
POSSÍVEL E IMPOSSÍVEL
É um lugar-comum em quase todos os poetas novéis maldizer do
destino e tecer elogios ao desânimo aos vinte anos de idade.
Resulta
daqui que as verdadeiras dores, caindo no descrédito comum, não podem achar
indulgência da parte de ninguém; e quando um poeta, na aurora da vida e nos
primeiros movimentos da inspiração, lembra-se de traduzir, em um hino de sua lira, uma dor que o consome ou um desânimo
que o abate, a multidão recebe o hino e o poeta com o mesmo sorriso de
incredulidade reservado para todos.
Será
entretanto impossível esta situação? A mocidade é o tempo das ilusões; a mocidade
dos poetas ainda mais. A imaginação mais viva dá maior corpo e maior luz aos
sonhos e às quimeras. Tanto mais vivas são, tanto maior é a dor de os ver
desvanecidos. Ora, figure-se um coração ardente, uma imaginação exaltada, um
espírito veemente, abrindo os olhos ao mundo fantástico das quimeras e dos sonhos.
Figure-se tudo isto, e veja-se se, ao primeiro desencanto, ao primeiro obstáculo, esta
criatura sensível não
deve manifestar as
suas dores e
os seus desprazeres na linguagem veemente e franca que
Deus lhe deu.
É certo
que são comuns os poetas desiludidos aos vinte anos; mas entre uns e outros há
a diferença do falso ao verdadeiro. Há nas dores sinceras um tom de verdade
singela e pura ingenuidade que se não confunde com os arrebiques mal aplicados
da poesia chorona por convenção.
Tinha
vinte e dois anos o herói desta narrativa. Era poeta desde os dezesseis. Era-o mesmo desde antes. Aos doze anos,
estando a passear, com a família, em uma
campina junto à cidade em que nascera, foi surpreendido pelo espetáculo que oferecia o lugar na hora do pôr-do-sol.
Era uma estrofe de poesia rústica, uma lauda das Geórgicas. O meu poeta,
deixando a família e os rapazes com quem ia, parou extático a contemplar o
espetáculo. Só muito adiante a família reparou na ausência do pequeno; voltaram
buscá-lo. Daí em diante o pequeno caminhou maquinalmente.
Isto foi
aos doze anos. Aos dezesseis metrificou a sua primeira inspiração. Eram umas
quadras singelas tomando por assunto uma cena da natureza: duas rolas que se
beijavam à margem de um riacho que atravessava o fundo da chácara em que
morava. À noite leu a sua obra à família; mas ninguém lha entendeu, à exceção
de um tio padre que sabia entremear as orações do breviário com os cantos de
Virgílio e Petrarca. O jovem poeta, descontente com o mau efeito da obra, quis
rasgá-la; mas o tio padre interveio a tempo e convidou o rapaz, não só a
conservar as suas primeiras estrofes, como ainda a metrificar outras, quando lhe
fosse de vez a inspiração.
Teófilo
chamava-se o nosso poeta. Era filho de uma das províncias do Sul. O pai, major
reformado, vivia da pensão que o Estado lhe dava e de alguns haveres que lhe
deixara um parente. Era quanto bastava para sustentar modicamente a família.
Esta era numerosa; constava da mulher, um filho, das duas filhas, um irmão
cego, dois sobrinhos órfãos e uma agregada. O irmão padre era pobre e mal
concorria com o estritamente necessário para a sua subsistência.
A educação
que Teófilo recebeu foi proporcionada aos meios de seus pais. Aprendeu
primeiras letras, rudimentos de latim e de francês. O latim e o francês aprendeu-os do tio padre. Findo isto, o pai
entrou a cogitar em que havia de empregar o rapaz e não achou. Então, como que
se arrependeu do que lhe havia feito aprender. O talento natural de Teófilo,
desenvolvido pelos primeiros estudos,
impunha-lhe a obrigação de destiná-lo a alguma carreira em que pudesse ser
aproveitado, estando na esfera que lhe competia. O bom do velho nada encontrava
neste sentido.
No caso de
morte do pai, quem sustentaria a família? Esta era a questão capital no espírito do pai de Teófilo.
Entretanto,
Teófilo, que tomara gosto às letras, ia aproveitando as lições do padre e
aumentava o cabedal da instrução. Desenvolveu-se no latim e no francês; estudou
o inglês e o italiano. Quis conhecer a história e disse-o ao tio.
— Aprende
primeiro geografia, respondeu-lhe o padre.
— É
preciso, não?
— Sem
dúvida. Como hás de tu saber do que houve na casa, sem conhecer antes das
disposições da casa?
— É
verdade.
E o rapaz
atirou-se ao estudo da geografia, e depois ao de história, e depois ao de
filosofia.
Não convém
à nossa história acompanhar os passos da vida de Teófilo, nem os de sua
família. Basta saber que na época em que esta narração começa Teófilo conta
vinte e dois anos; está sem pai; as irmãs e os primos estão casados; o tio padre
alcançou uma vigararia no Norte; resta-lhe a velha mãe e a agregada, moça de
dezoito anos. Vivem no Rio de Janeiro.
Teófilo
ensina história e geografia em alguns colégios particulares: é a sua fonte de
renda. Nas horas vagas faz versos que ninguém lê, porque ele os guarda cuidadosamente no fundo da gaveta.
Quando à
mesa do almoço D. Teresa (é o nome da mãe do poeta) pergunta a seu filho que
trabalho leva a fazer às vezes alta noite, Teófilo responde sorrindo:
— Estou
fazendo um ponto de admiração.
D. Teresa
não entende a metáfora, e seria de crer que a agregada também não entendesse,
se um sorriso sonso e inteligente não lhe roçasse nos lábios a esta resposta de Teófilo.
É que o
ponto de admiração que Teófilo preparava para a posteridade, guardando-lhe um
poeta incógnito, não era mistério para a moça. Seria ela a musa dos versos? Não
era. Teófilo não reparava no sorriso, e a mesma cena repetia-se dias depois.
Esta
agregada era órfã. Os pais morreram pobríssimos e deixaram a filha aos cuidados
da família do major, onde viveu no mais perfeito pé de igualdade com as filhas
deste. Recebera a mesma educação, tinha as mesmas qualidades e sentimentos, e
se era mais bonita que elas nem por isso se desvanecia, antes parecia afligir-se de uma superioridade que de
algum modo humilhava as suas protetoras.

Imagine-se
uma beleza suave e angélica, fazendo adivinhar a singeleza e a pureza do
coração através das linhas puras e suaves do rosto e do brilho sereno e sincero
dos olhos claros. Modesta no trajar, no gesto e nos sentimentos, Helena (tal
era o seu nome) era admirada por todos, invejada por muitos, ambicionada... por
ninguém.
Helena era
a filha de coração de D. Teresa. Era a última que lhe restava, depois o casamento das suas próprias. A boa senhora
estimava-a como estimava Teófilo; Helena, por seu lado, consagrava a D. Teresa
um amor de filha, além do reconhecimento
que lhe devia pelos benefícios que recebera dela. Teófilo amava Helena como irmã.
Eram uma só família.
Como disse
acima, Teófilo escrevia versos que guardava no cioso fundo da gaveta. Ninguém,
nem sua mãe, nem Helena, nem os amigos mais íntimos, mereciam a confiança do
poeta. Era um verdadeiro Harpagão, mas um Harpagão sublime, que levava a avareza intelectual ao
ponto de não confiar, nem dos mais insuspeitos, as impressões, as palpitações,
as inspirações, os sonhos, as quimeras, isto é, toda a sua alma.
Era
respeitável este sentimento. De que serve, muitas vezes, confiar à multidão o sentimento
que nos domina, a aspiração que nos impele, a comoção que nos abala? Teófilo
sentia-se puro no meio do silêncio e da obscuridade; parecia-lhe que, do
momento em que abrisse a todos o íntimo do seu coração, murchava-lhe a flor do
sentimento e a sua alma ficava menos pura.
Mas a que
vinha o sorriso de Helena? Aqui vai a explicação.
Havia uma
escrava que servia à família de D. Teresa. Todavia, Helena não consentia que os
arranjos de certa natureza estivessem a cargo dessa escrava, e tomava a si a
obrigação de cuidar deles. Assim, por exemplo, era Helena quem se encarregava
de pôr em ordem o gabinete de Teófilo. Foi em uma dessas ocasiões, estando
ausente o poeta, que Helena achou em cima de uma mesa um quarto de papel onde estavam escritas algumas
linhas paralelas e de tamanho desigual. São versos, pensou a moça. Picada de
curiosidade, pegou no papel e leu o que estava ali. Reconheceu a letra de
Teófilo, e, mais ainda, reconheceu a alma dele. A moça tinha os olhos úmidos
quando acabou de ler o papel; beijou-o e tornou a deixá-lo no mesmo lugar.
Quando o
poeta voltou, reparou no esquecimento em que caíra de não guardar os versos;
mas de modo algum suspeitou que os tivessem lido. Guardou-os onde guardava os
outros.
Helena,
uma vez descoberto o mistério, não parou aí. No dia seguinte cresceu-lhe a
curiosidade.
— É
impossível, pensava ela, que ele só tenha escrito estes versos; eu bem me lembro que ele fez alguns quando eu era
criança e os leu; lá há de haver outros.
E
deitou-se a procurar.
Tanto
procurou, que encontrou em uma das gavetas uma pequena pasta cheia de autógrafos.
Eram as inspirações do poeta traduzidas na linguagem de Petrarca, e ali
deixadas sem que ainda o poeta as polisse da primitiva aspereza.
A moça leu
e releu os versos; muitas vezes enxugou os olhos. Havia nas composições de
Teófilo um eco às secretas aspirações da alma dela. Era que a situação de ambos
era quase a mesma.
A moça,
quando acabou de ler todos aqueles escritos poéticos, restituiu-os à pasta e
colocou esta na gaveta de modo que não deixasse suspeitar a violação
inocente que acabava de cometer.
inocente que acabava de cometer.
Depois
saiu.
Teófilo
não reparou em nada.
Tal é a
explicação do riso da moça, que, depois de ouvir muitas vezes a resposta misteriosa
do poeta, chegou a compreender-lhe o alcance e ria-se à socapa, como quem dizia
que o ponto de admiração de que falava o moço não o era para ela.
Estavam as
coisas neste pé, quando uma tarde, ao voltar para casa, Teófilo encontrou no
caminho um amigo que se chegou a ele e perguntou-lhe:
— Tens que
fazer sábado?
— Não
muito; por quê?
— Então
dá-me a tua palavra de honra que aceitas um convite meu.
— Convite
para quê?
— Convite
para uma partida.
— Não
posso.
— Por quê?
— Porque
não quero ir só a divertimento algum...
— Mas...
— E minha
família não pode ir.
— Que
singularidade!
— É a
coisa mais que natural do mundo. O que é talvez singularidade é a franqueza com que te digo que minha família
não pode ir por lhe faltarem os meios de
ostentar o rigor que essas coisas requerem.
— Ora!
Teófilo
sorriu-se.
Depois
perguntou:
— Achas
esquisito?
— Acho. É
a tua última palavra?
— Bem.
E como o
outro se afastasse tristemente, Teófilo deu um passo para ele e perguntou-lhe
se esta escusa o magoava.
— Sim,
respondeu o amigo. Vou ser indiscreto. Eu e alguns outros imaginamos convidar-te
para esta partida a ver se te distraías e saías da tristeza em que andas. Era
um serviço de amigo. Convencionamos nada dizer-te, mas eu sou forçado a isto.
Não queres? Dou por finda a minha missão.

— Espera,
disse Teófilo.
O moço
deteve o passo.
Teófilo
refletiu um bocado e respondeu:
— Pois
sim, vou. Agradeço a vocês o cuidado que tomaram por mim.
— Muito
bem.
— Onde é a
partida?
— É em
casa do comendador N... Conheces?
—
Falamo-nos duas vezes.
— É quanto
basta. Além de que ele próprio insta para que tu vás. A partida é sábado.
— Até
sábado.
Separaram-se
os dois.
Teófilo
gastou uma noite inteira em construir as expressões com que devia dar parte à mãe de que ia à partida do comendador
N... Parecia-lhe crime ir divertir-se e deixar em casa aquelas duas pessoas que
estremecia.
D. Teresa,
quando soube da resolução arrancada a seu filho pelas instâncias dos amigos, respondeu-lhe com palavras de
verdadeira alegria.
— Ainda
bem, dizia ela, que vais sair da vida monótona em que andas. Que mocidade a
tua! Nem uma distração, nada! É preciso não estragar os melhores anos, Teófilo!
Quanto a
Helena, se Teófilo reparasse melhor, viria que atrás do sorriso de prazer que a
moça procurava desfolhar dos lábios vermelhos, havia outro sorriso de mágoa e de pesar. Seria mágoa e pesar de moça
por não ir tomar parte igualmente no sarau?
Chegou o
sábado aprazado.
Teófilo
tinha pouco que fazer nesse dia. Voltou para casa cedo, a fim de aproveitar, na
companhia da família, as horas que ia perder no baile do comendador.
À hora
marcada vestiu-se e saiu.
Em casa do
comendador estavam reunidas algumas entidades políticas, outras literárias,
outras elegantes, outras sem definição. Estes eram em maior número. Augusto, o
amigo que convidara Teófilo, apresentou-o à família do comendador e a algumas
das pessoas mais notáveis da reunião.
Teófilo
tinha um ar modesto e discreto que não podia ajudá-lo nas relações com os
outros. O grande talento da conversação é saber calar-se, diz A. Karr; Teófilo tinha
esse talento, mas em excesso; não podia fazer fortuna.
Era a
primeira vez que o poeta se achava em uma reunião de certa ordem. Tudo ali
contribuía para fasciná-lo. O esplendor das mulheres, a abundância das luzes e das flores, as condecorações, os nomes
ilustres que se pronunciava de cada lado, o bulício, o perfume, tudo se
acumulava para dar ao rapaz a idéia de um
mundo novo e imaginário.
mundo novo e imaginário.
Augusto,
como bom amigo, serviu a Teófilo de cicerone. Apresentou-o a algumas mulheres
em quem fizeram impressão o ar tímido e recatado do poeta. Augusto obrigou-o
mesmo a dançar uma quadrilha.
No fim de
uma hora, Augusto, Teófilo e alguns outros amigos estavam em uma sala contígua
ao salão do baile, mas perfeitamente deserta naquela ocasião.
— Como
achas o baile? perguntou um dos rapazes a Teófilo.
—
Esplêndido!
— Bem,
disse Augusto. Vamos agora à eleição. Nós somos os grandes eleitores da rainha
do baile. Faço de presidente com um voto na matéria. Digam lá vocês quem lhes
parece que seja a rainha.
— Mas
falta uma que só vem às onze horas, disse um.
— Quem?
— A
Sílvia.
— Venha ou
não, disse outro, eu já achei a rainha.
— Quem é?
— É a
Leocádia Martins.
— Não
digas isso, exclamaram alguns rapazes.
— Por quê?
— Porque é
uma tolice!
— Tolice!
— Até o
nome, disse Augusto. Ora vejam lá: a rainha Leocádia.
— São
gostos.
Augusto
voltou-se para Teófilo e perguntou-lhe:
— Mas
independente de não estar completo este Olimpo, quem é Juno na tua opinião?
— Não sei:
acho-as todas igualmente belas.
— Não
reparaste bem. Há algumas superiores.
— Será por
não reparar bem; mas até aqui pareceu-me que eram todas igualmente belas.
—
Esperemos pela Sílvia. Que horas são?
— Falta um
quarto para as onze.
—
Esperemos.
Os rapazes
conversaram sobre coisas diversas, apreciando minuciosamente as
belezas do baile, e apreciando não menos
minuciosamente alguns ridículos já observados durante a noite.
belezas do baile, e apreciando não menos
minuciosamente alguns ridículos já observados durante a noite.
Teófilo
não tomava grande parte na conversa. Estava absorto em reflexões. Recordava-lhe
sua mãe e sua irmã de coração, talvez acordadas àquela hora trabalhando à roda
da modesta mesa de família. Comparava aqueles esplendores do sarau com a
simplicidade e a nudez da casa em que deixara as duas criaturas cuja felicidade
buscava. Uma espécie de remorso doía-lhe na consciência e um peso lhe apertava
o coração.
De repente
estremeceu. Augusto reparou nisso e dirigiu-se ao poeta:
— Que
tens?
Teófilo
não respondeu. Tinha os olhos cravados na direção da sala de dança.
Todos
olharam para lá.
— É
Sílvia! exclamaram.
Com
efeito, uma moça alta acabava de entrar e atravessava o salão, com a majestade
com que Juno devia atravessar o Olimpo, nos tempos em que havia Olimpo e Juno.
— É a
rainha, exclamaram todos, menos o eleitor da rainha Leocádia.
Teófilo
também nada disse, mas tinha os olhos cravados na moça.
Quando
Sílvia, continuando no caminho, desapareceu por trás da parede divisória das
duas salas, Augusto voltou-se para o poeta e perguntou-lhe:
— É ou não
a rainha?
— É,
respondeu Teófilo.
Aqui começou
um cântico com estrofes e epodos em louvor da beleza de Sílvia.
Teófilo
voltou ao habitual silêncio.
Depois
saíram da sala.
Augusto
deu o braço a Teófilo.
— Queres
que te apresente a Sílvia? perguntou-lhe.
— Quero.
Os dois
moços dirigiram-se para o salão.
A
recém-chegada estava então sentada junto à dona da casa, senhora de trinta e seis
anos, ainda bela, mas dessa beleza do outono e do crepúsculo que ainda reúne
elementos para impressionar.
Uma turba
de adoradores tinha-se já reunido à roda de Sílvia. Ela respondia a todos com
volubilidade e graça inefável. De todos os lados da sala os olhos estavam
voltados para ela, e um observador sagaz podia apreciar a diferença da expressão
que ia em todos esses olhares. Da parte dos homens era, admiração em uns,
despeito de vencidos em outros; da parte das mulheres era certa vaidade mal
contida e certa inveja mal disfarçada.

Sílvia
sabia que era singularmente bela e tinha vaidade disso; era elegante por natureza e por educação; os homens a
requestavam e repetiam-lhe a cada momento aquilo que o espelho lhe dizia
durante o dia a cada hora.
Teófilo
parou à porta vendo a turba que cercava a moça.
— Iremos
depois, disse ele.
— Por quê?
— Tanta
gente...
— Não
sejas tolo. Anda cá.
Teófilo
deixou-se arrastar.
Augusto
aproximou-se do grupo.
A moça
apenas o viu fez-lhe um sinal com o olhar. O moço obedeceu aproximando-se.
— Não me
acha um ar de filósofo? disse ele sem largar o braço de Teófilo.
— Talvez,
disse ela.
— Sou um
peripatético que vê correr as horas, olhando para o céu, à espera do momento em
que deve aparecer Diana para vir empalidecer as estrelas...
— Deveras?
disse ela movendo voluptuosamente o leque.
Augusto
fez a apresentação de Teófilo.
Sílvia
inclinou ligeiramente a cabeça à saudação de Teófilo. Os seus olhos puros e grandes
fitaram-se no moço. Este não pôde desviar os seus.
A conversa
continuou animada pelos ditos joviais e de algum modo familiares de Augusto.
Teófilo tomava parte na conversação quanto lhe permitia o êxtase em que estava
diante da singular beleza de Sílvia.
Sílvia era
realmente bela no sentido amplo e elevado da palavra. Vinha à mente a idéia de
Cleópatra, era um duplo efeito que o aspecto da moça produzira no espírito e
nos sentidos. Quem amasse aquela moça desejaria que, como a Antônio, fosse
trasladado para a campa o leito nupcial da vida; ela devia inspirar uma como
que voluptuosidade ainda depois da morte.
Devo
dizer, em honra de Teófilo, que a impressão produzida no moço não tinha esse
caráter. O espírito do poeta só via e sentia o que havia de puro e adorável na
mulher.
Sílvia era
um tanto pálida, não dessa fria palidez de cera que não comove. Tinha a testa
arredondada e polida, os olhos negros, profundos, rasgados, desferindo um olhar
penetrante; um nariz ligeiramente aquilino, servindo de base a duas sobrancelhas arcadas, bastas e negras; a boca,
graciosa e pequena, abria-se em dois lábios demasiadamente rosados, úmidos,
voluptuosos; um pescoço perfeitamente contornado ligava a cabeça aos ombros e
fazia descer o olhar fascinado para o colo e para as espáduas, nus até onde
consentiam a vaidade e o decoro. Sobre aquele colo ideal fulgia uma pequena
cruz de brilhantes em completa oscilação pelo arfar do seio.
Sílvia
vestia com simplicidade e gosto, mas via-se nos maiores enfeites, como
nos menores gestos, a consciência da beleza
que procurava realçar o que recebeu do céu com o auxílio do que se inventou na
terra.
nos menores gestos, a consciência da beleza
que procurava realçar o que recebeu do céu com o auxílio do que se inventou na
terra.
Teófilo
não podia desviar os olhos de Sílvia. O espírito do poeta sentia-se tomado de
uma ebriedade celeste diante daquela beleza fascinante. Era o filtro mágico do amor
que se lhe entornava nos olhos.
Até então
o poeta conhecera a beleza pelo que a imaginação lhe figurava. Esta beleza
estava ali, diante dele, palpável, visível, deslumbrante.
Sílvia conheceu
o efeito que causara em Teófilo, ou antes supôs que ele não podia fugir à lei
comum dos outros homens que a cercavam. Fitou um olhar fascinante no poeta, e
depois retirou os olhos para dirigir a palavra à dona da casa.
Augusto
esperou que a moça acabasse de falar, para interpor uma petição. Era a petição
de ser contemplado entre os cavalheiros que deviam merecer a honra de acompanhá-la
à dança. Sílvia deu-lhe uma quadrilha. Augusto intercedeu por Teófilo, e
Teófilo obteve uma valsa.
Depois os
dois moços separaram-se.
— É bela,
não? perguntou ao poeta.
—
Esplêndida! murmurou este.
Teófilo
sentiu-se outro. Parecia-lhe que estava próximo a entrar na estância da felicidade.
Era simples: amava. O amor nasceu-lhe de súbito, como acontece quando é verdadeiro.
Quando
chegou a vez da sua valsa, o nosso poeta estremeceu. Dirigiu-se para a moça.
Sentia-se estranhamente comovido, e por duas vezes esteve para recuar e sair.
Enfim Sílvia deu com os olhos no poeta, e era impossível escapar.
Sílvia era
valsista consumada. Quando Teófilo sentiu palpitar junto a si aquele seio, e respirou o ambiente estranho que
cercava aquela singular criatura, o coração palpitou-lhe mais forte;
parecia-lhe um sonho. Que valsa foi aquela? Não foi valsa, foi delírio, delírio
de poeta, delírio de fantasia escaldada.
Augusto
acompanhou o par com os olhos e reparou na mudança que se operava em Teófilo. Quando pôde conversar com este
interrogou-o acerca da impressão que lhe causava Sílvia.
— Aposto
que estás apaixonado?
Teófilo olhou
para ele silenciosamente e respondeu:
— Não!
Augusto
insistiu.
— Queres
conhecer o pai? É o conselheiro C...
Augusto
apresentou Teófilo ao pai de Sílvia. Uma conversa de poucos minutos decidiu as
simpatias do conselheiro pelo poeta. Teófilo saíra dos seus hábitos de extrema reserva e mostrou-se tão discreto
quanto agradável. O conselheiro ofereceu os seus serviços a Teófilo.
Esta noite
fez uma revolução na vida e no espírito de Teófilo. O poeta encontrara o seu
ideal. Mas por que foi achá-lo tão alto? Esta pergunta foi feita ao poeta
quando se achou a sós no gabinete de trabalho.
Só então medira a distância que existia entre ele e Sílvia. Se o amor, a
natureza, a lei divina, podiam aproximá-los, o preconceito social e a lei
humana separavam-nos.
quando se achou a sós no gabinete de trabalho.
Só então medira a distância que existia entre ele e Sílvia. Se o amor, a
natureza, a lei divina, podiam aproximá-los, o preconceito social e a lei
humana separavam-nos.
O poeta
dormiu pouco e tarde. Antes, porém, de procurar o leito, traduziu na linguagem das musas as impressões de que
estava possuído. Foi uma das suas poesias mais veementes. Era a um tempo um
cântico e uma elegia. No cântico dizia como a encontrara e amara a beleza; na
elegia chorava o infortúnio de tê-la visto tão elevada e ser impossível subir
até ela.
—
Impossível? pensava Teófilo na manhã seguinte relendo os versos. Não. Basta que
ela me ame para que tudo desapareça. Que nos importará o resto?
Teófilo
freqüentou a casa do conselheiro. Augusto, a quem Teófilo fez apenas meia
confidência, servia de cicerone ao tímido amador.
Sílvia,
com esse tato delicado das mulheres, reconheceu que era amada pelo poeta, e,
longe de procurar dissuadi-lo, animou-o. Esta animação levou ao espírito
do poeta a esperança de ser amado.
Todavia os
meios empregados por Sílvia não comprometiam nada no futuro. Podiam dar
esperanças, não podiam obrigar. Teófilo não reconheceu essa diferença;
amava; tomava o mais insignificante olhar como um jubileu de venturas.
Vivia dela, por ela, para ela.
Um dia
Teófilo sentiu que não podia mais conter no coração o segredo do seu amor. Na
amizade confia-se um segredo, diz La Bruyère, mas no amor o segredo escapa. É o
que sucedeu a Teófilo.
Achava-se
a sós com Sílvia. O conselheiro estava no gabinete em consulta de política, não
de política militante, mas de política observadora; entendia o conselheiro que
a situação caminhava mal; o amigo entendia que não. Sabe-se como estas
discussões consomem tempo. Teófilo estava seguro de não ser perturbado.
Sílvia
cantava ao piano a cavatina do 1º ato do Trovador. Teófilo a dois passos ouvia
enlevado aquelas notas que Sílvia reproduzia como saídas da alma. Tudo lhe esquecia: receios, temores, desconfianças
do mundo. Parecia-lhe que era o senhor daquela mulher e daquele coração, e
deixava-se embalar na doce ilusão da sua fantasia e do seu amor.
Sílvia,
quando acabou, voltou o rosto e deu com os olhos em Teófilo. Depois, tomando de
sobre o piano o leque de penas que ali depusera, levantou-se e dirigiu-se para
o sofá onde estava Teófilo.
— Gostou?
perguntou ela.
— Muito,
disse o poeta adoçando a voz como se respondesse a um anjo.
Sílvia
sentou-se em uma cadeira que ficava ao pé do sofá.
Teófilo
fitou os olhos em Sílvia.
Tudo ali
conspirava para a declaração do poeta. Estava diante de uma mulher esplêndida
de beleza, de elegância e de graça. A luz, nem muita nem pouca, era suficiente
para dar ao quadro um fundo vago e ideal.
Sílvia
suportou o olhar amoroso do moço. Depois, abrindo os olhos em um sorriso divino,
pronunciou estas palavras com um tom de curiosidade infantil:

— Por que
me olha assim?
—
Porque... disse o poeta.
E
calou-se.
— Por quê?
disse a moça.
—
Porque...; ah! perdão!... não poderei guardar este segredo... Eu... amo-a...
Dizendo
estas palavras Teófilo levantou-se e esperou de pé a resposta de Sílvia.
Sílvia
baixou os olhos, deu uma volta ao leque, bateu com ele sobre o joelho, e olhou
silenciosa para Teófilo.
O moço
estava embaraçado. Que fazer diante daquele silêncio? Entretanto a sua felicidade
dependia de uma palavra de afirmação da moça. Ela persistia calada. Enfim fez
um esforço e murmurou:
—
Diga-me...
— Não lhe
digo nada, disse Sílvia levantando-se.
— Por quê?
— Porque...
não sei.
— Ah!
Esta
simples exclamação foi surda, e Sílvia mal pôde percebê-la.
A resposta
da moça era dúbia. Podia afirmar, podia negar. Teófilo reparou nisto e sentiu
um raio de esperança. Sílvia tinha dado alguns passos até a janela. Teófilo ia
à janela quando a moça voltava.
— Prefiro
a verdade, cruel embora, à dúvida, disse ele. Se não me pode amar é melhor que
o diga francamente. Entretanto atenda bem para o estado do meu coração: é amor
que eu sinto, amor puro, ardente, elevado. Sinto...
— Basta,
disse Sílvia; serei franca: não o amo!
— Ah!
Teófilo
encostou-se a um móvel.
— Não o
amo. Talvez viesse a amá-lo. Mas como? Mal o conheço... Demais, este amor
levaria a algum ato definitivo, e eu não estou disposta a casar-me...
Dizendo
estas palavras, a moça foi sentar-se no sofá.
Teófilo
estava atônito. Não eram as palavras de Sílvia que lhe pareceram estranhas; a
moça podia não amá-lo. Mas o que lhe parecia estranho era o tom frio e
indiferente com que elas foram ditas. Nem uma comoção, nem um pesar. E havia
debaixo daquela frieza um desdém mal encoberto, talvez destinado a cortar de
uma vez as esperanças do poeta.
A este
curto diálogo dos dois seguiu-se um profundo silêncio, mal interrompido pelo
leve ruído do leque com que Sílvia se abanava indolentemente.
Ouviu-se a
voz do conselheiro que despedia o aliado político depois de assentar
com ele em que a situação política não podia
ser pior.
com ele em que a situação política não podia
ser pior.
O
conselheiro apareceu na sala pouco depois.
A presença
do conselheiro era necessária na situação esquerda em que se achavam os dois.
Sílvia levantou-se e foi ao pai, com um sorriso.
— Então,
meu pai, já acabou as suas práticas de política?
— Já,
já... E tu? Oh! não cuidei ter o prazer de encontrá-lo ainda aqui... sr. Teófilo...
Teófilo,
que se achava de pé, adiantou-se:
— É
verdade, ainda aqui estava.
— Ora bem,
há de tomar chá conosco.
—
Desculpe, não posso... Já me ia embora...
— Já? Mas
se não é negócio importante. Não tem mulher ciumenta...
— Tenho
mãe, sr. conselheiro, mãe e irmã... ciumentas ambas... que me amam e a quem
correspondo a estima e o amor que me têm.
Sílvia
sorriu-se, batendo com o cabo do leque nos lábios...
Teófilo
não reparou neste sorriso.
— Enfim,
disse o conselheiro, se é assim, não quero ser a causa de dano algum a essas
senhoras... Mas, até amanhã, não?
— Até...
amanhã.
Teófilo
apertou a mão ao conselheiro. Depois estendeu a sua a Sílvia, que lhe deu apenas
as pontas dos dedos fazendo um leve sinal de cabeça... Mas quando retirou os
seus dedos, Sílvia não pôde deixar de estremecer. Sentira que a mão de Teófilo
estava fria de gelo.
O caminho
entre a casa de Sílvia e a de Teófilo era longo. Teófilo venceu esse espaço
absorto em amargos e dolorosos pensamentos. Palpitava-lhe o coração de dor, e,
no meio das torturas por que passava então, tinha grande parte do seu amor-próprio
ofendido.
Ao
aproximar-se de casa viu um vulto à janela. Era Helena. O poeta não se admirou.
Helena esperava-o sempre até ele chegar. Teófilo, que demorava sempre em trocar
algumas palavras com a moça, nessa noite mal a cumprimentou, retirando-se logo
para o quarto.
Helena
estranhou isto, mas nada disse. Ficou na sala algum tempo e depois retirou-se para o seu quarto. Ao passar pela
porta do quarto de Teófilo, Helena ouviu o som abafado de uns soluços. Parou e
colou o ouvido à porta. A moça não se pôde conter: sentiu caírem-lhe as
lágrimas e retirou-se apressadamente.
Com
efeito, Teófilo apenas se viu só soltou livremente as suas lágrimas. Eram naturais
estas lágrimas em uma natureza tão delicada e tão sensível. As lágrimas não são somente o apanágio da fraqueza, são
também o sintoma da elevação e da
delicadeza dos sentimentos. Teófilo chorava, como cantava: era uma maneira de
exprimir as suas comoções.

Ora, estas
comoções naquela ocasião eram das mais poderosas que podia sofrer o coração do
poeta. Levara a construir um castelo de quimeras para vê-lo decaído com algumas
palavras frias e desdenhosas de uma mulher. Reunira naquele amor todas as
forças vivas da sua mocidade e do seu coração; e quando na plena confiança do
amor em que ardia julgou receber a sentença da felicidade, ouvira pura e
simplesmente a sentença de morte.
Mais
ainda. Não era só o amor que ficara burlado: era o objeto do seu amor que se
desonrava a seus olhos. Em sua fantasia de poeta e sua ignorância das coisas do
mundo tinha imaginado na mulher que amava uma alma tão pura como era pura a beleza física. Até esta ilusão se
desvanecia. Aquela perfeição física era uma vulgaridade moral.
Quando se
recebe uma dupla desilusão desta ordem, os olhos não têm vergonha de chorar sobre os sonhos desvanecidos. Os
olhos do poeta choravam loucamente.
Mas a
primeira explosão passou. Veio não a calma, mas o cansaço. Teófilo reuniu algumas
idéias e pôde medir o horror da situação. De tal modo a viu que chegou a
culpar-se de tudo o que ocorrera.
— Não vi
eu, dizia ele consigo, que distância imensa me separava daquela mulher? Quem me
levou a levantar olhos para tão alto? Era bem pensada a minha esquivança de
outrora, e se eu nunca aceitasse o convite que me abriu as portas do mundo
estaria agora tão calmo e tão tranqüilo como dantes. Volto agora com uma ilusão
de menos e um remorso de mais. Eu devia ver desde logo que se ela me abria as portas de sua sala, não
estava obrigada a abrir-me as do seu
coração.
Teófilo
resumiu estes sentimentos e estas reflexões em uma elegia que escreveu nessa
mesma noite; soluço poético, solto no meio do devaneio da dor e na situação sombria do seu coração.
No dia
seguinte a velha Teresa reparou no ar triste do filho e nos olhos pisados com
que ele se levantou. Teófilo respondeu às solicitações da mãe, que esta última
circunstância provinha de se ter deitado tarde; e quanto à tristeza, disse que nunca se achara de ânimo mais alegre.
Dizendo
isto procurou sorrir.
D. Teresa
acreditou.
Helena
apareceu então apresentando o mesmo aspecto. As perguntas da mãe de Teófilo
tiveram a mesma resposta.
Apesar de
estranhar isto, D. Teresa não deu ao caso maior importância.
O almoço
foi silencioso e triste.
Passaram-se
alguns dias.
Teófilo
continuou triste do mesmo modo, mas como não aparecia em casa senão tarde, não
tinha ocasião de ser observado. As circunstâncias de Helena eram piores.
Helena no
dia seguinte à noite em que ouvira soluçar Teófilo foi ao gabinete deste apenas
o viu sair. Aí deu com os versos escritos na véspera.
Não eram
os primeiros em que o nome de Sílvia aparecia a Helena. Já em poesias anteriores
o mesmo nome deixava-lhe perceber no coração do poeta um amor
desconhecido. A linguagem da última elegia deu
a conhecer a Helena a situação do coração de Teófilo.
desconhecido. A linguagem da última elegia deu
a conhecer a Helena a situação do coração de Teófilo.
Helena
deixou o gabinete enxugando as lágrimas.
Que sentia
esta menina pelo poeta? Era simples amor de irmã ou amor de mulher? Não era o
primeiro, e não se podia absolutamente dizer que fosse o segundo. O amor, dizem
os moralistas, nasce de súbito. O que Helena tinha por Teófilo não era um
sentimento de caráter semelhante.
Educados
juntos, chegaram ambos à idade da adolescência e da mocidade sem que ela
sentisse por ele mais do que uma simples afeição fraternal.
Essa
afeição mudou de natureza com o andar dos tempos e a mudança das circunstâncias.
Quando o
círculo das afeições de Helena se foi estreitando com a morte e a separação, a
moça concentrava os sentimentos do seu coração até chegar a não ter para estima
mais do que as duas criaturas com que a achamos agora: a velha Teresa e
Teófilo.
Concorreu
outra circunstância para a mudança dos sentimentos de Helena relativamente ao
filho de D. Teresa. Helena, no desenvolvimento completo da sua mocidade, não
amara ainda. Ela olhou para o futuro e em redor de si. Não viu nenhum coração
disposto a receber as primícias do seu.
Um dia,
sem reparar, sentiu que se tivesse de escolher entre todos os homens um marido,
era Teófilo aquele a quem daria a palma. A inteligência do moço, as suas
qualidades, a estima que lhe tinha, tudo se reunia para trazê-lo à memória de
Helena.
Desde
então os seus pensamentos se voltaram para ele e uma revolução operou-se no
espírito da moça. O que sentia era então mais terno que o afeto de irmã e menos
ardente que o amor de mulher. Se este amor não era o resultado de uma simpatia
íntima e súbita, tinha ao menos a qualidade de ter por fundamento a estima e o
respeito, dois sentimentos bastantes para dar a felicidade a um casal.
Tal é a
explicação da curiosidade de Helena relativamente às obras poéticas de Teófilo. A pobre moça compreendia que ali
estava a alma do seu escolhido. Um dia, porém, não viu só a alma; viu a alma e
viu uma página escrita da vida do poeta, página cor-de-rosa ao princípio, negra
e sombria no fim.
Esta
revelação trouxe o luto ao espírito de Helena.
Era outra
que ele amava. Se essa ao menos correspondesse ao amor de Teófilo, talvez a moça chorando o destino não
amaldiçoasse aquela que concorria com ela na escolha do mesmo homem. Mas não
era assim. A amada do poeta não correspondia aos afetos dele.
D. Teresa
notou a tristeza de ambos, como dissemos acima. Supôs ao princípio simples
coincidência; mas afinal caiu-lhe uma suspeita no espírito. Talvez se amem de
muito, talvez se
arrufassem de pouco. Quis
observar, mas nada conseguiu saber. Lembrou-lhe interrogar diretamente Helena;
mas essa resolução não passou ao
princípio de uma simples idéia. A questão era delicada.
Entretanto,
uma noite em que Teófilo se achava em casa e procurava no estudo uma hora de
distração, batem palmas à porta.
Era
Augusto.

Teófilo
recebeu-o no gabinete.
— Que me
queres? perguntou ele ao amigo.
—
Ouvem-nos? disse Augusto acendendo um charuto.
— Não.
— Bem.
— Que me
queres?
— Sei
tudo.
— O quê?
— Sei que
amaste Sílvia, sei que lho disseste, sei que ela recusou o afeto do teu coração.
Teófilo
empalideceu.
— Por que
empalideces? perguntou Augusto.
— Por dois
motivos: o primeiro é a recordação desse amor infeliz; o segundo é que esta
derrota é para mim uma vergonha tal que eu quisera encobrir até aos meus mais
íntimos amigos.
— Aceito o
primeiro; quanto ao segundo...
— O
segundo é igualmente aceitável.
— Não é.
Seria a primeira derrota, mesmo com Sílvia?
— Creio
que não é a primeira; mas não é derrota propriamente o que me dói e me
envergonha; é que ela mostra o meu erro e a minha loucura em ter procurado
vitória em terreno tão alto e tão difícil.
— Não
digas isso...
— Por que
não? Desejei o impossível; tive a paga do meu arrojo. Mas quem te disse tudo?
Foi ela?
— Foi.
— Ah!
— Digo-to
francamente para que avalies a namoradeira em cujos olhos puseste a estrela das
tuas ambições amorosas. Contou-me ela ontem tudo o que se passou, isto entre um
movimento de leque e uma escala do piano. Não te vingas isso?
— Não.
Embora não aceitasse o meu coração, eu desejara que ela ficasse sendo a mulher
nobre e elevada que eu sonhei nas minhas noites de febre.
— Vim
dizer-to para que mais depressa esquecesses aquela mulher. Se o teu amor
ficasse ofendido, era mau para ti e para nós: sucumbias. Mas se deste naufrágio
só o teu amor-próprio houver sofrido, é certo que viverás.
— É a
primeira hipótese: eu já não vivo.
— Tenho a
esperança de que há de ser a segunda.
— Desejos
de amigo! disse Teófilo suspirando.
— Adeus,
disse Augusto levantando-se e abraçando o poeta.
O poeta
acompanhou Augusto até a porta.
Quando
voltou para o quarto, Teófilo encontrou Helena na sala de jantar.
Ao
princípio não reparou, mas depois viu que a moça tinha os olhos rasos de lágrimas.
— Que tem,
Helena? perguntou ele.
— Nada:
dor de cabeça.
Teófilo
olhou silenciosamente para a moça e retirou-se.
Causou-lhe
estranheza aquilo. Que motivos terão aquelas lágrimas? Perguntou ele consigo.
Procurou,
e a sua primeira idéia foi que Helena amasse Augusto. Qualquer que fosse a
singularidade desta explicação, todavia ela pareceu a Teófilo mais plausível do
que a de que ele fosse o amado daquele jovem coração.
Dois dias
passaram-se depois disto. No fim desses dois dias D. Teresa foi a primeira a
romper o silêncio e a perguntar afoitamente a Teófilo a causa da tristeza de
ambos.
Apanhado
de surpresa, Teófilo não teve que responder. Não só esta pergunta recordou-lhe
diretamente o triste amor por Sílvia, como aproximava em uma só causa a tristeza dele e a tristeza de Helena.
Esta
última circunstância calou-lhe no espírito.
— Eu nada
tenho, disse ele depois de algum tempo. Quanto a Helena, não sei.
— Amam-se,
talvez? perguntou D. Teresa.
E como Teófilo
não respondesse, a boa velha acrescentou:
— Pois é o
que podiam fazer de melhor. Eis o que me daria a mais completa felicidade.
Teófilo
retirou-se pensativo.
Seria ele
amado por Helena? Teria ele roçado cem vezes aquele amor ingênuo, respeitoso,
sem dar por ele? Sofreria ela a dor que ele sentiu quando a indiferença de
Sílvia cortou em flor as suas esperanças?
Estas
perguntas foram feitas por Teófilo a si próprio sem que ele pudesse dar-lhes
uma resposta completa.
Uma
circunstância trouxe toda a luz à situação. Tendo saído de manhã voltou
imediatamente em busca de um livro que esquecera e que lhe era necessário à lição
que ia dar naquele dia.
Entrou sem
ser sentido e foi ao gabinete. Ali estava Helena, diante da porta aberta, tendo
na mão uma folha de papel.
Eram
versos.
Helena
quando o sentiu ficou sem saber o que
fazia. Olhou para ele e conservou na mão o papel.
Tinha o
semblante triste, mas procurou alegrá-lo com um sorriso. Não pôde. Era um
sorriso que a traiu.
Teófilo
encaminhou-se para ali e pegou na mão de Helena.
— Amas-me,
Helena?
A moça
abaixou os olhos.
Teófilo
repetiu a pergunta.
— Sim;
murmurou a moça.
— Quer ser
minha mulher?
Helena
fugiu sem dizer palavra.
Teófilo
viu-a desaparecer e disse consigo:
— Sei o
que são estes sofrimentos. Padeci; não quero que ela padeça. Serei dela. Este
amor curar-me-á.
No dia
seguinte Augusto recebia esta carta de Teófilo:
Meu amigo.
— Fui buscar o impossível, tendo o possível à mão. Vê como andava errado.
Queres ser meu padrinho de casamento? Helena vai ser minha mulher.
---
Nota:
Texto-fonte: Publicado
originalmente em Jornal das
Famílias, 1867. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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