro modo.
— Traz
hoje um magnífico artigo sobre a guerra.

— Ah!
disse o velho com indiferença.
Nada mais.
Voltei ao
meu lugar disposto a esperar que o velho lesse, dormisse e acordasse. Paciência
de curioso, que ninguém a tem maior, nem mais fria. Ao cabo do tempo do costume tinha o homem lido, fumado e dormido.
Acordou, pagou o almoço e saiu.
Acompanhei-o imediatamente; mas o homem tendo chegado à esquina, voltou e foi
até à outra esquina, aonde se demorou, seguiu por uma rua, tomou a parar e a
voltar, a ponto que eu desisti de saber onde iria ele ter, tanto mais que nesse
dia devia entender-me com um dos membros do governo, e não podia perder a
ocasião.
Quando no
dia seguinte, eram 15 de março, voltei ao Carceller, encontrei lá com o meu
homem, assentado no lugar do costume; estava acabando de almoçar, almocei
também; mas desta vez guardou-me o misterioso velho uma surpresa; em vez de
pedir um jornal e fumar um charuto, encostou a cara nas mãos e começou a olhar para mim.
— Bom,
disse eu; está amansado. Naturalmente vai dizer-me alguma coisa. Mas o homem
nada disse e continuou a olhar para mim. A expressão dos olhos, que de ordinário era morta e triste, nessa ocasião
tinha um quê de terror. Supondo que ele quisesse dizer-me alguma coisa, fui o
primeiro a dirigir-lhe a palavra.
— Não lê
hoje os jornais?
— Não,
respondeu-me ele com voz sombria; estou pensando...
— Em quê?
O velho
fez um movimento nervoso com a cabeça e disse:
— São
chegados os idos de março!
Estremeci
ouvindo esta singular resposta, e o velho, como se não visse o movimento,
continuou:
—
Compreende, não? É hoje um tristíssimo aniversário.
— A morte
de César? perguntei eu rindo.
— Sim,
respondeu o velho com voz cavernosa.
Não tinha
que ver; era algum homem maníaco; mas que haveria de comum entre ele e o
vencedor das Gálias? A curiosidade cresceu; e aproveitei a disposição em que o
velho estava de travar conhecimento. Levantei-me e fui sentar-me à mesa dele.
— Mas que
tem o senhor com a morte de César?
— O que
tenho com a morte daquele grande homem? Tudo.
— Como
assim?
O velho abriu
a boca e ia responder, mas a palavra ficou-lhe no ar e o homem voltou à
taciturnidade habitual. Ocupei esse tempo em contemplá-lo mais detidamente e de
perto. Olhava ele para a mesa, com as mãos postas debaixo das orelhas; os
músculos do rosto estremeciam de quando em quando, e os olhos rolavam dentro
das órbitas como favas nadando em prato de molho. No fim de
algum tempo olhou para mim, e eu aproveitei a
ocasião para dizer-lhe:
algum tempo olhou para mim, e eu aproveitei a
ocasião para dizer-lhe:
— Quer um
charuto?
—
Obrigado; eu só fumo dos meus; são charutos opiados, grande recurso para quem
quer esquecer um grande crime. Quer um?
— Não
tenho crimes.
— Não
importa; colherá prazer em fumá-lo.
Aceitei o
charuto, e guardei-o.
— Consente
que o guarde?
— Pois
não, respondeu ele.
Outro
silêncio mais prolongado. Vi que o homem não estava para conversa; a fronte se
lhe entristecia cada vez mais como a Tijuca quando está para cair temporal. Ao
cabo de alguns minutos, disse-lhe eu:
—
Simpatizo muito com o senhor, quer que eu seja seu amigo?
Luziram os
olhos do homem.
— Meu
amigo? disse ele; oh! por que não? preciso de um, mas de um amigo verdadeiro.
Estendeu-me
a mão, que eu lhe apertei com afeto.
— Como se
chama? perguntei eu.
Sorriu o
velho, soltou das cavernas do peito um longo e magoadíssimo suspiro, e respondeu-me:
— Jaime. E
o senhor?
— Miranda,
doutor em medicina.
— É
brasileiro?
— Sim,
senhor.
— Meu
patrício então?
— Creio.
— Meu
patrício!...
E dizendo
isto o velho teve um sorriso tão infernal, tão sombrio, tão lúgubre, que eu tive idéia de me ir embora. Reteve-me a
curiosidade de chegar ao fim. Jaime não
prestava atenção ao que se passava ali; e exclamava de quando em quando:
— Os idos
de março! os idos de março!
— Olhe,
meu amigo Sr. Jaime, quer ir dar um passeio comigo?
Aceitou
sem dizer palavra. Quando nos achamos na rua perguntei-lhe se preferia algum
lugar.

Respondeu-me
que não.
Andamos ao
acaso; eu procurava travar conversa a fim de distrair o homem dos idos de
março; e consegui a pouco e pouco que se tornasse mais conversador. Era então apreciável.
Não falava sem gesticular com o braço esquerdo, com a mão fechada, e o dedo
polegar aberto. Contava anedotas de mulheres e mostrava-se grande apreciador do
sexo amável; era exímio na descrição da beleza feminina. A conversa passou à história, e Jaime exaltou os
tempos antigos, a virtude romana, as
páginas de Plutarco, Tito Lívio e Suetônio. Sabia o Tácito de cor e dormia com Virgílio,
disse ele. Seria um doido, mas conversava com muito juízo.
Sobre a
tarde tive fome e convidei-o a jantar.
— Comerei
pouco, respondeu Jaime; estou indisposto. Ai! os idos de março!
Jantamos
em hotel, e eu quis acompanhá-lo a casa, que era na Rua da Misericórdia.
Consentiu nisso com verdadeira explosão de alegria. A casa dizia com o dono.
Duas estantes, um globo, vários alfarrábios espalhados no chão, uma parte sobre
uma mesa, e uma cama antiga.
Eram seis
horas da tarde quando entramos. Jaime tremia quando chegou à porta da sala.
— Que tem?
perguntei-lhe eu.
— Nada,
nada.
Mal
entrávamos na sala, pulou da mesa, onde se achava acocorado, um enorme gato preto. Não fugiu; saltou aos ombros de
Jaime. Este tremeu todo e procurou aquietar
o animal passando-lhe a mão pelo lombo.
— Sossega,
Júlio! dizia ele, enquanto eu com o olhar inspecionava o albergue do homem e procurava
cadeira onde me sentasse.
O gato
pulou depois à mesa e fitou em mim dois grandes olhos verdes, fulminantes,
interrogadores; compreendi o susto do velho. O gato era modelo na espécie; tinha certo ar de ferocidade da onça,
de que era miniatura acabada. Era todo preto, pernas compridas, longas barbas;
gordo e alto, tendo uma extensa cauda que brincava no ar dando saltos
caprichosos. Tive sempre antipatia aos gatos; aquele causava-me horror.
Parecia-me que ia saltar sobre mim e esganar-me com as largas patas.
— Mande o
seu gato embora, disse eu a Jaime.
— Não faz
mal, respondeu-me o velho. Júlio César, não é verdade que tu não fazes mal a
este senhor?
O gato
voltou-se para ele; e Jaime beijou repetidas vezes a cabeça do gato. Do susto
passara à efusão. Compreendi que seria pueril assustar-me quando o animal era tão manso, ainda que não compreendi o medo
do velho quando entrou. Haveria alguma coisa entre aquele homem e aquele bicho?
Não pude explicá-lo. Jaime acariciou o gato enquanto eu por me distrair lia o
título das obras que estavam nas estantes. Um dos livros tinha no lombo este
título: Metempsicose.
— Acredita
na metempsicose? perguntei eu.
O velho,
que estava ocupado em tirar o paletó e vestir um chambre de chita amarela,
interrompeu aquele serviço, para dizer-me:
— Se
acredito? Em que queria o senhor que eu acreditasse?

— Um homem
instruído, como o senhor, não devia crer em tolices desta ordem, respondi
abrindo a livro.
Jaime
acabou de vestir o chambre, e veio a mim.
— Meu caro
senhor, disse ele; não zombe assim da verdade; nem zombe nunca de filosofia nenhuma. Toda a filosofia pode ser
verdadeira; a ignorância dos homens é que faz de uma ou de outra crença da
moda. Contudo para mim, que as conheci todas, só uma é a verdadeira, e é essa a
que alude o senhor com tanto desdém.
— Mas...
— Não me
interrompa, disse ele; quero convencê-lo.
Levou-me a
uma poltrona de couro e obrigou-me a sentar ali. Depois foi sentar-se ao pé da
mesa, em frente a mim e começou a desenvolver a sua teoria, que eu ouvi sem
pestanejar. Jaime tinha a palavra fácil, ardente, impetuosa; animavam- se-lhe
os olhos, tremia-lhe o lábio, e a mão, a famosa mão esquerda, agitava no ar o
dedo polegar aberto e curvo como um ponto de interrogação.
Ouvi o
discurso do homem, e não ousei contestar-lhe. Era evidentemente um doido; e ninguém discute com homem doido.
Jaime acabou de falar e caiu numa espécie de prostração. Cerrou os olhos e
ficou insensível alguns minutos. O gato saltou à mesa, entre mim e ele, e
começou a passar a mão pela cara de Jaime, o que o fez despertar daquele
abatimento.
— Júlio!
Júlio! exclamava ele beijando o gato; será hoje? será hoje?
Júlio não
parecia entender a pergunta; alteou o lombo, descreveu com a cauda algumas
figuras geométricas no ar, deu dois saltos e pulou ao chão.
Jaime
acendeu um lampião, enquanto eu me levantava para me ir embora.
— Não se
vá, meu amigo, disse-me Jaime; peço-lhe um favor.
— Qual?
— Fique
comigo até a meia-noite.
— Não
posso.
— Por quê?
não imagina que favor me faria!
— Tem
medo?
— Hoje
tenho: são os idos de março.
Consenti
em ficar.
— Não me
dirá, perguntei eu, que tem o senhor com os idos de março?
— Que
tenho? disse Jaime com os olhos em fogo. Não sabe quem sou?
— Pouco
sei.
— Não sabe
nada.
Jaime
inclinou-se sobre a mesa e disse-me ao ouvido:

— Sou
Marco Bruto!
Por mais
extravagante que estas palavras pareçam ao frio leitor, confesso que me causaram profunda sensação. Recuei a cadeira
e contemplei a cabeça do velho. Pareceu-me
que a iluminava a virtude romana. Os olhos tinham fulgores de padre conscrito;
o lábio parecia estar fazendo uma oração à liberdade. Durante alguns minutos
saboreou ele silenciosamente a minha silenciosa admiração. Depois, sentando-se
outra vez:
— Marco
Bruto sou, disse, ainda que esta revelação lhe cause espanto. Sou aquele que
encabeçou a momentânea vitória da liberdade, o assassino (em que me pese o
nome!), o assassino do divino Júlio.
E voltando
os olhos para o gato, que estava sobre uma cadeira, entrou a contemplá-lo com
uma expressão de arrependimento e dor. O gato fitou nele os olhos verdes,
redondos, e nesta contemplação recíproca ficaram até que eu para obter maior explicação do que
presenciava, perguntei ao velho:
— Mas, Sr.
Bruto, se é aquele grande homem que assassinou César por que receia os idos de março? César não voltou cá.
— A causa
do meu receio ninguém a sabe; mas eu lhe direi francamente, pois é o único
homem que tem mostrado interesse por mim. Receio os idos de março, porque...
Estacou;
enorme trovão rolou nos ares e pareceu abalar a casa até os alicerces. O velho
ergueu os braços e os olhos para o teto e fez mentalmente uma prece a algum
deus do paganismo.
— Será a
hora? perguntou ele baixinho.
— De quê?
perguntei.
— Do
castigo. Ouça, mancebo; o senhor é filho de um século sem fé nem filosofia; não
conhece o que é a cólera dos deuses. Também eu nasci neste século; mas trouxe
comigo as virtudes da minha primeira aparição na terra: corpo de Jaime, alma de
Bruto.
— Então já
morreu antes de ser Jaime?
— Sem
dúvida; é sabido que morri; ainda que eu desejasse negá-lo, aí estaria a História para dizer o contrário. Morri;
séculos depois, voltei ao mundo com esta forma que vê; agora voltarei a outra
forma e...
Aqui o
velho começou a chorar. Consolei-o como pude, enquanto o gato, trepando à mesa,
veio acariciá-lo com uma afeição bem contrária à índole de uma onça. O velho agradeceu as minhas consolações, e as
carícias de Júlio. Aproveitei a ocasião para lhe dizer que efetivamente eu
imaginava que o ilustre Bruto devia ter aquela figura.
O velho
sorriu.
— Estou
mais gordo, disse ele; naquele tempo eu era magro. Coisa natural; homem gordo não faz revolução. Bem o
compreendia César quando dizia que não temia a Antônio e Dolabela, mas sim
àqueles dois sujeitos amarelos e magros e éramos Cássio e eu...
— Pensa
então o senhor que...
— Penso
que homem gordo não faz revolução. O abdome é naturalmente amigo
da ordem; o estômago pode destruir um império;
mas há de ser antes de jantar. Quando Catilina encabeçou a célebre conjuração a
quem foi procurar? Foi procurar a gente que não tinha um sestércio de seu; a
turba dos clientes, que vivia de espórtulas, não os que viviam pomposamente em
Túsculo ou Baïas.
da ordem; o estômago pode destruir um império;
mas há de ser antes de jantar. Quando Catilina encabeçou a célebre conjuração a
quem foi procurar? Foi procurar a gente que não tinha um sestércio de seu; a
turba dos clientes, que vivia de espórtulas, não os que viviam pomposamente em
Túsculo ou Baïas.
Achei
curiosa a doutrina e disse a propósito algumas palavras que nos distraíram do
assunto principal.
O genro de
Catão continuou:
— Não lhe
contarei, pois sabe a História, a conjuração dos idos de março. Apenas lhe
direi que eu entrara naquela sinceramente, porquanto, como muito bem disse um
poeta inglês, que depois me meteu em cena, eu matei César, não por ódio a César,
mas por amor da República.
— Apoiado!
— O senhor
é deputado? perguntou o velho sorrindo.
— Não,
senhor.
— Pensei.
Aproveito a ocasião para dizer-lhe que a tática parlamentar de tomar tempo com
discursos até o fim das sessões não é nova.
— Ah!
— Foi
inventada por meu ilustre sogro, o incomparável Catão, quando César, voltando
vencedor da Espanha, queria o triunfo e o consulado. A assembléia inclinava-se a favor do pretendente; Catão não
teve outro meio: subiu à tribuna e falou
até a noite, falou sem parar um minuto. Os ouvintes ficaram estafados com a arenga, e César vendo que não podia ceder a um
homem daquele calibre, dispensou o triunfo, e veio pleitear o consulado.
— De
maneira que hoje quando um orador toma o tempo até o fim da hora?...
— Está na
altura de Catão.
— Tomo
nota.
— Ah! meu
rico senhor, a vida é uma eterna repetição. Todos inventam o inventado.
— Tem
razão.
— Matamos
o divino Júlio, e mal lhe posso dizer o assombro que se seguiu ao nosso
crime... Crime lhe chamo porque reconheço hoje que o era; mas sou obrigado a
dizer que o ilustre César ofendera a majestade romana. Eu não fui o inventor da
conjuração; toda a gente estava inspirada dos meus desejos. Eu não podia entrar
no senado que não achasse essa cartinha: “Dormes, Bruto?” ou então: “Ai, Bruto
que já o não és”. De toda a parte me instigaram. Uniram-se todos os ódios ao
meu, e o mundo presenciou aquela tremenda catástrofe...
Jaime ou
Bruto, que eu realmente não sei como lhe chame, concentrou um pouco o seu
espírito; depois levantou-se, foi à porta, espiou, deu uma carreirinha e veio sentar-se
defronte de mim.
— Há de
ter lido que a sombra de César me apareceu depois duas vezes, sendo que, da
segunda, veio silenciosa e silenciosa foi. É um erro. Da segunda vez foi que eu
ouvi tremendo segredo que lhe vou revelar. Não o disse a ninguém por medo, e
medo do que se dissesse de mim. Vá, abra os ouvidos...

Nesse
momento o gato começou a dar saltos vertiginosos.
— Que diabo
é isto? disse eu.
— Não sei;
creio que está com fome. São horas de cearmos.
Jaime-Bruto
foi buscar a ceia do gato, e trouxe para a mesa um assado frio, pão, queijo
inglês, e vinho italiano e figos secos.
— Os
vinhos italianos são uma recordação de minha vida anterior, disse ele. Quanto aos figos, se não são de Túsculo, ao
menos os fazem lembrar.
Comemos
tranqüilamente; eram então oito horas, e o velho estava ansioso que batessem as doze. Ao cabo de meia hora acendeu
ele um charuto, e eu o mesmo que ele me havia dado de manhã, e continuamos a
falar de César.
—
Apareceu-me a sombra, disse ele, e desenrolou um libelo dos males que eu havia feito à República com a morte dele, e ao
mesmo tempo acrescentou que o meu crime nada salvara, pois era inevitável a
decadência da República. Como eu respondesse um pouco irritado, a sombra soltou
estas fatídicas palavras: “Bruto, os deuses querem punir-te da minha morte.
Voltaremos ao mundo outra vez debaixo da forma humana, e depois, imediatamente
depois minha alma passará ao corpo de um
gato. Daí em diante, Bruto, teme sempre os idos de março, porque a um desses aniversários serás
transformado em rato, e engolido por mim.”
Tirei o
charuto da boca, e contemplei a cara do meu interlocutor. Era impossível que
não estivesse próximo um acesso de loucura; mas o olhar do homem conservava a mesma inteligência e serenidade.
Ele respirava a fumaça com delícias e olhava, ora para o teto, ora para o gato.
— É um
doido manso, pensei eu, e continuei a fumar enquanto o velho continuou:
—
Compreende o senhor por que motivo receio esses malditos idos de março, aniversário
do meu crime.
Atirou
fora o charuto.
— Não
fuma? perguntei eu.
— Destes
não fumo hoje.
— Quer dos
meus?
— Aceito.
Dei-lhe um
charuto, que ele acendeu, e eu continuei a fumar o dele, que me fazia sentir
delícias inefáveis. Ia-se-me o corpo ficando mole; estendi-me na poltrona e prestei ouvidos ao anfitrião.
Este
passeava vagarosamente, gesticulando, rindo sem motivo, outras vezes chorando,
tudo como quem tem alguma mania na cabeça.
— Não me
dirá, perguntei eu, se é neste gato que está a alma de Júlio?
— Sem
dúvida, é neste bicho que se meteu a alma daquele grande homem, o primeiro do
universo.
O gato não
pareceu reparar nessa adulação póstuma do nobre Bruto, e foi colocar-
se no
sofá em ação
de querer dormir.
Pus os olhos no animal, e admirei o que eram os destinos humanos. César
estava reduzido à condição de animal doméstico! Aquele gato, que estava ali
diante de mim, tinha escrito os Comentários, subjugado os Gauleses, vencido
Pompeu, destruído a República. Saciava-se agora com uma simples ceia, quando
outrora queria dominar todo o universo.
se no
sofá em ação
de querer dormir.
Pus os olhos no animal, e admirei o que eram os destinos humanos. César
estava reduzido à condição de animal doméstico! Aquele gato, que estava ali
diante de mim, tinha escrito os Comentários, subjugado os Gauleses, vencido
Pompeu, destruído a República. Saciava-se agora com uma simples ceia, quando
outrora queria dominar todo o universo.
Jaime veio
tirar-me das minhas cogitações.
— Poderia
eu ter alguma dúvida acerca da identidade deste animal, disse ele; mas tudo me
prova que é ele o meu divino Júlio.
— Como?
—
Apareceu-me aqui uma noite sem que a porta estivesse aberta e começou a olhar para mim. Quis pô-lo fora; impossível.
Então lembrou-me a ameaça da sombra. —
“Júlio César”, disse eu, chamando o gato; e imediatamente começou ele a fazer-me festas. Era fado ou ocasião:
mais tarde ou mais cedo o meu túmulo é o ventre deste nobre animal.
— Acho que
não tem razão de crer...
— Ah! meu
caro doutor... é razão e mais que razão. Quer ver? Júlio César!
O gato,
apenas ouviu este nome, pulou do sofá e começou a dar saltos mortais por cima
de um Niágara imaginário, a ponto de me obrigar a sair da cadeira e ir para o sofá.
—
Aquieta-te, Júlio! disse o velho.
O gato
sossegou; trepou para uma poltrona e ali arranjou como a seu gosto.
Quanto a
mim, sentindo no corpo um delicioso torpor, estendi-me no sofá e continuei a
pasmar ouvindo a narração do meu Jaime-Bruto. Durou esta ainda uma boa meia
hora; falou-me o homem das coisas da República, da timidez de Cícero, da
versatilidade do povo, da magnanimidade de César, da política de Otávio.
Elogiou muito a antiga esposa de quem conservava eternas saudades; e por fim
calou-se.
Nenhum
rumor, o trovão não trouxera chuva; as patrulhas andavam por longe; nenhum caminhante feria as pedras da rua. Eram
mais de dez horas. O meu anfitrião,
sentado na cadeira de couro, olhava para mim, abrindo dois grandes olhos e eis
que estes começam a crescer lentamente, e já ao fim de alguns minutos pareciam
no tamanho e na cor as lanternas dos bondes de Botafogo. Depois, começaram a
diminuir até ficarem muito abaixo do tamanho natural. A cara foi-se-lhe alongando e tomando proporções
de focinho; caíram as barbas; achatou-se o nariz; diminuiu o corpo, assim como
as mãos; as roupas desapareceram; as carnes tomaram uma cor escura; saiu-lhe
uma extensa cauda, e eis o ilustre Bruto, a saltar sobre a mesa, com as formas
e as visagens de um rato.
Senti os
cabelos eriçados; tremia-me o corpo; batia-me o coração.
No mesmo instante,
o gato saltou à mesa e avançou para ele. Fitaram-se alguns instantes, o que me
trouxe à memória aqueles versos de Lucano, que o Sr. Castilho José nos deu
magistralmente assim:
Nos altos,
frente a frente, os dois caudilhos, Sôfregos de ir-se às mãos, já se acamparam.

Após curto
silêncio, o gato avançou para o rato; o rato pulou ao chão, e o gato atrás
dele. Subiu o rato ao sofá, e o gato também. Onde Bruto se escondesse, lá se
metia César, às vezes o primeiro encarava de frente o segundo, mas este não se
assustava com isso, e avançava sempre. Gemidos e roncos ferozes eram a orquestra
desta dança infernal. Exausto de uma luta impossível, o rato deixou-se cair
arquejante, e o gato pôs-lhe a pata em cima.
Que pena
descreveria o olhar triunfante de César quando viu debaixo de si o miserando
Bruto? Não conheço nada em poesia ou pintura — nem sequer na música chamada
imitativa, — nada conheço que produza a impressão que me produziu aquele grupo
e aquele olhar. De uma rivalidade secular, que lutou à luz do sol e da
História, passava-se ali o último ato, dentro de uma sala obscura, tendo por
espectador único um provinciano curioso.
O gato
tirou a pata de cima do rato; este deu alguns passos; o gato tomou a pegá-lo; repetiu a cena uma porção de vezes;
e se isto era natural de um gato, não
era digno de César. Acreditando que me ouvissem, exclamei:
— Não o
tortures mais!
O gato
olhou para mim e pareceu compreender-me; efetivamente atirou-se ao rato com uma
ânsia de quem esperava há muito aquela ocasião. Vi — que horror! — vi o corpo
do nobre Bruto passar todo ao estômago do divino César, vi isto, e não lhe pude
valer, porque eu tinha a presunção de que as armas da terra nada podiam contra
aquela lei do destino.
O gato não
sobreviveu à vingança. Apenas comeu o rato, caiu trêmulo, miou alguns minutos e
faleceu.
Nada mais
restava daqueles dois homens de Plutarco.
Contemplei
o quadro algum tempo; e fiz tais reflexões acerca das evoluções históricas e
das grandezas humanas, que bem podia escrever um livro que faria a admiração
dos povos.
De
repente, duas luzes surgiram dos restos miserandos daquele par da Antigüidade;
duas luzes azuis, que subiram lentamente até o teto; o teto abriu-se e eu vi distintamente o firmamento estrelado.
As luzes subiram no espaço.
Força
desconhecida me levantou também do sofá, e eu acompanhei as luzes até meio caminho. Depois seguiram elas, e eu
fiquei no espaço, contemplando a cidade
iluminada, tranqüila e silenciosa. Fui transportado ao oceano, onde vi uma concha
à minha espera, uma verdadeira concha mitológica. Entrei nela e comecei a andar na direção do oeste.
Prossegui
esta amável peregrinação de um modo verdadeiramente mágico. De repente senti
que o meu nariz crescia desmesuradamente; admirei o sucesso, mas uma voz secreta
me dizia que os narizes são sujeitos a transformações inopinadas — razão pela
qual não me admirei quando o meu apêndice nasal assumiu sucessivamente a figura
de um chapéu, de um revólver e de uma jaboticaba. Voltei à cidade; e entrei nas
ruas espantado, porque as casas me pareciam todas voltadas com os alicerces
para cima, coisa sumamente contrária à lei das casas, que devem ter os alicerces embaixo. Todos me
apertavam a mão e perguntavam se eu conhecia a ilha das chuvas, e como eu
respondesse que não, fui levado à dita ilha que era a Praça da Constituição e
mais o seu jardim pomposamente iluminado.
Nesta
preocupação andei até que fui levado outra vez à casa onde se passara a tragédia
referida acima. A sala estava só; nem vestígio dos dois homens ilustres. O
lampião estava a expiar. Saí aterrado e desci as escadas até chegar à porta
onde achei a chave. Não dormi nessa noite; a madrugada veio surpreender-me com os olhos abertos, contemplando de memória o miserando caso da véspera.
onde achei a chave. Não dormi nessa noite; a madrugada veio surpreender-me com os olhos abertos, contemplando de memória o miserando caso da véspera.
Fui
almoçar ao Carceller.
Qual não
foi o meu espanto quando lá encontrei vivo e são aquele que eu supunha na
eternidade?
— Venha
cá, venha cá! disse ele. Por que saiu ontem de casa sem falar?
— Mas... o
senhor... pois César não o engoliu?
— Não.
Esperei a hora fatal, e apenas ela passou, dei gritos de alegria e quis acordá-lo;
mas o senhor dormia tão profundamente que achei melhor ir fazer o mesmo.
— Céus!
pois eu...
— Efeitos
do charuto que lhe dei. Teve belos sonhos, não?
— Todos,
não; sonhei que o gato o engolia...
— Ainda
não... Agradeço-lhe a companhia; agora esperarei o ano que vem. Quer almoçar?
Almocei
com o homem; no fim do almoço ofereceu-me ele um charuto, que eu recusei dizendo:
— Nada,
meu caro; vi coisas terríveis esta noite...
— Falta de
costume...
— Talvez.
Saí
triste. Procurava um homem original e achei um maluco. Os de juízo são todos copiados
uns dos outros. Consta-me até que aquele mesmo homem de Plutarco, freguês do
Carceller, curado por um hábil médico, está agora tão comum como os outros.
Acabou a originalidade com a maluquice. Tu quoque, Brute?
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Nota:
Publicado originalmente em Jornal das Famílias, de 5/1873. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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