
O ÚLTIMO DIA DE UM POETA
I
São nove horas da manhã.
Entra-me o
sol vivo e ardente pelas frestas das venezianas. Parece que me convida a deixar o leito, e como que a
reviver. Reviver! é esta a palavra: reviver quando estou certo de que poucos
dias ou apenas horas me separam da sepultura. Não parece um escárnio da morte?
Não parece que para melhor sentir o que
vou perder, deixando a vida, quer a morte que eu toque pela última vez os tesouros
da felicidade que me ficam na terra?
Melhor
fora, decerto, para minha perfeita contrição, que a natureza me surgisse nos últimos dias com o seu aspecto mais
sombrio e aflitivo. Então cuidaria, ao sair do mundo, que deixava um pesadelo e
uma angústia, e que ia respirar os ares
puros de uma vida sem igual.
Depois...
II
Abramos a
janela.
Oh! como
está bonito o dia! O céu azul, o sol afogueado, a folhagem palpitando de alegria agita-se ao sopro de um vento
plácido e suave. Estas trepadeiras enchem-me o quarto de perfume; lá vejo o
tanque calmo e límpido em que eu me banhava em pequeno. É o mesmo ainda. As
paredes de pedra têm um aspecto mais venerável, mas tudo isso, aquela murta que
o rodeia, aquelas roseiras que ali brotam e enfloram sem cuidado de ninguém,
tudo isso me lembra o tempo de minha meninice.
Mais longe
vejo a mangueira grande, onde eu passava as tardes, abraçado ao balanço rústico
que meus irmãos impeliam no meio da gritaria geral.
A verdura,
a água, a árvore, a flor, tudo me lembra a dita do tempo em que sem cuidados
nem remorsos eu só cuidava em ser feliz e amar os meus.
Aonde foi
agora esse tempo? Passou como passaram as folhas de todos estes arbustos; mas os arbustos, se perderam umas
ganharam outras, e nem houve, neste abençoado clima, espaço algum entre a queda
das primeiras e o abrir das últimas. Só
em mim, ilusões e esperanças que me caíram uma vez, não me
renasceram mais, e eu fiquei, como tronco árido
e seco, chorando o que fui, chorando o
que sou, chorando o que hei de ser.
renasceram mais, e eu fiquei, como tronco árido
e seco, chorando o que fui, chorando o
que sou, chorando o que hei de ser.
Mas o que
dói é esta alegria universal, esta placidez com que a natureza vem assistir à
minha morte, garrida e alegre como se fora um espetáculo. Ó mãe cruel, que não
honras a morte de teus filhos com uma lágrima de dor e um suspiro de mágoa... Parece que te apraz
criá-los para matá-los, produzi-los com uma ilusão, absorvê-los com um
desengano, verdadeira condenação dos que não aguardavam esse desengano e acreditaram nessa
ilusão...
Também eu
te mereci esta ironia? também. Que outro absorveu mais essa ilusão do que eu?
Que outro sorriu mais à idéia do desengano do que eu? Tens direito, ó natureza, a vestires hoje as tuas melhores
galas para assistir, não a morte da alma, essa já morreu, mas a do corpo, que
se vai finar miseravelmente como um inseto pisado pela dama distraída!
III
Sinto-me
fraco.
Vou
sentar-me.
Esta
cadeira alta, forrada de couro, molde antigo, foi de meu finado avô. Feliz homem
que pôde chegar à mais avançada idade e só morrer quando o mundo lhe começava a ser pesado. Todas as glórias da
vida, gozou-as na plena liberdade de um espírito que se não acovardava e de um
coração que não sentia o espinho da desilusão. Essa impavidez serviu-lhe de
amparo; com essa segurança inteira é que atravessou os anos, sem nada deixar do
que levava, porque também levava muito pouca coisa.
Tenho
defronte de mim um espelho. Vejo ali refletida metade do corpo; tenho vontade
de ir ver o resto. Que feições apresentarei hoje? Serão as mesmas quebradas e
mortais de ontem? Serão as mesmas animadas e vivas de há três dias? Uma ou
outra coisa, que importa isso? O espinho da morte sinto eu dentro de mim agudo,
dilacerante, mortal... Que valem as feições? Esperanças ou terrores para o moribundo,
sintomas ou provas para a ciência. Nada mais.
Sinto
passos. Abre-se a porta. É minha mãe!
IV
— Ah!
minha mãe!
— Que
tens? Estás melhor?
— Não sei.
Talvez que sim.
— Deixa
dar-te um beijo; estás muito melhor... Olha-te ao espelho.
O espelho
responde-me como minha mãe. Estou muito melhor; minhas feições são outras. Como
que renasço. Principalmente esta visita de minha mãe é que me dá vida... Oh! se
eu morresse longe dela! tudo se altera, tudo se corrompe, tudo se desnatura, mas o amor daqueles que nos
deram o ser, esse nunca; é o amor por excelência: o amor que preside ao berço,
vela na infância, ama na mocidade e consola nas desilusões como estas em que me
vou do mundo.

Tudo se
alegrou à entrada de minha mãe. Coitada! tem os olhos vermelhos de chorar: foi
por mim. Lágrimas sinceras as que ela derramou! Nestas creio. Saltam espontâneas
dos olhos quando o coração já se acha demasiado cheio; e só corações tais se
podem encher desse modo.
Como ela
me olha! Parece que procura adivinhar nas minhas feições a hora da nossa eterna separação! Não, não nos
abandonemos à dor; a mesma separação pede agora toda a efusão dos sentimentos,
toda a expansão das almas...
— Meu
filho, não sentes vontade de passear?
— Não,
minha mãe. Quero passar hoje o dia inteiro no meu quarto. É dia de descanso.
Não é hoje Natal? Quero hoje viver no pleno repouso do espírito. Demais, esta janela põe-me em comunicação com
a natureza. Como está bonito o dia! É em
honra do nascimento do Salvador, não? E virá o desejado de todas as gentes. É
do profeta.
Minha mãe
sentou-se e fez-me sentar ao pé de si.
— Meu
filho, disse-me ela, serás capaz de viver? Deixarás de ajudar com o teu desânimo
a ação da moléstia que te consome? Ah! por mim te peço, por teu pai...
— Em que
ajudo eu a minha moléstia, minha mãe? Não estou alegre? Olhe, já fiz a minha
saudação ao sol. É bom sinal o sol. Eu sempre o adorei como o olhar profundo de
Deus. Ele basta para me dar vida. Não morrerei hoje, decerto. Hei de morrer no
dia em que alguma nuvem cobrir o astro do dia. Então as sombras me levarão às
sombras. Acredite...
— Oh! não
fales em morrer.
— É mau?
— É
triste, meu filho.
— Não é.
Quero ser filósofo o meu tanto. Olhemos a morte como ela deve ser olhada:
livramento e não aniquilamento. Ah! é que realmente sofro...
Minha mãe
abraçou-me. Senti que duas lágrimas me corriam pelas faces. Essas lágrimas eram
já resultados de uma recordação que me acabava de atravessar o espírito. Minha mãe leu em minha alma.
— Não te
esquecerás disso?
Minha resposta
foi muda. Levantei-me, fui a uma mesa e beijei um ramo de flores secas, o ramo
dela, o ramo fatídico, o ramo destruidor. É ali que está a minha morte, ali e
não na moléstia. Sinto que é assim.
Depois de
alguns instantes de silêncio, minha mãe levantou-se e veio a mim.
— Meu
filho, disse ela, deixa que eu arrede por algum tempo estas flores. Quando
estiveres bom dar-te-ei de novo. Mas agora de que te servem?
— Não,
disse eu, as flores ficam. Não fazem mal a ninguém.
— Fazem-te
mal.
— A mim?
Pobres flores!...
Minha mãe
insiste, mas eu recuso. As flores ficam no meu quarto...
Meio-dia...
V
Acabo de
ler duas páginas dos Salmos de Davi. O rei-poeta consolou minha alma. É destas
consolações que eu preciso, destas que preparam o espírito para a eternidade...
Hoje de
manhã acusava a natureza por vir garrida e alegre assistir talvez ao meu último
dia. Como estava o meu coração! A dor desvaira e eu não sei o que penso nem o
que digo. Mas a verdade é uma; a verdade é esta grande verdade. Ó infinito, é
enfim para ti que eu vou, como gota de água desviada que se recolhe ao oceano!
Disse há pouco para consolar minha mãe, mas disse o que realmente é: a morte é
livramento, não é aniquilamento. Sinto que há dentro de mim uma coisa que
anseia por livrar-se desta prisão para lançar-se na eternidade e no infinito. Grande, suave, consoladora
esperança! Sem ti, que fora o passamento senão a maior dor e o maior suplício?
Mas, deixar o mundo com a esperança de que
aos olhos mortais se abre mundo novo, tão outro que não este, mundo em que a virtude resplandecerá e a paz eterna
compensará as atribulações da vida!
Alegra-me,
comove-me, alvoroça-me a idéia de que não vou todo à sepultura; e que ali, à
porta do cemitério só ficará de mim o que há de pior em mim mas que o espírito,
a luz desta lâmpada a que tão cedo vai escasseando o óleo, há de remontar ao
foco da grande luz.
Deixarei
saudades? Deixo; mas o tempo as consolará, e a esperança de que dia surgirá em
que o consórcio moral das criaturas se realizará ante o trono de Deus, deve ser
a grande esperança dos que ficam e dos que vão.
Assim que,
ó minha mãe, se em nossa passagem no mundo nos separamos um pouco, não será mais do que para costear uma
montanha, até que, rasgando-se aos nossos olhos nova fonte de luz, possamos
entrar para sempre unidos no seio do absoluto.
VI
Uma hora
da tarde.
Creio que
adormeci um pouco.
Tive um
sonho.
Sonhei que
assistia à minha coroação na posteridade. Foi sonho! Que fiz eu para merecer os
aplausos dos homens? Gastei a minha mocidade... em quê? Aqui entra a parte
sombria do meu sonho. Gastei a minha mocidade em amar, com as forças vivas do meu coração, a quem provou que
me não merecia.
Embalde procuro desviar de meu espírito esta
lembrança que me acabrunha e me leva à sepultura.
Pobres
flores aquelas! Lembra-me o lado feliz da história da minha mocidade. São as
relíquias do tempo da fé pura e da paz do espírito. Naquele tempo eu a julgava
um anjo. E era-o. Não sei que demônio a perseguiu depois e fez-se-lhe introduzir
no espírito. Desde aí perdi o ideal para ganhar a morte. Nem podia ser de outro
modo.
Ah!
Carlota!...
Tenho uma
idéia. Vou fazer uma coisa que chamarei o meu testamento. É a revista dos meus
papéis. Queimarei o que for inútil; deixarei o que puder dar de mim alguma
idéia, não à posteridade, mas aos meus amigos. Eles não sabem talvez nada do
amigo que lhes morre.
Cerremos
um pouco estas cortinas. O sol queima demais. Assim é melhor. Meu Deus, como
estão estas gavetas! Dissera-se que há aqui a matéria de vinte poemas...
Talvez. Que sou eu próprio senão um poema trágico?
Deitemos
isto fora, que não presta: cartas de alguns indivíduos que se diziam amigos
meus, no princípio, no meio e no fim. Não é amigo aquele que alardeia a amizade:
é traficante; a amizade sente-se, não se diz... Mas a que vem esta filosofia?
Deitemos fora, simplesmente, estas cartas.
Aqui estão
uns versos: As margaridas. Ah! foram versos que eu escrevi quando ela me deu
aquelas flores... São versos do bom tempo. Devo guardá-los? Para quê? Não, não
servem; eram talvez bonitos; mas cantavam a mentira, endeusavam a falsidade...
Não prestam.
Mais
versos... São fragmentos de um poema humorístico: Os solidéus. É do tempo da
Academia. Diziam todos que era esta a minha veia. Talvez fosse. Mas as
circunstâncias mudam tudo, o gênio, o caráter e as tendências; e o homem de ontem
nem sempre é o de hoje, como o de hoje nem sempre é o de amanhã. Foi o que me
sucedeu. Se eu tivesse direito a uma biografia ou a um elogio histórico dava
este ponto ao escritor para estudar e desenvolver.
Este
poema, se eu tivesse acabado, havia de agradar, talvez. Tem por assunto o aparecimento
do solidéu e o açodamento com que toda a gente deitou-se a imitá-lo para
cobrir, mesmo aos seculares, as coroas que tivessem. O padre Simão era o meu
herói em cuja boca punha eu muitas coisas boas de serem lidas... Devia tê-lo acabado. Infelizmente ficou no primeiro
canto. De que serve mais? Não presta...
Uma carta
de Carlota. Foi das primeiras. É apaixonada. Ainda me lembra do júbilo em que fiquei quando a recebi. Parecia
doido. Minha mãe não compreendia a alegria de que eu estava possuído e receava
pela minha razão. Tranqüilizei-a contando-lhe tudo, as minhas esperanças, os
meus projetos...
Cuidas,
escrevia-me Carlota, que há frieza em mim? Oh! não creias! Amo-te como nunca amei a ninguém; sinto que encontrei
em ti o corpo vivo dos meus sonhos de moça infeliz. Como te não hei de amar?
Fria eu? Sou reservada, porque é preciso
sê-lo. Meu tio destinou-me a um homem que eu aborreço; mas teima nisso e eu não
tenho querido romper de uma vez. Tenho esperança de convertê-lo à razão. Mas se julgas que por
prova do meu amor devo deixar e acompanhar-te, fala, eu sou tua escrava.
Acredita, meu poeta, que eu te amo como ainda não amou mulher alguma. — Tua
escrava!
Esta
expressão matou-me. Escrava! isto é, dependia de mim, vivia de mim, por mim,
para mim. Era o amor como eu o compreendia, como a minha alma ardente o
desejava: o amor escravidão, o amor que não faz valer direitos, nem vontades, nem
caprichos. Viver assim um do outro, pelo outro, para o outro, tal era o modo do
amor que pode resgatar a pequenez moral dos homens, em que o interesse e o
cálculo frio substituíram todos os sentimentos generosos e magnânimos. Este ideal
encontrara eu em Carlota; como não ficaria contente? Mas depressa...
Guardemos
esta carta. Há de ficar ao lado desta outra, tão diversa, contraste tamanho que
assusta e repugna, irrita e admira; reverso da medalha; face
sombria depois da face brilhante; ponto
corrompido depois do ponto são. Ou não: a
primeira era a rede do engano: o fundo moral daquela mulher está na última, negro,
repulsivo, mas verdadeiro. Era toda má.
sombria depois da face brilhante; ponto
corrompido depois do ponto são. Ou não: a
primeira era a rede do engano: o fundo moral daquela mulher está na última, negro,
repulsivo, mas verdadeiro. Era toda má.
Que me
respondia ela às minhas exprobrações?
... O que
deve fazer é fugir de mim. Se é real esse amor que me diz ter, dou-lhe de
conselho que mude de terra, de modo que longe dos olhos fique-lhe eu longe do
coração, o que será uma fortuna para nós ambos. Isto é fácil e proveitoso. Quanto aos juramentos que me recordou,
respondo que eu mereceria censura se fizesse de mim tão infalível que nunca
errasse. Ora, eu erro, errei. Salvo-me do erro, reconhecendo que foi erro e
dizendo francamente que a leviandade é que teve parte nessas promessas tão
puerilmente solenes. Pense nisto, e verá se não é assim. Console-se e anime-se,
é o que lhe tenho a dizer...
A carta
continua; é toda no mesmo sentido; a impudência e a crueldade. Ah! se tu soubesses, Carlota, o que me fizeste e
fazes ainda sofrer! ...
Sinto
passos. É o médico. Fechemos a gaveta.
VII
— Bom dia,
doutor.
— Viva,
meu doente.
— Como me
acha?
— A julgar
pelas feições, melhor. Como passou a noite?
— Assim,
assim.
— Mas por
que não está deitado?
— Não
posso. E nem quero. Seria incivilidade esperar a minha grande visita deitado
numa cama.
— Que
visita?
— A morte.
— Ora!
— Com
certeza. Há de dizer-me que não. É o que se diz a todos os doentes. Parece que isto os anima. Mas se os anima,
descuida-os; e é exatamente o que não me acontece. Estava eu agora cuidando de
arranjar uns papéis, a fim de que nada me fique por arranjar quando eu mudar de
domicílio...
— Deixe
essas idéias.
—
Entristece-se? Que faria quando eu lhe contasse a idéia que eu tive ontem?
— Que
idéia foi?
— Foi a de
mandar aprontar e medir eu mesmo o meu caixão...
— Faz um
favor?

— Qual?
doutor.
— Não fale
assim.
— É fácil.
— Não
fale, porque não só isso atrasa-lhe a cura, como ainda há de entristecer
sua mãe.
— Mas eu
não lhe digo nada...
— Não
basta não dizer. É preciso mesmo nem falar. As mães são zelosas dos filhos,
porque são mães. Muitas vezes andam a ouvir às portas, para ter certeza do
estado dos filhos. Querem surpreendê-los na plena confiança que lhes dá a ausência
delas...
Tive uma
suspeita: cuidei que minha mãe estivesse à porta.
Levantei-me
e fui à porta. Não estava.
O doutor
esperou-me sorrindo:
— Não
está, mas podia estar, disse.
Voltei a
sentar-me ao lado do doutor.
— Ouça
bem, continuou ele, esta cisma constante de que há de morrer, estes trabalhos
que tem e as suas forças atuais não comportam, tudo isso torna-o pior. Não vê
como está ansiado...
— É a
comoção.
— Já
estava quando eu entrei. Ora pois, não pense mais em coisas tão lúgubres, e
sobretudo não se ocupe de coisa alguma. Vamos lá: tomou os remédios?
— Tomei.
— E então?
— Ontem
não senti melhoras algumas; agora estou melhor um pouco, apesar da ânsia.
— Ânsia é
por culpa sua... Aposto que esteve a escrever versos.
— Não.
— Nem deve
ocupar-se com isso. Há de ser bonito se escreve alguma poesia em que fale da
morte e do que vai deixar, e depois de três meses fica-me aí são como um
pero...
Minha
resposta foi sorrir-me.
— Ande
deitar-se um pouco.
— Para
quê?
— Porque a
minha visita é mais longa hoje que de costume, e eu não quero que se canse. Vá
deitar-se, deite-se e conte-me uma história.
— Obedeço.
Que história quer?

— Uma
história de meninos. As três cidras, O príncipe formoso...
Refleti um
pouco e respondi:
—
Contar-lhe-ei uma história interessante! um pouco velha, mas instrutiva.
VIII
Conheci um
rapaz, poeta como eu, e como eu crente, a mais não poder ser, nas melhores
ilusões desta vida.
Não era
rico, devia viver por si; todavia, pôde alcançar meio de preparar-se para uma
profissão literária. Foi estudar. Tinha ao lado das ilusões grande bom senso, e a ele deveu correr os primeiros anos de seus
estudos sem cair nos laços do amor. Teve algumas fantasias, mas fantasias
simplesmente, que começavam e acabavam na mesma noite. A sorte preparara-lhe...
Abre a boca, doutor? A história o adormece?
— Não;
pode continuar.
— A sorte
preparara-lhe um golpe profundo, para castigá-lo do critério com que soube
fugir às tentações que encontrou. Depois de muitas circunstâncias que não vêm
ao caso, achou-se diante de uma mulher. Imagine o doutor que essa mulher era
bela. Imagine mais, que estava em circunstâncias especialmente romanescas. Acabava
de perder o marido que na idade de dezesseis anos seus pais lhe tinham obrigado a tomar. Contava então vinte e dois,
e a morte daquele homem, se não lhe matou a alma, porque a alma não se achava
ligada a ele, deu-lhe certa tristeza e
arrancou-lhe algumas lágrimas, o que era nela um fundo de honestidade e pureza.
O que é
porém certo é que, à semelhança de uma criatura que deixa a prisão em que
estivera detida por longos anos, ela reapareceu ao mundo, assombrada e abatida.
Era uma
viúva que se achava ainda solteira. Buscava uma alma para casar. Apareceu-lhe o
poeta. Força da fatalidade os impeliu um para o outro. Parece que mesmo um para
o outro se tinham conservado, ela na prisão que lhe armaram os pais, ele na
torre de marfim de sua sossegada isenção. Mas viram-se e amaram-se.
Naturalmente, pergunta-me, com que amor se amaram? Foi com o verdadeiro amor, o
amor que consorcia desde a primeira hora as almas, as vontades e os pensamentos
para nunca mais se separarem. Nunca mais! Logo mais verá que não foi assim!
Vai-se embora, doutor?
— Tenho
que fazer.
— Fique,
eu lhe peço.
— Com uma
condição.
— Qual?
— Não
continue essa história.
—
Incomoda-se em ouvi-la?
— Um
pouco.

— Deixe
disso. Não me vê calmo? É verdade que como os fatos já se passaram há longo
tempo, e o meu anjo... já morreu, estou hoje mais a frio e posso contá-la sem
enternecer... E demais, assim ao menos não pensarei na minha visita, a morte.
— Oh! não,
não pense nisso! Vamos lá, conte. Mas antes disso tome o remédio, sim?
— Sim.
IX
Tomei o
remédio e continuei:
—
Amaram-se pois. É preciso observar que o poeta tinha sede de amor. Atravessara
um deserto, onde as miragens sucediam-se de hora em hora, e chegava enfim ao
oásis da vida, uma fonte, uma relva, uma palmeira. Determinou não ir adiante e
descansou, com a longa caravana das suas ilusões, sobre a relva, à sombra da palmeira, à beira
da fonte... Desculpe esta linguagem romanesca e oriental: é própria da
imaginação exaltada.
Não
existiam já os pais da viúva. Existia um tio que não era nem peixe nem carne;
indiferente ao futuro da sua sobrinha como ao seu próprio. Tinha alguns bens da fortuna, poucos, e que ainda mais
exíguos se tornavam em virtude do jogo
largo e desesperado que fazia com eles nas bancas mais concorridas. A sobrinha
tinha ainda menos.
O amor do
poeta e da viúva prosseguiu cada vez com mais força e mais intensidade. Mil
projetos, mil planos formavam ambos na doce intimidade dos seus corações. Eram duas almas sinceramente
poéticas. Viam o resto do mundo pelo prisma do seu amor e da sua fantasia. O
lado feio, real, positivo, da existência aparecia-lhes assim, como se fora tudo
dourado pela luz do céu. Durou esta vida seis meses.
Perguntar-me-á
por que se não casaram. É simples. No meio das suas imaginações não os
abandonava certo critério frio e necessário. O casamento era uma obrigação para
que ambos se deviam preparar. O poeta foi o primeiro a adiantar esta
consideração a que a viúva se curvou convencida. Mas de novo juraram entre si
fidelidade sem quebra, e o céu que os ouviu pareceu neste momento registrar aquele juramento.
Sucedeu,
porém, que se apresentou diante do poeta um rival ao coração da moça. Era um
homem de 37 anos, seco de corpo e de espírito, inteligência acanhada, coração
mesquinho, vivendo dos sentidos, e não dos sentimentos, perfeita reprodução, dizia a moça, do primeiro
marido que ela teve. Chamava-se Venâncio.
Dizia ter
fortuna e tinha, razão poderosa do arrojo com que entrou em liça competindo com
o poeta. A moça recebeu-o, não com frieza, mas com desdém. Valeu-lhe isto uma repreensão do tio, que era
amigo do pretendente e que o achava merecedor de todos os respeitos.
— Mas, meu
tio, perguntou ela, sabe que o sr. Barroso quer?
— O que é?
— Quer...
amar-me.

— Quem te
disse isso?
—
Desconfio.
— Ora,
desconfianças...
— Oh! não
me engano; pode ficar certo de que é assim.
— Sabes
que mais? disse o tio. Não te previnas contra esse homem, respeitável a todos
os respeitos. É um caráter sério, fora dos homens do mundo, capaz de compreender
as conveniências, e além disso possuidor de uma fortuna. Não te rias assim, que
é indecente. Eu sei que as tuas preferências poéticas acham nesta consideração
da fortuna uma consideração sem valor. Isso é criancice. A fortuna é uma das
coisas mais respeitáveis.
— Meu tio,
observou ela, não parece estar muito convencido disso. O tio riu-se e, batendo-lhe na face, acrescentou:
— Já sei
por que dizes isso... Mas que queres? são coisas... Enfim, o que desejo é que
não maltrates o sr. Barroso.
Tudo isso
foi referido pela moça ao poeta. Riram ambos da pretensão e da proteção, e
descansaram por esse lado.
Não quero,
doutor, entrar nas mil particularidades do amor entre o poeta e a viúva.
Cartas, versos, flores, ósculos sinceros e castos, tudo isso que se troca entre
namorados, todos esses episódios romanescos e tão velhos como o mundo, tudo
isso se deu entre os meus dois heróis.
Estavam
próximos de pedirem o necessário consentimento para que a união legal confirmasse
a união moral em que eles existiam. Marcaram dia, e o poeta dispôs-se a usar
das palavras mais brandas e persuasivas que conhecesse da língua portuguesa
para convencer ao tio da sua amada de que podia fazer a felicidade dela.
Era
desnecessário dizer nada à própria mãe, que desde os primeiros dias do amor do
poeta ficou ciente por confissão dele.
Na véspera
do dia aprazado, o poeta foi ver a viúva. Achou-a muito triste. Indagou o
motivo dessa tristeza a que não estava afeito, mas não conseguiu arrancar uma
palavra à moça. Respondeu que tinha dores de cabeça, mas depois de muitas
instâncias e com ar de quem não dizia a verdade.
Passando a
falar do pedido em casamento, a viúva disse ao amante que o adiasse, e quando
este lhe perguntou que razões havia para isso, ela respondeu que lhas
comunicaria depois. Aconteceu logo o que era natural, um pequeno arrufo. E só
arrufo, porque ela deu aquela resposta entre tantos suspiros, com um olhar tão
convencido, tão sincero, que o poeta não pôde, o que lhe seria natural,
experimentar maior desgosto.
O doutor
sabe o que são arrufos dos namorados, é chuva miúda da primavera que tão
depressa vem como vai. No fim de alguns minutos tinham voltado às boas, e o
poeta despedia-se da viúva com a convicção de que só uma grande razão faria com
que ela adiasse o pedido do casamento.
Era com
efeito uma grande razão, como vai ver.
Desde
aquele dia em diante a viúva mudou. Mais e mais fria, mais e mais reservada, trazia o espírito do poeta entre a dúvida
e o desespero, entre a mágoa e a esperança. Que se teria passado? Em vão o
rapaz indagava todos os motivos
prováveis e possíveis; não podia atinar com a
causa de semelhante transformação.
prováveis e possíveis; não podia atinar com a
causa de semelhante transformação.
Enfim, uma
noite em que se achavam na casa de uma terceira pessoa, o poeta pôde falar a
sós à viúva. Expôs-lhe francamente o que sentia e fez um franco interrogatório
sobre a tristeza que a moça apresentava.
As
respostas da moça foram ambíguas. O poeta desesperou.
— Por que
me não falarás com franqueza, Carlota?
— Quer
mais franqueza?
— Oh! não
zombes! Tu não calculas o que sofro, nesta incerteza em que me pões. Sê franca,
prefiro isso.
— Não sei
que te hei de dizer.
— Dize o
que quiseres, inventa, se te parece, mas dize alguma coisa. Estas respostas
ambíguas, estas evasivas transparentes não me consolam, antes me deitam em pior estado. Não me amas?
— Amo-te.
—
Então?...
Esta
conversa foi interrompida. Nessa noite não puderam falar mais a sós.
O poeta
saiu desesperado. Sentia que algum segredo existia no fundo daquela tristeza da
moça... A suspeita curvou-se-lhe à cabeceira e introduziu-lhe no espírito mil
idéias negras que foram outros tantos demônios que fizeram daquela noite uma
noite infernal...
O poeta
não dormiu. Depois de vãos esforços levantou-se e foi... escrever versos! triste
consolação dos que a natureza dotou com o gênio da poesia. No fim de uma hora
de trabalho em que as estrofes lhe caíam do bico da pena como lágrimas de dor e de saudade, o poeta tinha
transferido parte de sua alma para o papel. Estava mais calmo, sem estar menos
triste.
Dois dias
conservou-se em casa sem falar a pessoa alguma. De hora a hora esperava uma
carta de Carlota. Nada. Ao terceiro dia, desesperado com o silêncio da viúva, resolveu ir, houvesse o que
houvesse, pedi-la ao tio. Já estava em caminho quando lhe ocorreu a idéia de
que sem completa averiguação dos motivos da tristeza da moça podia expor-se não
só ao desgosto, mas ainda ao desar. Voltou para casa e escreveu uma carta à
viúva pedindo-lhe explicações.
Veio a
resposta. Era um desengano. Carlota respondia que não podia amá-lo, e que se
esquecesse dela.
Dizer-lhe
o que o poeta sofreu é contar-lhe muita coisa que deve saber de longa data.
Sofreu... o que estou sofrendo. Caiu enfermo com uma febre violenta. Só daí a
um mês se levantou, mas então já tinha em si o germe de uma enfermidade mais
grave que depois o tomou de todo... e há de levá-lo à sepultura.
Durante a
moléstia fez loucuras incríveis. Tudo o que podia agravar-lhe o estado e
encaminhar-lhe a morte, fê-lo com uma alegria selvagem, mas sincera.
Enfim,
restabelecido da febre, mas, como disse, doente de outra doença, o poeta levantou-se
e não teve mão em si. Resolveu ir procurar a viúva. Queria a todo o
transe conhecer as causas da recusa de
Carlota, e sobretudo queria lançar-lhe em rosto a sua perfídia, de modo a não
parecer covarde.
transe conhecer as causas da recusa de
Carlota, e sobretudo queria lançar-lhe em rosto a sua perfídia, de modo a não
parecer covarde.
Carlota
recebeu-o com um gesto de surpresa. Foi a ele e perguntou-lhe se já estava bom.
Ele descobriu logo o fingimento daquela solicitude e quis mostrar que não se
enganava. Suas exprobrações foram enérgicas e veementes. Carlota ouviu-o com
uma espécie de torpor.
Depois,
quando a alma do poeta derramou em palavras amargas a dor de que estava
possuído, veio uma prostração moral, e o poeta, já mais brando, pediu a Carlota
uma explicação da carta que esta lhe mandara.
Então, a
viúva, fingindo um grande esforço, deu em pleno rosto ao namorado poeta uma
resposta que equivalia a um tiro. Disse-lhe que se ia casar, e com Venâncio.
Afigurava-se
ao poeta esta união como tão monstruosa, que ao princípio não quis acreditar nas palavras de Carlota. Olhou
surpreso para ela, mas surpreso como o homem que não dá crédito, e intimou-lhe
que falasse seriamente.
— Mais
seriamente do que falo? perguntou Carlota.
— Sim,
seriamente.
— É isto.
— Pois
deveras...
— É
verdade.
O rapaz
sentiu que lhe faltava o chão debaixo dos pés. Pareceu-lhe que ia cair em um abismo. É assim que deve ser a vertigem do
náufrago. Como o náufrago, o poeta
agarrou-se ao primeiro objeto que encontrou. Era um sofá. Encostou-se ao sofá e
olhou fixo para Carlota.
— Sei que
isto lhe há de doer, mas é necessário...
— Mas
ama-o?
— Amo.
— Ah! não
diga isso!
— Por que
não?
E fazendo
esta pergunta a moça mostrou um ar de desdém que o poeta humilhado, abatido,
indignado, não pôde dizer mais palavra. Foi, com passo incerto e vacilante,
buscar o chapéu que se achava sobre o piano, e cumprimentando
a viúva friamente, encaminhou-se para a porta.
A moça deu
alguns passos para ele e murmurou:
— Só uma
coisa lhe peço.
O poeta
deteve-se. Era ainda uma esperança que lhe surgia no meio daquela amargura e
desespero de que enchera sua alma. Interrogou-a com o olhar. A moça, pregando
os olhos no chão, disse:
— Não me
queira mal.

— Que não
lhe queira mal? Mas isto é zombaria... Não lhe queira mal!... Acha que me faz
um benefício... Não vê que me matou?
— Ah!
perdão... mas...
— Ama a
outro, não? perguntou o moço com ironia.
— Amo,
respondeu ela, mas de modo que o poeta antes adivinhou do que ouviu.
X
O moço
saiu desesperado da casa de Carlota.
Passaram-se
os dias. O mal que o minava foi tomando proporções maiores, e dentro de pouco
tempo declararam-se os tubérculos pulmonares. É a minha moléstia, como sabe,
doutor.
Aos
primeiros cuidados que tiveram amigos e parentes para que se curasse, o poeta
recusou peremptoriamente. Ofereceu-se ocasião de ir a Buenos Aires; não quis; e
para não dar a verdadeira razão desta recusa, disse que tinha esperança de
curar-se na terra natal, e que além disso tinha aversão às viagens marítimas.
Queria
morrer? perguntará o doutor. Queria e quer. Odiava a mulher? Não, amava-a,
ainda a ama, tudo que possa dizer e sentir contra ela, não é senão amor
disfarçado. Se não fosse assim, decerto que teria aceitado a vida que lhe ofereciam
às mãos cheias. Mas recusou tudo; aceitou a moléstia como um bem da Providência.
Pedir-me-á
a explicação deste amor por um monstro, e eu não saberei o que lhe hei de
dizer.
Todavia,
há um fato que me parece explicar tudo, e vem a ser: se o amor do poeta fora um
desses amores fáceis ou simplesmente uma dessas afeições que tomam base na
vaidade pueril, creio que a perfídia de Carlota teria ofendido a suscetibilidade, deixando intacto o coração,
porque realmente o coração não se interessa em afeições tais.
Mas o amor
do poeta não era esse: era o amor verdadeiro, o amor único; a traição não podia deixar de aniquilá-lo. Foi o
que sucedeu. Não sou filósofo, doutor;
mas afigura-se-me que as coisas se passaram assim.
Durante os
primeiros tempos de sua moléstia, o poeta procurou sempre todas as ocasiões em
que podia ver Carlota. A custo puderam contê-lo no dia do casamento da viúva.
Ele queria, à força, ir assistir a esta cena e confundir com a sua presença os
desposados.
Onde quer,
porém, que pudesse encontrá-la, e em poucos lugares era, o rapaz ia e não deixava de fixar nessa mulher os olhos
de dor e desespero. Depois, voltava mais doente e mais amante para casa. Houve
uma ocasião em que podia falar-lhe; não quis; entendia poder vê-la; falar-lhe
afigurava-se ao moço que seria condenável.
A moléstia
progredia até que se declarou perigosa. A ciência foi impotente diante do princípio do mal que lavrava, até que um
dia, no dia em que a Igreja celebra o nascimento do Salvador, poucas horas
antes de morrer, o moço contou esta história
ao sábio doutor que tratava dele.
Que me diz
a esta história?
XI
— Digo que
o ouvi a custo. Eu já sabia alguma coisa, mas não sabia tão completamente. Mas
que necessidade tinha de me referir essas coisas. Olhe, está pior, a tosse está
mais forte, vejo-o mais pálido e abatido. Foi imprudência...
— Não foi.
Eu desejava que o doutor ficasse sabendo de mais uma história destas que de tão
vulgares são algumas vezes tão funestas.
— Mas
diga-me...
— O quê,
doutor?
— Se as
coisas todas que me contou tivessem uma explicação, explicação razoável,
honesta; se em vez de monstro, Carlota fosse um anjo, viveria?
— Um anjo?
do mal!
— Mas
enfim...
— Não sei.
— Há de
viver. Se alguma coisa houver que o possa fazer, visto que nem a ciência, nem
os conselhos dos amigos podem fazê-lo sair desse abatimento em que está,
acredite que empregarei os meus esforços para lhe dar esse remédio supremo.
— Veja
sempre...
— Eu lhe
prometo. Entretanto, ainda uma vez lhe peço, não se deixe perder nessas recordações
angustiosas do passado; seja homem, e principalmente seja filho!...
— Minha
mãe!...
— Seja
filho. Lembre-se que ela não poderá resistir...
— Sinto
passos, doutor...
— É ela!
— Oh!
minha mãe!
Minha mãe
está mais pálida que eu. Interroga o doutor com o olhar, e este abaixa os
olhos. Que haverá entre ambos?
— Onde
vai, doutor?
— Vou
sair. Até já.
— Volta?
— Volto.
Mas espere, tome já este remédio.
— Então,
doutor, como acha meu filho?
— Vou
consultar alguns colegas e cá virei com eles. Talvez se possa fazer alguma coisa. Até
já. Coragem, meu doente!
São cinco
horas da tarde.
XII
Minha mãe
foi descansar um pouco. Coitada! passou a noite em claro, e durante todo o dia
de hoje não parou um instante.
O doutor
ficou de voltar e voltou com mais dois médicos. Examinaram-me e resolveram que
eu não estava tão perigoso como parecia. Depois assentaram no medicamento que
se devia empregar. Uma das cláusulas que me impõem é ir tomar ares. Não sei se o faça. Eu creio que
eles todos se enganaram acerca do meu
estado.
Daqui a
pouco estará findo o dia e com ele a minha vida, talvez. Estou pior. Sinto uma
opressão que me incomoda; minha mãe aconselhou-me que me deitasse, mas eu não
posso; quero morrer como homem.
Tenho
necessidade de escrever. Quero derramar a minha última gota de poesia no papel, e deixar ao mundo ao menos uma
lembrança de que fui mártir e poeta.
Será este
o canto do cisne.
Que direi?
Sinto a
cabeça pesada; e o meu espírito mal pode aplicar-se ao que a minha vontade o
solicita. Ah! já nem sou poeta! Musa ardente dos tempos da felicidade e do
sossego, onde paras agora que não vens reclinar-te, como outrora, à cadeira do
teu poeta infeliz?
Alguém
chega... Guardemos estes papéis... Quem é? Minha mãe!...
— Eu e
mais alguém, meu filho.
— Quem?
— Tens
coragem?
— Por quê,
minha mãe?
— Para o
que vais ver?
— É a
morte?
— É a
vida.
— Mande
entrar a vida, minha mãe.
XIII
Olhei,
era... era Carlota.
— Carlota!
Recuei até
à cama. Vi entrar uma mulher magra, abatida, doente; com os olhos fundos e
ardentes de febre. Vê-se que o remorso dilacera aquela alma. Vê-se que
ela pena os pecados em que caiu.
ela pena os pecados em que caiu.
Parou à
porta, e com as mãos magras, mas ainda belas, comprime o seio ofegante. Tem os
olhos baixos como de vergonha. Parece pregada ao lugar em que ficou.
Nem eu nem
ela podemos falar. Minha mãe toma-lhe a mão e trá-la para junto da janela.
— Não é
uma criminosa que vem implorar perdão, disse-me Carlota.
— Pois
quem é?
— Ah! eu
não quero perder tempo em longas explicações... Venho dizer-lhe que se a sua
vida depende da declaração de que eu o amo, pode morrer; porque eu não posso
fazer essa declaração. Mas se é razão para viver a certeza de que, no dia em que o repeli, ainda o amava, e que
casando com aquele que é hoje meu marido eu ainda o tinha na memória, viva;
porque isto é verdade.
— Carlota!
— É
verdade. Depois, a consciência do dever prevaleceu, e eu pude apesar da lembrança,
ver que me podia fazer feliz, mas que, casada com outro, só podia fazer a
desgraça de mim mesma.
Dizendo
estas palavras Carlota parece animada por um fogo interior. Será sincera? A franqueza com que falou parece
nascer de uma consciência sincera. Agora, o que me parecia remorso é vergonha,
é já outra coisa; reparo mais, é como que vejo na fronte desta mulher o sinal
do martírio e da dor.
Minha mãe
fê-la retirar-se. Eu não sei o que faço nem onde estou; parece-me que sonho;
abro os olhos mais e mais, e corro um olhar por todos os ângulos do quarto para
ver se com efeito estou na realidade.
Vê-la!
vê-la ainda, aqui, junto de mim, sincera, regenerada na minha consciência de um
crime que lhe atribuí, oh! meu Deus! isto é quase a felicidade!
Mas, se o
que ela diz é verdade, qual a explicação de todos estes fatos que tiveram tão
funestas conseqüências?
Carlota
adivinha esta interrogação íntima. Minha mãe fê-la sentar. Depois, tomando um
ar de recato e modéstia, Carlota procura referir todas as circunstâncias do seu
casamento.
XIV
O que ela
contou resume-se assim:
Quando,
nos seus sonhos de felicidade e de amor, ela contava unir-se a mim e viver uma
vida nova e única, veio transtornar os seus projetos o tio de quem já falei, e cuja neutralidade nos parecia a ambos
sem contestação.
Neutral
seria, decerto, o bom tio, se uma circunstância não o impelisse ao passo que
deu. Tenho certeza de que ele gostava de mim e de Carlota, mas a paixão e o
vício decidiram as coisas de modo diferente.
Venâncio
era um dos seus parceiros habituais do jogo. Era rico, e por essa circunstância,
talvez, tinha uma felicidade rara. A água corre para o mar, diz o
provérbio. O dinheiro dos parceiros corria
para a algibeira farta de Venâncio.
provérbio. O dinheiro dos parceiros corria
para a algibeira farta de Venâncio.
Até então,
isto é, até a hora em que o tio de Carlota conheceu Venâncio, a boa sorte tinha
protegido aquele. Mas Venâncio apareceu com a sua felicidade inaudita e bem
depressa os últimos recursos do velho se esgotaram. É sabido como o jogo dá
certa embriaguez que mais se exalta com a má fortuna. O tio de Carlota
atirou-se às últimas operações. Jogou a crédito e perdeu. Insistiu e perdeu
ainda. Insistiu, insistiu e perdeu sempre. Recuou a conselho de alguns amigos.
As
quantias perdidas ao jogo com Venâncio perfaziam uma soma avultada. O tio de
Carlota achou-se repentinamente em uma posição difícil. Como pagar-lhe? Escasseados
os recursos, nem tinha onde buscar, ainda por empréstimo, a grossa quantia de
que era devedor. Em tal situação só havia um meio. Pôr termo ao vício que o
arruinara e procurar no trabalho, se fosse possível, o saldo de tão enorme
dívida.
Este era o
meio razoável, se porventura a lei do jogo, que é uma lei arbitrária como o
próprio vício em que se funda, não o obrigasse a um prazo breve e fatal.
O tio de
Carlota pensou nisto e desanimou. Era um abismo que tinha diante de si. Os
recursos de Carlota, que eram escassos, não podiam, no caso de generosidade
da moça, servir para uma quinta parte da dívida. Era despojá-la do patrimônio
sem proveito.
O
desgraçado, sem saber que fazia, sem meios reais, nem recursos da imaginação,
saiu um dia de manhã em direção à casa de Venâncio.
Devo dizer
que, já antes do desastre que fez de Venâncio um pesadelo para o tio de
Carlota, o credor freqüentava a casa deste.
O tio de
Carlota entrando em casa de Venâncio não tinha uma idéia a apresentar; ia
conversar e apanhar a primeira idéia que lhe sugerisse a conversa, ou aceitar o projeto
razoável que o credor lhe indicasse.
Venâncio
recebeu o devedor com o mais amável dos sorrisos nos lábios. Isto animou o
desgraçado devedor.
— A que
devo a sua visita?
— Não
adivinha?
— À dívida?
— É
verdade.
— Vem
pagá-la? Não havia pressa.
— Não, não
venho pagá-la.
— Ah!
Vê-se que
este intróito não era dos mais animadores. O tio de Carlota calou-se e mudou de
conversa, sendo acompanhado no novo assunto por Venâncio, que se porfiava
em ser o mais amável deste mundo.
Depois de
meia hora de conversa sobre coisas diferentes, Venâncio voltou bruscamente
ao assunto da dívida.
O devedor
empalideceu.
Que
responder?
Os olhos
de Venâncio estavam pregados nele, e quanto mais corriam os minutos, mais vazio se achava o espírito do tio de
Carlota.
Enfim,
como era preciso responder alguma coisa, o pobre homem disse francamente que
não podia pagar, e que nem lhe ocorria o meio para isso.
Venâncio
sorriu e respondeu:
— Pois é
simples. Há três dias que a fortuna me desampara, e como velho jogador que é, deve saber que ela tem seus
caprichos e muitas vezes abandona os antigos aliados para acompanhar outros
novos. Talvez que ela hoje esteja do seu lado.
O tio de
Carlota estremeceu a esta proposta. A alma do jogador despertou e sentiu-se
arrastada para a banca. Ganhar em dois minutos tudo o que perdera, ver-se de um
só lance aliviado de uma obrigação e de um peso no espírito, era para o devedor
a suprema felicidade.
Não
hesitou, senão o tempo necessário ao espanto que lhe causava a proposta, e levantando-se,
com as mãos estendidas para Venâncio, declarou-lhe alvoroçado que aceitava.
Tudo se
preparou para o duelo fatal.
Diante da
mesa em que se ia decidir a sua sorte, o tio de Carlota cobrou novo ânimo.
Venâncio
estava frio e tranqüilo. Parecia que não jogava dinheiro, e dinheiro avultado.
O tio de
Carlota acompanhou a partida ansioso e atordoado. Não respirava, com a mão oprimia o coração e com os olhos parecia
querer arrancar do baralho a carta feliz...
Infeliz! a
carta que saiu dava ganho a Venâncio.
O tio de
Carlota soltou um grito.
— Quer
mais? perguntou friamente Venâncio.
— Não!
não!
— Deve-me
o dobro.
— Como lhe
poderei pagar? Oh! meu Deus!
— Não se
aflija, disse o credor. Isto não é sangria desatada; não lhe exijo agora o
pagamento; pode pagar amanhã, depois, daqui a um mês... e até...
— E até?
— Até
nunca.
— Nunca!
— Nunca.

A
estranheza das palavras de Venâncio e o ar frio que ele apresentava fizeram impressão
no tio de Carlota.
—
Explique-se, disse ele.
— É
simples. Há de crer que por muito exigente que eu fosse nunca poria em sérias
dificuldades um tio. A um estranho é possível, é até certo, mas a um tio... Ora, nada
impede que eu seja seu sobrinho.
O tio de
Carlota não compreendeu e não respondeu.
— Não
compreendeu? perguntou Venâncio.
— Meu
sobrinho, como?
— Não tem
uma sobrinha? perguntou Venâncio.
— Ah!
Venâncio
expôs demoradamente a sua pretensão. Pediu formalmente a mão de Carlota. O
tio hesitou ainda, disse-o ao menos depois à sobrinha, mas este casamento
era a sua salvação. Depois, Venâncio tivera o cuidado de convencê-lo de que ele
não era indiferente à viúva. Enfim, quando saiu da casa de Venâncio, o tio de
Carlota deixou-lhe prometida a mão de sua sobrinha.
Quando esta ouviu de seu tio a proposta de Venâncio, repeliu-a peremptoriamente.
Mas o tio, entre as lágrimas da sua conveniência, chegou a convencer
a pobre moça de que casar com Venâncio era salvá-lo da desonra. Carlota
pediu dilação para refletir. A reflexão foi contrária ao coração. Carlota aceitou a
proposta, não sem exprobrar a seu tio a funesta paixão que o seduzira a cometer
um ato de aviltamento.
Quanto a
Venâncio, ela teve o cuidado de declarar-lhe que impunha uma condição.
— Aceito
todas, respondeu Venâncio.
— Faço o
sacrifício da minha pessoa, mas exijo ao menos eu não seja mulher de um
jogador.
— Juro-lhe
que não será.
E não foi.
Uma paixão neutralizou outra. Venâncio era dessas naturezas escravas da
sensualidade, que estimam as estátuas, não pelo cunho de beleza ideal que elas
possam ter, mas pela vista e exuberância das formas exteriores.
XV
Tal foi a
história que Carlota me contou.
Quando ela
acabou tinha eu o rosto escondido nas mãos; palpitava-me o coração com uma
força desusada. Minha consciência restituía à infeliz moça os créditos de elevação
moral em que a tinha anteriormente aos tristes acontecimentos de que ela foi
vítima. Em vez de um monstro tinha eu diante de mim uma mártir.
— Se esta
simples exposição dos fatos, disse-me ela, pode torná-lo à vida, viva; eu lhe
peço. Viva por sua mãe e para sua mãe. Se eu ainda o amasse, ou pudesse
amá-lo, dir-lhe-ia que vivesse por mim.
— Tem
razão, respondi eu.
E tomando
a mão de Carlota, beijei-lhe respeitosamente. Não era um beijo de amor, era um
beijo de gratidão. Depois do que ela me disse eu sentia que voltava à vida.
— Agora,
disse ela, adeus.
E saiu.
Minha mãe
não a deixou sair sem cobri-la de beijos verdadeiramente maternais.
XVI
26 de
Dezembro
São dez
horas da manhã.
Passei uma
noite tranqüila. Tive sonhos felizes. Sonhei que estava bom e vivia com minha
mãe em uma casa retirada do bulício e da agitação. Voltavam os meus dias de
poeta, e eu cantava em estrofes inspiradas a ventura que me dava a paz do
coração e da consciência.
Não sei
por quê, esta perspectiva de felicidade já me não desgosta, e nem já me causa
ressentimento a alegria expansiva e radiante da natureza.
Ao mesmo
tempo, a idéia tão poética dessa vida sossegada e feliz é contrariada pela
idéia de que perdi Carlota em virtude de um contrato fundado sobre o vício. Esta
idéia traz-me à vida real, e eu olho já os sonhos do passado e o desta noite como
ilusões sem realidade prática.
A prática
é outra coisa. Não transigir com os desvios dos homens, mas viver preparado
para eles, tal é a norma regular que se me afigura devem ter todas as consciências honestas e previdentes.
Deixar-me
seduzir por novas ilusões e expor-me a novos desenganos e torturas?
É o que
farei... se ficar bom.
Ficarei?
O doutor
me dirá.
O doutor!
É seguramente a ele que eu devo esta transformação na minha vida. Foi, sem dúvida, ele quem encaminhou aquela
explicação que tão benéfica foi para
mim.
Farei tudo
o que puder para ficar bom.
Oh! minha
mãe! minha mãe!
* * *
XVII
EPÍLOGO

Um ano
depois, encontravam-se ao pé da estação do Campo, para tomar o caminho de
ferro, dois homens, um moço, o outro velho. Olham-se e reconhecem-se.
Depois entram, compram bilhetes e tomam lugar em um carro de 1ª
classe.
— Para
onde vai? pergunta o velho.
— Vou para
o Rodeio.
— Também
eu.
Acomodaram-se,
e, enquanto esperavam a hora, e não vinha mais ninguém para o mesmo
compartimento, trataram de conversar sobre coisas de sua vida.
— Que faz
agora? perguntou o moço ao velho.
— Sou um
ex-médico. Vivo do que ajuntei.
— Eu sou
um ex-poeta. Vivo do que aprendi.
— Fortuna
por fortuna. Mas há uns bons seis meses que o não vejo. Ora, quem diria que
aquele rapaz magro e quase morto se converteria neste rapagão corado,
nédio, robusto... Bem lhe dizia eu.
— Devo-lhe
tudo.
— A mim,
não.
—
Devo-lhe, sim.
— É então
ex-poeta?
— Sou. Sou
hoje o homem-prosa, vivo terra-a-terra, livre das quimeras que me atordoaram
e nas quais não encontrei senão dissabores. Quis forçar a ordem das coisas e
opor aos sentimentos comuns a idealidade dos meus sentimentos. Sofri as
conseqüências desta temeridade. Hoje, se não reneguei o culto da poesia, não faço praça
dele, de modo que aquele dia em que me viu tão desanimado foi, por assim
dizer, o último dia de um poeta.
O doutor
olhou para o moço com ar incrédulo.
— Isso é
verdade? perguntou.
— Mais que
verdade.
— Não
pensei que a mudança fosse radical. E D. Carlota?
— Essa
vive, coitada, não sei se como eu. Nunca mais a vi. Bem sabe que uma barreira
nos separava. Mas eu conservo-a comigo. Perdão, doutor... é a minha ilusão de
namorado, de poeta e de rapaz... mas como vê, é inofensiva.
E o moço
tirou um medalhão em que estavam as margaridas que durante a febre beijava e
adorava.
— E sua
mãe?
— Oh! essa
é feliz! Vive comigo no Rodeio, onde nada nos perturba a felicidade santa de
que gozamos. Pela felicidade que ela sente vendo-me vivo e são é que avalio a
dor suprema que sentiria se eu morresse. Fiz bem em não morrer.
— Pois,
meu amigo, continue a contar com a minha amizade, que agora é ainda maior. Ame
e respeite sua mãe; procure esquecer os sucessos que motivaram a catástrofe de
sua vida, e, sem repudiar a missão normal que Deus lhe deu, não confie de um
mundo frio e egoísta as santas aspirações da sua jovem inteligência.
—
Obrigado, doutor.
Neste
momento entrou no carro um casal; o marido, homem de trinta e oito anos, a
mulher... não se podia ver através de um véu preto que lhe cobria o rosto.
Pouco
depois o carro partiu.
A moça,
que até então não voltara o rosto, teve necessidade de fazê-lo para responder a
uma pergunta do marido. O marido achava-se entre ela e o ex-poeta. A moça deu
um pequeno grito. Interrogada por seu marido, respondeu que fora uma dor aguda
no coração.
— Há de
ser de cansaço, acrescentou ela.
Era
Carlota, como já se adivinha.
Durante o
resto da viagem nenhum incidente mais ocorreu. A mulher e o marido conversavam sossegadamente; o ex-poeta e o
ex-médico conversavam do mesmo modo.
Chegando à
última estação separaram-se todos. O doutor prometeu ir jantar à casa do rapaz.
Viram-se
ainda muitas vezes, mas o encontro do vagão foi o último que houve entre o
rapaz e Carlota.
---
Nota:
Texto-fonte:
Publicado originalmente em Jornal
das Famílias, 1867. Disponível
digitalmente no site: Domínio
Público
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