
ONDA
Na pia chamara-se Aurora; Onda era o nome que lhe deram nos salões.
Por quê? A
culpa era dela e de Shakespeare; dela, que o mereceu; de Shakespeare, que o
aplicou à instabilidade dos corações femininos.
Tinha um
coração capaz de abrigar seiscentos cavaleiros em dia de temporal, e até sem
temporal. Batessem-lhe à porta, que a hospitaleira castelã abria sem maior
indagação. Dava ao peregrino água para os pés, pão alvo e vinho puro para o
estômago, leito macio e aquecido para o corpo. Mas, depois disto, fechava-se
muito bem fechada em sua alcova, e, rezando a Deus pela paz dos viajantes
alojados, dormia tranqüila em seu leito solitário.
De tais
facilidades em dar asilo a uns, mesmo quando outros ainda estavam sob o teto
hospitaleiro, é que lhe nasceu a denominação que serve de título a estas páginas.
Pérfida
como a onda, disse um dia um dos enganados, vendo-a passar em um carro e indo parar à porta do Wallerstein.
O nome
pegou.
Ora,
vejamos, em minha imparcialidade de historiador, se esta denominação lhe quadrava.
Coitadinha!
não precisava muito tempo para ler-lhe nos olhos, adivinhar-lhe os gestos, traduzir-lhe nos sorrisos, a
vivacidade, a dissimulação, a afabilidade que constituem o tipo da moça
namoradeira.
Via-se que
ela conhecia a fundo esta arte de atrair e prender os corações e as vontades
com um simples volver de olhos, um simples meneio de leque.
Dera-lhe
Deus uma beleza que era a sua base de operações. Não é que a beleza seja
absolutamente necessária. Sei de alguém que reconheceu uma mulher cujas feições
examinadas, uma por uma, não tinham traço algum de beleza; mas que sabia mover
uns olhos que Deus lhe deu e de que ela, seja dito em honra da verdade, fazia
um mau uso. Tão mau, que este alguém em questão, depois de se apaixonar por eles, achou-se um dia sem
coração e sem futuro...
Se era
assim com aquela, o que não seria com esta, que, além de um par de olhos vivíssimos, formosíssimos,
eloqüentíssimos, possuía as verdadeiras formas de beleza feminina?
Onda sabia
que tinha os olhos bonitos: volvia-os a cada momento; sabia que possuía mãos de
princesa: concertava os cabelos de minuto a minuto; sabia que possuía uns
dentes e uma boca divinos: sorria a propósito de cada coisa; sabia que os seus
pés eram dos mais perfeitos: procurava não sujar o vestido quando
descia do carro.
descia do carro.
De modo
que, amigos ou estranhos, pobres ou ricos, poetas ou prosas, velhos ou moços,
todas as criaturas que pertenciam ao sexo do autor e do leitor destas linhas, ficavam fascinados, presos,
apaixonados.
Ela
cuidava extremamente de pôr em relevo a sua beleza mediante os inventos da
arte. Era assinante dos melhores jornais de modas e freguesa das melhores casas
de novidades elegantes. Distinga-se porém: a minha heroína era casquilha para ser namoradeira, o que é alguma coisa
diferente da casquilha por casquilhice. Se me é lícito aplicar uma fórmula
séria, direi que há entre as duas espécies a diferença que vai do princípio de
arte pela arte ao princípio de arte pela moral.
Onda sabia
que o espírito do homem deixa-se prender facilmente pelos atrativos artificiais
juntos aos atrativos naturais, e não deixava de aumentar pela cifra da elegância
a unidade da beleza com que a natureza a dotara.
Acrescente-se
a isto, que Onda possuía um gosto apuradíssimo. Mesmo na escolha dos mais
simples trajares revelava-se nela a discrição, o acerto, a boa mão, para usar
de uma expressão popular.
Ora, não
se resiste facilmente a quem reúne tantos predicados; e se a simples
presença
bastava para prender, o que não era quando aquela boca se abria, como uma taça
de mel do Himeto, e destilava, não digo palavras, gotas de pura ambrosia do
céu?
Assim que,
naquelas guerras de amor, a presença era o primeiro ataque, a palavra a batalha
campal. Ninguém saía delas são e salvo; saía-se ferido, e, o que é mais, sem
esperanças de chegar a coronel. O tempo dava alguma confiança aos que se enamoravam dela em
virtude de uma reflexão que lhes parecia justa; e era que nem toda a vida Onda
faria de sua beleza uma simples rede
para passatempo. Esta esperança fortificava as coragens e inspirava as constâncias. O próprio tempo os ia
desenganando até a hora em que se deu o episódio que vou narrar em poucas
palavras.
No momento
em que Onda, completando vinte e cinco anos, pareceu chegar à idade razoável de
passar do capricho ao amor sério e digno, apareceu na intimidade da família
desta misteriosa donzela um rapaz, que meses antes chegara de uma longa viagem à Europa à custa
de um tio desembargador.
Antes de
pisar o reino da nova Diana já Ernesto (é o nome do herói) sabia com quem ia
lidar. Meia dúzia de logrados tiveram cuidado de instruí-lo da alcunha e das
qualidades da moça.
Ernesto,
depois de ouvir as narrações e as imprecações de todos, puxou uma fumaça, e
brandindo um chicotinho de junco, olhou para os seis e disse-lhes:
— Não
quero argüi-los de fraqueza ou inépcia; mas façamos uma aposta: o que perdem se
eu conseguir domar essa gentil pantera?
— Ora!
exclamaram em coro os seis ministros decaídos.
— Isso não
é responder.
Um dos
interlocutores respondeu:
— Mas é
impossível domá-la! disse um que era poeta.
—
Impossível? exclamou Ernesto. Meus amigos, se Penélope não tivesse

pressentimento
de que, mais tarde ou mais cedo, Ulisses lhe apareceria em casa, não fiaria tanto, e em vez de sustentar a
tantos pretendentes, sustentaria apenas um, o que era mais acertado, no duplo
ponto de vista da economia e do coração. Onda, como lhe chamam, espera sem dúvida
Ulisses que sou eu, e os vai iludindo
até que eu
apareça para entrar na posse do direito que a natureza me conferiu. Esta é a
verdade...
Cada qual
dos seis pretendentes desenganados tinha consciência de ter feito os últimos
esforços, consciência em que entrava um tanto de fatuidade; mas tinham isso, e
foi por isso que, quando Ernesto acabou de falar, responderam todos com a mais estrondosa gargalhada.
A
fatuidade falara em primeiro lugar no espírito de Ernesto; a gargalhada ofendeu-lhe
o amor-próprio; insistiu, já sério, ou antes com aquele riso especial que em
nossa língua se exprime tão bem pelo riso amarelo; depois de dez minutos de
renhida discussão, assentou-se que, no caso de vitória, Ernesto teria direito
às seguintes prendas:
Um jantar
no Hotel de Europa.
Um cavalo.
Um mês de
verão em Petrópolis.
Uma
assinatura do Teatro Lírico.
Um
milheiro de charutos de Havana.
Saldar
todos os credores.
Um
manuscrito de Voltaire.
Esta
última aposta era do poeta que se gabava de possuir muitos manuscritos de homens célebres, e que, declarando o que
perderia, teve cuidado de fazer observar que perderia mais que todos.
No caso em
que Ernesto fosse derrotado pagaria aos outros, coletivamente, um lauto banquete.
Nisto despediram-se.
Ernesto
estava compenetrado da situação. Perder era correr-se de vergonha, sobretudo
depois do tom em que falara e da confiança que mostrava ter em si. Outras razões aduzia ainda: ganhar era, não só
envergonhar a tantos, como ainda entrar de cabeça alta na posse de uma mulher
formosa e de uma fortuna regular.
Já por
esta reflexão fica o leitor instruído de que Ernesto não era homem de dar uma
polegada de si ao ideal. Uns através dos olhos da mulher queriam ver a alma;
Ernesto enxergou simplesmente uma bolsa recheada. Este modo de traficar a
própria pessoa não é nenhuma descoberta, nem eu me dou por Arquimedes. Aponto simplesmente mais este traço do nosso
herói.
Ora, o
nosso herói, pesadas as coisas, ficou determinado a entrar em combate.
"Qu'allait-il faire
dans cette galère?" perguntaria Geronte.
O caso é
que foi.
A primeira
coisa que Ernesto resolveu no seu espírito foi não ceder um palmo ao
encanto de Onda. Era o melhor meio para operar
melhor. Estando a frio podia calcular, e calcular era, pelo menos, criar as
mesmas vantagens da inimiga.
encanto de Onda. Era o melhor meio para operar
melhor. Estando a frio podia calcular, e calcular era, pelo menos, criar as
mesmas vantagens da inimiga.
Não nos
demoremos, leitor, com as primeiras cenas deste namoro, que nos não adiantam
nada. Saltemos uns vinte dias e cheguemos a uma tarde de junho em que Onda, em
companhia de duas amigas, espera a visita de Ernesto.
Depois de
certa espera anuncia-se a chegada do herói. Onda recebe-o com o melhor dos seus
sorrisos.
Ernesto,
contente de si, cumprimentou o mais graciosamente que podia a bela e as amigas,
e depois, com uma graça que procurava ser natural, assentou-se na cadeira que
Onda lhe indicara com um gesto.
Até este
dia Ernesto tinha procedido muito elementarmente: fazia um louvor à beleza de
Onda entre dois suspiros que magoavam à força de parecerem magoados. Era, na opinião de Ernesto, o
primeiro meio, o mais natural, o mais próprio. O que é certo é que, depois de
alguns dias, Onda lhe parecera decidida a aceitá-lo. Mas não seria fingimento?
dizia consigo Ernesto; e concluindo pela afirmativa, procurou empregar todas as
suas armas, de maneira que não só pudesse aferir a sinceridade dos sentimentos
da moça, mas ainda inspirar-lhe sentimentos verdadeiramente sinceros e
profundos.
Ora, eis
aqui como ele estreou a conversa:
— Já sei
que está com saudades de mim?
— Ande lá,
respondeu Onda, ainda bem que é o primeiro a fazer o capítulo da própria
acusação.
— Sou
criminoso.
— Talvez,
não... Mas sabe por que tive saudades?
— Porque
não venho aqui há cinco dias.
— Bem. E
por que não veio?
Dizendo
isto Onda cravou em Ernesto um desses olhares que, procurando animar uma
resposta, deixam o espírito em perplexidade e confusão.
Ernesto
esteve dois minutos sem responder, mas também sem desviar os seus olhos dos
olhos da moça.
É que
aquele olhar era de fogo grego que Onda guardara para a ocasião oportuna.
Depois de uma ausência de cinco dias, parecendo que a presa se escapava, cumpria prendê-la de modo que não
lhe desse mais ocasião de tão longos esquecimentos.
Esse olhar
era tudo. Derrubaram-se os projetos de Ernesto: vinha com a intenção de experimentar
o ciúme da moça, trazia já redigida a mentira que servia de arma, mas tudo se
lhe esqueceu, tudo se inutilizou.
Sem
desviar os olhos de Onda, Ernesto balbuciou estas palavras:
— Estive
doente...
— Doente?
Com efeito, está pálido.
Ernesto
lançou rapidamente os olhos para um espelho e reparou que estava
realmente pálido.
realmente pálido.
Mas esta
palidez não resultava de moléstia alguma, ou antes resultava de uma moléstia
que só agora se manifestava em toda a sua ação.
Onda
estava segura de seu triunfo. Via o efeito que produzia no espírito de Ernesto
e comprazia-se nessa vitória que tão voluntariamente adiara. O essencial era
convencer a Ernesto que ela o amava. Ora, o tom das suas palavras, a magia do
seu olhar, faziam entrar no espírito do moço esta convicção.
Depois de
duas horas de conversa, em que o tempo pareceu correr mais rapidamente do que costumava, para Ernesto
entende-se, Onda estendeu graciosamente
a mão esquerda para Ernesto e perguntou-lhe:
— Vai ao
Teatro Lírico?
— Oh! com
certeza!
Ernesto
não se pôde furtar a um desejo de tomar alguma coisa do tesouro que se lhe
oferecia. Levou a mão de Onda aos lábios e imprimiu-lhe um beijo
apaixonado.
— Deste
beijo, pensava Ernesto, pode nascer a minha ventura. Talvez até hoje
ninguém
ousasse a isto.
E na
verdade, Onda pareceu estremecer sentindo os lábios do moço na pele alva e fina da
sua mão de princesa.
Quanto às
duas amigas, essas voltaram o rosto e não puderam esconder um sorriso, ao ver a
figura de Ernesto e a graça cortesã com que ele se curvou e beijou a mão de
Onda.
Ernesto
saiu com os sentidos exaltados, o coração palpitante, as idéias confusas; estava
definitivamente namorado, e, o que é mais, pensava ele, tinha agarrado a bela
fugitiva.
À noite
foi ao Teatro Lírico. Charton, que então fazia as delícias do público fluminense,
cantava nesse dia uma das suas melhores criações. O teatro estava cheio; todos
aplaudiam a artista com sincero entusiasmo; nessa noite não cantava a
competidora de Charton, a Emmy Lagrua; e, como é sabido, os freqüentadores do teatro tinham-se dividido em
dois partidos extremados, fogosos, mais fogosos e extremados que os partidos
episcopais no concílio de Nicéa. *
Só Ernesto
não se filiava a nenhum partido; o único objeto de partido para ele fulgia em um camarote da 2ª ordem. Onda estava
esplêndida nessa noite. De sua cadeira Ernesto assestava quase constantemente o
seu binóculo contra o camarote. Onda, que acompanhava todos os gestos e
movimentos de Ernesto, fitava o olhar
nos vidros do binóculo do moço e deixava errar nos lábios um sorriso fascinador.
Ernesto
sabia que o sorriso era para ele, e subia proporcionalmente ao sétimo céu.
Mas seria
Ernesto o único cortesão da beleza de Onda que se achava no teatro? Outros
havia que, de diversos pontos da sala, como outros tantos observadores astronômicos,
estudavam a marcha e a beleza daquele planeta. No fim do primeiro ato convenceram-se todos de que havia
na sala um preferido.
— Quem
será? foi a primeira pergunta que cada qual fez a si.

E a
resposta mental que para eles mesmos deram a esta pergunta foi:
— É
natural que ele vá ao camarote.
E todos,
caminhando por vias diversas e separadamente, chegaram quase ao mesmo tempo a
um mesmo ponto: o camarote de Onda.
Eram três.
Ernesto completava o número de quatro. Foi o último que entrou, radiante e
feliz.
Quando
entrou viu os três competidores, que ele já conhecia, conversando alegremente com a esquiva dama.
Por que
alegremente?
Onda, ao
primeiro que apareceu e que a censurara com meias palavras, respondeu:
— Pelo
indiferente, ri-se; pelo escolhido... sente-se.
O
pretendente sentiu bater-lhe o coração violentamente.
A tia de
Onda, que se achava no camarote, não ouviu a conversa, nem que ouvisse lhe prestaria atenção.
Casquilhice.
Ao segundo
despeitado Onda respondeu com um olhar significativo, como aquele que abatera
Ernesto; ao terceiro poupou os olhos para poder falar a mão graciosa cujos
músculos pareciam outros tantos fios elétricos.
De modo
que, supondo-se cada qual mais feliz que o outro, enchia-se de certa vaidade e
olhava com sincera compaixão para os outros.
E mais que
todos Ernesto, que entrou no camarote com aquela confiança de quem sabe que
causa uma grande satisfação, tão grande como seria grande o aborrecimento que
os outros causariam.
E nenhum,
depois de meia hora de conversação, mudava de parecer. Onda sabia conservar no
espírito de cada um a convicção da sua preferência: uma palavra ambígua, um
meneio de leque, um olhar, um gesto, tudo lhe eram armas para combater a dúvida
e afirmar a fé no coração dos seus adoradores.
O resto da
noite passou-se do mesmo modo, repetindo-se as visitas e confirmando cada um no
espírito do outro a opinião de que era néscio e importuno.
No fim do
espetáculo foi Ernesto que teve a honra de acompanhar Onda ao carro. Ia de
cabeça alta, lançando um olhar de desdém para todos, e dirigindo-se freqüentemente a Onda, que lhe respondia com
suma graça e volubilidade.
Junto aos
últimos degraus da escada da porta lateral que dá para a Rua dos Ciganos
estavam os seis amigos da aposta, risonhos e interrogativos.
Ernesto
viu-os, cumprimentou-os levemente e dirigiu-se para a porta. Um dos outros
competidores trazia a velha tia de Onda e apressou-se a descartar-se dela fazendo-a
entrar na carruagem. Depois, Ernesto conduziu a moça, fê-la entrar e ia dizer
duas palavras de despedida quando sentiu que lhe ficara na mão o lenço de
cambraia da formosa Onda.
Antes que
o menor sinal de admiração a comprometesse, Onda estendeu a mão a Ernesto e
disse-lhe com voz doce e insinuante:
— Até
amanhã!
— Até
amanhã!
A tia
também repetiu, entre dois bocejos, as duas palavras:
— Até
amanhã!
Mas
Ernesto já ali não estava. Beijar o lenço, metê-lo na algibeira do paletó e correr
para os amigos que o esperavam à porta do teatro, foi uma e a mesma coisa.
— Bravo!
bravo! repetiram em coro os amigos.
Ernesto
não sabia que dizer. Olhava para todos com um sorriso quase alvar, tal era o
estado em que o deixara a inesperada ventura da dádiva do lenço.
— É minha!
pensava ele.
— Então
ganhaste a aposta? perguntaram os outros.
— Não sei:
esperem. Quero declarar-lhes a vitória completa no dia em que puder apelar para
o reconhecimento da igreja.
— Ah! ah!
então casas-te?
— Por que
não? Oh! meus amigos, mais tarde ou mais cedo hei de acabar por aí. Sinto em
mim a bossa conjugal. Ninguém foge à sina. Ora, se há de ser com outra, por que
não há de ser com esta? Não lhes disse eu que era o Ulisses desta Penélope?
Verão se acertei. O que é certo é que, como o pai de Telêmaco, tive meus
naufrágios, e no fim de tantas atribulações aguardo a felicidade doméstica. Trato
agora de flechar os pretendentes. Meus caros, a confiança e a coragem são tudo.
Chénier tem razão :
................ Ami, reprends courage,
Toujours le ciel
glacé ne souffle point l'orage.
Le ciel, d'un jour à l'autre, est humide ou serein.
Esta conversa
já tinha lugar
na rua. Uma
parte da noite,
em casa de
um dos amigos, onde foram todos tomar chá, Ernesto
continuou no mesmo falar de segurança, e nos outros, apesar da própria
experiência, foi desaparecendo a dúvida para dar lugar a um convencimento que
não era isento de despeito.
No dia
seguinte Ernesto foi à casa de Onda e voltou de lá mais do que encantado. A noite é boa conselheira; antes de conciliar
o sono, Ernesto refletira que a presença do lenço em sua mão poderia ser
fortuita, e com este pensamento diminuíram-se-lhe
umas boas braças do castelo que ele já construíra em seu espírito. Mas tão
feliz era que se enganou na sua presunção. Quando, para sondar a verdade das
coisas, disse a Onda que esta deixara cair por descuido o lenço, ela olhou-o
fixamente e disse-lhe:
— Lenço é
apartamento. Vamos experimentar se nos havemos de separar.
Era
positivo.
Ernesto
ficou fora de si.
Nessa
noite chegando à casa resolveu escrever à moça mostrando-lhe o estado da sua
alma.
Deu ordem
para que o não incomodassem; mandou fazer café, acendeu um charuto, leu e releu
Propércio e Millevoye, e depois de duas horas de incubação intelectual redigiu
o seguinte manifesto do coração:
Minha
prezada Senhora. — Uma palavra sua vai ser para mim a condenação ou a salvação.
Meu coração chegou ao estado de só admitir estas soluções extremas.
Bem sei
quão grande é a minha ousadia. Bem sei que pretender o seu amor é aspirar às
estrelas do céu, à luz divina da glória eterna; sou talvez indigno de receber
das suas mãos a coroa do meu supremo martírio. E se, no meio desta ventura,
posso discernir estas coisas, é preciso que o amor que lhe consagro tome proporções
tais que me não seja possível conservar no fundo da minha mediocridade.
Amo-a; não
cuide, porém, que este amor, semelhante ao amor comum dos homens, fosse apenas
o resultado de uma fantasia e a conclusão de um cálculo. Vão. Este amor é caso
de vida e de morte; é um desses afetos em que a alma se empenha toda e do qual
não pode sair sã e salva.
Desde que
a vi, senti que o meu coração tinha encontrado o seu ideal; onde há aí beleza
mais admirável, mais rara, mais completa? A antigüidade tinha repartido os
diversos modos da beleza nas deusas que inventou. Mas nesta que o meu coração
faz glória de amar reúne-se tudo: a majestade de Juno, o recato de Hebe, a beleza
de Ciprina, o aspecto virginal das três Graças.
A um
coração de poeta, posto que de gênio não o seja eu, tal reunião de encantos não podia passar
despercebida; vê-la, foi tornar-se cativo, e cativo desse cativeiro mágico que
tem o dom de fazer beijar os ferros e amar a condição. É que cativar-me assim,
é libertar-me, é deixar os laços da matéria, é remontar-me à pura região dos
gozos desconhecidos.
Em tal
estado, a afirmativa ou a negativa é uma sentença de vida ou de
morte. Nas suas
mãos está fazer
de mim um
venturoso ou um desgraçado.
Talvez
fora melhor que isto que aqui lhe digo no papel fosse expresso de viva voz; mas
eu não sei se teria coragem de falar. Longe de seus olhos sinto-me menos
acanhado, mais livre, mais próprio para exprimir o estado do meu coração.
Aguardo a
sua sentença. - Ernesto.
Apesar de
certa incongruência e da aparente afetação desta carta, Ernesto releu- a
contente, admirando o belo estilo que até ali não descobrira em si.
Fechou a
carta e arranjou meio de fazê-la chegar secretamente às mãos de Onda.
A moça
respondeu verbalmente que, no dia seguinte, no sarau que se dava em casa de um
tio dela, se entenderia com Ernesto.

Ernesto
recebeu com alguma amargura esta resposta. Todavia sempre esperançado
preparou-se para o sarau, e lá foi ter.
Antes de
ir passou pelos olhos, durante o dia, a cópia da carta com que ficara, e a cada
período que lia parecia-lhe que Onda não era capaz de resistir.
Não quis
ir cedo. Pareceu-lhe melhor fazer-se esperar e fazer nascer da impaciência uma
resposta mais pronta. Só às onze horas compareceu ao sarau.
Dançava-se
uma polca.
Onda e um
cavalheiro (exatamente um dos pretendentes do Teatro Lírico) faziam as delícias
dos apreciadores da polca.
Ernesto,
com o coração aos pulos, esperou, encostado a um portal, que a dança acabasse.
E posto
que dali a dez minutos a polca se tivesse acabado, tal era a impaciência de
Ernesto, que lhe pareceu um século. É que não era só a impaciência, era já o ciúme
de vê-la nos braços de outro.
Terminada
a polca, Onda, contra as previsões de Ernesto, foi percorrer alguns salões pelo
braço do cavalheiro.
Que
significava aquilo? Ernesto ficou algum tempo perplexo. Finalmente refletiu que,
tendo chegado poucos minutos antes, não podia a moça saber logo da sua presença.
Devia ir
falar-lhe.
Dava
alguns passos quando um dos amigos da aposta acercou-se dele e pediu-lhe novas
do namoro.
Ernesto,
procurando sorrir, disse que mais tarde poderia dizer alguma coisa.
— Os
outros estão aqui, disse o amigo.
— Todos?
perguntou Ernesto.
— Todos.
— Bem, até
logo.
E dizendo
isto, Ernesto foi-se em procura da mulher que o prendia.
Atravessando
uma sala viu dirigir-se para ele o par que procurava. Deteve-se. E para
aparentar indiferença e acaso foi a um espelho e aí fingiu consertar os cabelos,
com a mão, ao de leve.
Ficava
assim de costas para os dois e podia ver no reflexo do espelho se ela reparava
nele ou não.
Ora, o que
ele viu foi a moça trocar com o cavalheiro um olhar de ternura, e este arrancar-lhe das mãos, que apenas opuseram
fraca e doce resistência, uma pequena flor que ela tirara do ramalhete.
Ernesto
enfiou.
Após a
comoção da cena que acabava de presenciar, outra comoção o tomou: foi a vista
do rosto pálido com que ficou.
Os dois
passaram.
Ernesto
deixou-se cair em um sofá.
Quase a
ganhar a batalha, no momento da vitória decisiva, encontrava-se repentinamente
no mesmo ponto em que começara as lutas.
Quando
passou a primeira comoção veio-lhe à lembrança a carta que escrevera e cuja
resposta ia buscar. Mas devia pedi-la depois do que presenciara? E não era a sua
posição uma posição ridícula?
Pensando
em tudo isto, Ernesto levantou-se e passeou à toa por todas as salas e corredores.
Dançava-se,
cantava-se, tocava-se; ele nada via, nada ouvia; via o ridículo e o desdém.
Supunha ter metido uma lança em África e descobria agora que era tão medíocre
como os outros.
Nestas
reflexões amargas andava, quando, ao passar por uma das salas, ouviu a voz de
Onda.
A voz
partia do vão de uma janela.
Ernesto
escondeu-se no vão da janela contígua e procurou cobrir-se entre as cortinas
para não ser visto se alguém passasse.
Depois
prestou o ouvido à conversação e procurou distinguir as vozes. Não havia voz de
homem. Além de Onda, havia uma voz de mulher. Falavam o nome dele. Redobrou de
atenção.
— Como és
feliz! dizia a voz desconhecida.
— Feliz?
— Ou antes
ardilosa!
— Por que ardilosa?
Tenho eu culpa que sejam todos os homens de uma mediocridade de espírito
incomparável? Divirto-me, nada mais.
— Oh! mas
esse, o Ernesto, não é tão medíocre assim...
— Mais que
os outros. Tem o que os outros não tinham ou não pareciam ter: a vaidade de
agradar por seus encantos.
— Pois
este?...
— É o que
te digo. Acreditarás tu que foi só depois de muitos dias que me resolvi a prendê-lo como todos? Ao princípio afetava
uma indiferença sem igual: parecia alheio a mim, e entretanto eu sabia que ardia
por figurar entre os meus adoradores. Hoje é o pior de todos. Se visses a carta
que me escreveu!
— Ah!
escreveu-te...
— Oh! um
regimento de tolices, sem pés nem cabeça, umas coisas já muito velhas e
batidas, declarando-me que da minha decisão dependia a felicidade ou a condenação
dele. Quer fazer supor que morre se eu responder que não o aceito em meu
coração. Que tal?
— Pensei
que este meio já se não usava.
— Usa-se,
usa-se...
— Mas
dize-me cá; não gostas de alguém?
— Por ora,
não.
— Mas deveras
ninguém te inspirou ainda amor?
— Não. Que
queres? Fui educada com o recato maior deste mundo; entrando na convivência das
outras, e nas distrações nos bailes, não pude logo ao principio tomar afeição
alguma. Foi tempo esse que gastei em duas coisas: em ler e observar. Ora, da
leitura adquiri idéias talvez um pouco absurdas, mas enfim adquiri, e fora das quais não compreendo o
amor. Gosto de amar e ser amada por inspiração, e com verdadeira paixão. Até
aqui nada tenho visto além de uns amores vulgares que não contentam o coração.
— E sabes
se algum dia encontrarás?
—
Talvez... quem sabe?
— Ah!
maliciosa! Aí anda coisa!
— Qual!
— Quem
sabe se este último, este de hoje, o da flor?...
Nisto
passava um grupo. As vozes calaram-se e Ernesto foi obrigado a coser-se mais com a janela e a cobrir-se com a cortina.
O rapaz
suava ouvindo aquelas coisas a seu respeito. Sentia o efeito que se sente ao acordar de um sonho em que se parece estar
no cimo de uma montanha, quando realmente se está a três ou quatro palmos do
chão.
Não era
bem o amor dele que se ressentia; era mais o amor-próprio ferido naquelas palavras com que era tratado.
Depois de
uma batalha tão renhida e cuidada, reparava ele que não passara de um joguete
aos manejos de uma dama ardilosa e namoradeira.
Quando
pôde de novo ouvir a conversa que, aliás, lhe chegava entrecortada e incompleta,
já as duas moças tratavam de outro ponto da questão.
— Mas o
que pretendes fazer? perguntou a desconhecida.
— É
conforme o modo por que ele me falar. Talvez o receba com uma secura tal que ele nunca mais se lembre de mim.
— Não tens
pena de perdê-lo?
— Ora, rei
morto, rei posto.
— Dize
antes: reis mortos, reis postos!
Riram
ambas, ambas se beijaram, e dando o braço uma à outra saíram dali como dois
anjinhos que acabavam de pedir a Deus por uma alma condenada.
Ernesto,
apenas sentiu que elas já estavam longe, saiu do seu esconderijo.
Que iria
fazer? Esteve alguns instantes sem tomar determinação alguma. Ainda
não tinha falado a Onda; o melhor meio que lhe
pareceu era dirigir-se à moça, cumprimentá-la e não tocar no assunto da carta.
Depois, se ela viesse de si ao assunto,
falar conforme o tom das suas palavras e procurar fugir ao ridículo e à afronta.
não tinha falado a Onda; o melhor meio que lhe
pareceu era dirigir-se à moça, cumprimentá-la e não tocar no assunto da carta.
Depois, se ela viesse de si ao assunto,
falar conforme o tom das suas palavras e procurar fugir ao ridículo e à afronta.
Tendo
tomado esta resolução, Ernesto caminhou para o salão em busca de Onda. Tocava-se o sinal de uma quadrilha. Ernesto
dirigiu-se para Onda com um sangue frio afetado e fez-lhe, o mais gracioso e
indiferente que pôde, um cumprimento. Depois
convidou-a a dançar.
— E se eu
tiver par? perguntou a moça, um pouco admirada da discordância que notava entre
a carta e aqueles modos.
—
Paciência; esperarei.
— É tão
resignado assim?
— Por que
não?
Mas os
olhos de Onda, com que Ernesto não contava, iam fazendo já o efeito do costume,
de modo que a indiferença com que ele viera determinado começou a dar lugar a
uma ternura misturada com humildade. Onda respondeu:
— Pois
quero dar-lhe uma prova de amizade. Vou roer a corda ao par.
— Oh!
isso!
— Por que
não? Está dito: vamos dançar.
E,
levantando-se, aceitou o braço de Ernesto, que nada pôde responder a estas palavras, tão estranho lhe pareceu aquele
procedimento.
Formou-se
a quadrilha e ambos dançaram, tendo exatamente por vis-à-vis a companheira de
Onda e um dos rapazes da aposta com Ernesto.
É inútil
dizer que nenhum cavalheiro alegou a falta de Onda, visto que ela não tinha
realmente par aceito para a quadrilha.
Durante a
dança os ressentimentos de Ernesto foram desaparecendo cada vez mais. No fim
estava quase como na hora em que escreveu a carta.
Terminada
a quadrilha foram os dois para o pequeno terraço da casa.
A noite
era das mais belas. Esta circunstância serviu de tema para as primeiras palavras
de Ernesto, a quem ocorreram no momento as palavras de uma situação de romance
que ele lera alguns dias antes.
Enquanto a
conversa não passou dessas banalidades, Onda mostrou-se amável a mais não ser.
Mas Ernesto, iludido por essas aparências, tendo esquecido perfeitamente a
conversa da janela, ousou falar bruscamente na carta e pedir uma resposta.
Da
primeira vez Onda não respondeu.
Ernesto
insistiu na exigência.
Onda
convidou-o a levá-la ao salão,
— Mas a
carta?

— A carta?
disse ela. Que carta?
— A que eu
lhe mandei.
— Ah!
ainda não li. Tive tanta coisa em que cuidar ontem.
Ernesto
enfiou deveras.
— Não leu?
— Não li.
Ernesto
não se pôde ter, e referiu a conversa que ouvira entre Onda e sua amiga. Depois de ouvir a narração que Ernesto matizou
de pontos de admiração, Onda contentou-se em responder:
— Foi
sonho!
Ernesto
não disse palavra ouvindo isto.
Houve
entre ambos um momento de silêncio.
Onda
encetou conversa sobre coisas diversas. Ernesto mal respondia por monossílabos.
Enfim,
Onda pediu a Ernesto que a conduzisse ao salão. Ernesto deu-lhe o braço e
disse-lhe que também não se demoraria no baile.
— Mas irá
em minha casa amanhã, sim?
— Para
quê? Para ouvir a leitura...
E cortou
subitamente o que ia dizer.
Mas Onda
adivinhou.
— Ora,
disse ela. Não falemos mais nisso. Vá, que eu gosto de sua companhia.
Ernesto
levou Onda ao salão e saiu sem despedir-se de ninguém.
Estava
humilhado.
No dia
seguinte, os seis amigos de Ernesto receberam o seguinte bilhete:
Perdi a
aposta. Estão convidados a jantar hoje no Hotel de Europa
às cinco
horas. Enterro o amor. - Ernesto.
Às cinco horas
os sete amigos estavam à roda de uma mesa em uma das salas particulares do
Hotel de Europa.
— Com que,
perdeste? disse um.
— Não te
dizíamos nós! acrescentava outro.
—
Aprendeste à tua custa, acudia o terceiro.
— Não
serás tolo em outra ocasião, observou filosoficamente o quarto.
— São as
lides que formam cavalheiros: isto é de um poeta, citava o poeta da reunião.
— O que te
vale é que não pareces ter perdido muita coisa do coração neste negócio, dizia
o último.
— É
verdade, respondia Ernesto, dizes muito bem. Perdi, mas salvei o coração. Meu amor-próprio não deixou de ressentir-se
com isto; mas juro que fiz o que era humanamente possível. É que realmente a
rapariga é insensível. Pois, olha, posso afirmar que eu conheço o nome aos
bois...
Toda a
conversa foi por este teor.
E era de
ver a alegria sincera com que Ernesto abriu a carteira, no fim do jantar, para
saldar a vistosa conta que o caixeiro lhe apresentara.
Devo dizer
que o jantar que serviu de funeral ao amor de Ernesto foi dos mais escolhidos.
Duas
palavras, em forma de epílogo, para fechar este ligeiro episódio.
Onda
prosseguiu nos seus amores fáceis, dando a todos os mesmos desenganos que
custaram a Ernesto... um jantar.
Mas enfim,
se os namoros passavam, também passava o tempo, e um dia, estando ao espelho, Onda viu que a primeira
ruga se lhe desenhava no rosto. Tinha ela então trinta e três anos. A ruga era
prematura, mas, fosse ou não, existia, e esta descoberta deu sério cuidado à
moça.
Esperar o
amor que sonhara pelos romances era arriscar-se, visto que à primeira ruga
sucederiam outra e outras.
Era
preciso achar marido.
Lançou as
vistas a lista dos seus adoradores, já muito diminuída, não porque lhe faltasse
a beleza, mas porque lhe sobrava travessura para os arredar.
Entre
esses adoradores havia um que pela terceira vez depositava o coração aos pés da
bela namoradeira. Da primeira vez era um simples tenente de cavalaria; da segunda era capitão; agora era já major.
Onda
resolveu que lhe cumpria assentar praça ao lado do major.
Daí a um
mês anunciava-se o seu casamento. O major abençoou a sua insistência e recebeu
em matrimônio a esquiva donzela.
Daí para
cá Onda tem-se mostrado fiel às armas.
Quando
Ernesto e os outros souberam disto fizeram muitos epigramas, alguns desconsolados e sensaborões.
Mas a
rapariga casou-se.
Ernesto no
fim de dois anos vingou-se de tudo procurando mulher e encontrando uma das mais
modestas deste mundo. Os dois casais são felizes; o leitor não menos por ter
chegado ao fim deste episódio sem derramar uma lágrima, e eu tanto como o
leitor, por ter pingado o ponto final a este escrito, cujo assunto principal é
um desvio do espírito das mulheres.
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Nota:
Texto-fonte: Publicado
originalmente em Jornal das
Famílias, 1867. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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