
O CARRO Nº 13
I
A fazenda da Soledade está situada no centro de um rico município
fluminense, e pertencia há dez anos ao comendador Faria, que a deixou em
herança ao único filho que teve do primeiro matrimônio, e que se chama o dr.
Amaro de Faria. O comendador morreu em 185..., e poucos meses depois morreu a
viúva, madrasta de Amaro. Não havendo filhos nem colaterais, veio o dr. Amaro a
ficar senhor e possuidor da fazenda da
Soledade, com trezentos escravos, moendas de cana, grandes plantações de café, e vastíssimas
florestas de magníficas madeiras. Conta redonda, possuía o dr. Amaro de Faria
uns dois mil contos e vinte oito anos de idade. Tinha uma chave de ouro para
abrir todas as portas.
Era
formado em direito pela Faculdade de S. Paulo, e os cinco anos que ali passou
foram os únicos em que esteve ausente da casa paterna. Não conhecia a corte,
onde apenas estivera algumas vezes de passagem. Apenas recebeu a carta de
bacharel retirou-se para a fazenda, e já ali se achava havia cinco anos quando lhe
faleceu o pai.
Todos
supuseram, apenas morreu o comendador, que o dr. Amaro continuasse a ser
exclusivamente fazendeiro sem importar-se com mais coisa alguma do resto do
mundo. Efetivamente eram essas as intenções do moço; o diploma de bacharel
servia-lhe apenas para mostrar em qualquer tempo, se necessário fosse, um
título científico; mas ele não tinha intenção alguma de usar dele. O presidente
da província, andando um dia em viagem, hospedou-se na fazenda da Soledade, e
depois de uma hora de conversa ofereceu ao dr. Amaro um cargo qualquer; mas o jovem fazendeiro recusou,
dando em resposta que desejava simplesmente cultivar o café e a cana sem
importar-se com o resto da república. O presidente dificilmente conciliou o
sono, pensando em tamanha abnegação e indiferença da parte do rapaz. Uma das
convicções do presidente era que não havia Cincinatos.
Estavam as
coisas neste pé, quando apareceu na fazenda da Soledade um antigo colega de
Amaro, formado ao mesmo tempo que ele e possuidor de alguma fortuna.
Amaro
recebeu alegremente o companheiro, que se chamava Luís Marcondes, e vinha da
corte expressamente para visitá-lo. A recepção foi como costuma ser no nosso
hospitaleiro interior. Tomada a primeira xícara de café, Marcondes disparou contra
o colega esta carga de palavras:
— Então,
que é isto? Estás metido em corpo e alma no café e no açúcar? Disseram-me isto
apenas cheguei à corte, porque, não sei se sabes, vim há
poucos meses de Paris.
poucos meses de Paris.
— Ah!
— É
verdade, meu Amaro, estive em Paris, e hoje compreendo que a maior desgraça deste mundo é não ter estado naquela
grande cidade. Não imaginas, meu rico,
que viver é aquele! Ali não falta nada; é pedir por boca. Corridas, bailes,
teatros, cafés, parties de
plaisir, é uma coisa ideal, é um sonho, é o chic... É
verdade que os cobres não se conservam muito tempo na algibeira. Ainda bem correspondente não acaba de entregar os mil
francos, já eles correm pela porta fora; mas vive-se. Mas, como ia dizendo,
quando cheguei à corte, a primeira notícia que me deram foi que tu estavas
fazendeiro. Custou-me a acreditar. Tanto teimaram, que eu quis vir examinar a
coisa com os meus próprios olhos. Parece que é exato.
— É,
respondeu Amaro. Bem sabes que eu estou acostumado a isto; aqui fui educado, e, apesar de ter estado algum tempo
fora, creio que em nenhuma parte estarei tão bem como aqui.
— O hábito
é uma segunda natureza, disse sentenciosamente Marcondes.
— É
verdade, retorquiu Amaro. Dou-me bem, e não acho que a vida seja má.
— Que a
vida seja má? Em primeiro lugar, não está provado que isto seja vida; é vegetação.
Comparo-te a um pé de café; nasceste, cresceste, vives, dás fruto, e morrerás
na perfeita ignorância das coisas da vida... Para um rapaz da tua idade, que é inteligente, e possui dois mil contos,
semelhante viver equivale a um suicídio. A sociedade exige...
A conversa
foi interrompida pelo jantar, que livrou ao fazendeiro e ao leitor de um discurso de Marcondes. Na academia o jovem
bacharel era conhecido pela alcunha de perorador, graças à mania que ele tinha
de discursar a propósito de tudo. Amaro ainda se lembrava da arenga que
Marcondes pregou a um bilheteiro de
teatro por uma questão de preço de bilhete.
II
A maçada
estava apenas adiada.
Durante o
jantar a conversa versou sobre as recordações dos tempos acadêmicos, e as
novidades mais frescas da corte. No fim do jantar Marcondes consentiu em ir ver os engenhos e algumas
obras da fazenda, em companhia de Amaro e do professor público da localidade,
que, estando em férias de Natal, fora passar alguns dias com o jovem
fazendeiro. O professor tinha a mania de citar os usos agrícolas dos antigos a
propósito de cada melhoramento moderno, o que provocava um discurso de
Marcondes e um bocejo de Amaro.
Chegou a
noite, e o professor foi deitar-se, menos por ter sono que por fugir às perorações
de Marcondes. Este e Amaro ficaram sós na sala de jantar, para onde vieram café
e charutos, e entraram ambos a conversar de novo sobre os tempos da academia.
Cada um deles deu notícia dos companheiros de ano, os quais andavam todos
dispersados, uns juízes municipais, outros presidentes de província, outros deputados, outros advogados,
muitos inúteis, entre os quais o jovem Marcondes, que dizia ser o homem mais
feliz da América.
— E a
receita é simples, dizia ele a Amaro; deixa a fazenda, faze uma viagem, e verás.

— Não
posso deixar a fazenda.
— Por quê?
Não és bastante rico?
— Sou;
mas, enfim, a minha felicidade é esta. Demais, eu aprendi com meu pai a não
deixar a realidade pelo incógnito; o que eu não conheço pode ser muito bom; mas
se o que eu tenho é igualmente bom, nada de arriscá-lo para investigar o desconhecido.
— Bela teoria!
exclamou Marcondes pondo no pires a xícara de café que ia levando à boca; desse
modo, se o mundo pensasse sempre assim, ainda hoje vestíamos as peles dos
primeiros homens. Colombo não teria descoberto a América; o capitão Cook...
Amaro
interrompeu esta ameaça de discurso, dizendo:
— Mas eu
não quero descobrir nada, nem imponho os meus sentimentos como opinião. Estou
bem; por que motivo irei eu agora ver se encontro melhor felicidade, arriscando-me a não encontrá-la?
— És um
carrança! Não falemos nisto.
Cessou,
com efeito, a discussão. Entretanto Marcondes, ou de propósito, ou por vaidade
— talvez ambos os motivos —, entrou a contar a Amaro as suas intermináveis
aventuras no país e no estrangeiro. A narrativa dele era uma mistura de
história e de fábula, de verdade e de invenção, que entreteve largamente o
espírito de Amaro até alta noite.
Marcondes
conservou-se na fazenda da Soledade cerca de oito dias, e jamais cessou de
conversar acerca do contraste que oferecia aquilo que ele chamava vida com o
que lhe parecia simples e absurda vegetação. O caso é que no fim de oito dias
tinha conseguido que Amaro fosse viajar à Europa com ele.
— Quero
obsequiar-te, dizia Amaro a Marcondes.
— Hás de
agradecer-me, respondia este.
Marcondes
foi para a corte, esperou pelo jovem fazendeiro, que daí a um mês aí se achou,
tendo entregue a fazenda a um velho amigo de seu pai. No primeiro paquete
embarcaram os dois colegas da academia, caminho de Bordéus.
III
Importa-nos
pouco, e mesmo nada, o saber da vida que passaram os dois viajantes na Europa.
Amaro, que tinha tendências sedentárias, apenas chegou a Paris aí ficou, e como
Marcondes não desejava passar além, não o importunou por mais.
Uma
capital como aquela tem sempre que ver e admirar: Amaro ocupou-se com o estudo
da sociedade em que vivia, dos monumentos, dos melhoramentos, dos costumes, das artes, de tudo. Marcondes, que
tinha outras tendências, tratou de levar o amigo para o centro dos que ele
chamava prazeres celestes. Amaro não resistiu, e foi; mas tudo cansa, e o
fazendeiro não encontrou em nada daquilo a felicidade que o amigo lhe
anunciara. No fim de um ano, Amaro determinou voltar para a América, com grande
desgosto de Marcondes, que em vão procurou
retê-lo.
Voltou
Amaro aborrecido com ter gasto um ano sem vantagem alguma, a não ser
o ter visto e admirado uma grande capital. Mas
a felicidade que ele devia ter? Essa nem por sombra.
o ter visto e admirado uma grande capital. Mas
a felicidade que ele devia ter? Essa nem por sombra.
— Fiz mal,
dizia ele consigo, em ter cedido aos conselhos. Vim em busca do desconhecido. É
uma lição que me há de aproveitar.
Embarcou,
e chegou ao Rio de Janeiro, com grande alegria no coração. O seu desejo era
seguir logo para a fazenda da Soledade. Mas lembrou-se de que existiam na corte
algumas famílias da amizade da sua, a quem cumpria ir falar antes de partir para
o interior.
— Quinze
dias é bastante, pensou ele.
Meteu-se
num hotel, e logo no dia seguinte começou a romaria das visitas.
Uma das
famílias a quem Amaro visitou era a de um fazendeiro de Minas, que em virtude de vários processos que teve por motivo
de relações comerciais viu reduzidos os seus bens, e mudara-se para a corte,
onde vivia com a fortuna que lhe restava. Chamava-se Carvalho.
Aí achou
Amaro, como fazendo parte da família, uma moça de vinte e cinco anos, de nome
Antonina. Era viúva. Estava em casa de Carvalho, porque este fora íntimo amigo
do pai dela, e como este já não existisse, e ela não quisesse viver só, depois
de viúva, Carvalho recebeu-a em casa, onde era tratada como filha mais velha.
Antonina tinha alguma coisa de seu. Era prendada, espirituosa, elegante. Carvalho admirava sobretudo a sua
penetração de espírito, e não cessava de elogiar-lhe essa qualidade, que para
ele era suprema.
Amaro
Faria foi lá duas vezes em três dias, como simples visita; mas no quarto dia sentiu já em si uma necessidade de lá
voltar. Se tivesse partido para a fazenda era possível que não lhe lembrasse
mais nada; mas a terceira visita produziu
outra, e outras, até que no fim de quinze dias, em vez de partir para a roça,
Amaro dispunha-se a residir largo tempo na corte.
Estava
namorado.
Antonina merecia
ser amada por um rapaz como Faria. Sem ser
deslumbrantemente formosa, tinha umas
feições regulares, uns olhos ardentes, e era muito simpática. Gozava de geral
consideração.
O rapaz
era correspondido? Era. A jovem correspondeu logo ao afeto do fazendeiro, com
certo ardor que aliás o mancebo partilhava.
Quando
Carvalho desconfiou do namoro, disse a Amaro Faria:
— Já sei
que você tem namoro cá em casa.
— Eu?
— Sim,
você.
— Pois
sim, é verdade.
— Não há
nada de mau nisto. Eu apenas quero dizer-lhe que tenho olho vivo, e nada me
escapa. A rapariga merece.
— Oh! Se
merece! Quer saber de uma coisa? Eu já abençôo aquele maldito Marcondes que me
arrancou lá da fazenda, pois que eu venho achar aqui a minha felicidade.

— Então é
decidido?
— Se é!
Pensando bem, eu não posso deixar de casar-me. Quero ter uma vida calma, é o
meu natural. Achando uma mulher que não exija modas nem bailes estou contente.
Creio que esta é assim. Além disso é bonita...
— E mais
que tudo discreta, acrescentou Carvalho.
— É o
caso.
— Bravo!
Posso avisá-la de que...
—
Toque-lhe nisso...
Carvalho
trocou estas palavras com Amaro na tarde em que este lá jantou. Na mesma noite,
quando Amaro se despediu, disse-lhe Carvalho em particular:
—
Toquei-lhe naquilo: a disposição é excelente!
Amaro foi
para casa disposto a fazer no dia seguinte a sua proposta de casamento a
Antonina.
E, com
efeito, no dia seguinte apareceu Amaro em casa de Carvalho, como costumava, e
aí, em conversa com a viúva, perguntou-lhe francamente se queria casar com ele.
— Ama-me
então? Perguntou ela.
— Deve
tê-lo percebido, porque eu também percebi que sou amado.
— É, disse
ela com a voz um pouco trêmula.
—
Aceita-me por marido?
— Aceito,
disse ela. Mas repita que me ama.
— Cem
vezes, mil vezes, se quer. Amo-a muito.
— Não será
um fogo passageiro?
— Se eu
empenho a minha vida inteira!
— Todos a
empenham; mas depois...
— Começa
então por uma dúvida?
— Um
receio natural, um receio de quem ama...
— Não me
conhece ainda; mas verá que eu digo a verdade. É minha, sim?
— Perante
Deus e os homens, respondeu Antonina.
IV
Estando as
coisas assim tratadas, não havendo obstáculo algum, fixou-se o casamento para
dali a dois meses.
Amaro já
abençoava o haver saído da fazenda, e nesse sentido escreveu uma
carta a Marcondes agradecendo-lhe a tentação
que exercera nele.
carta a Marcondes agradecendo-lhe a tentação
que exercera nele.
A carta
terminava assim:
Mefistófeles
do bem, eu te agradeço as tuas inspirações. Na Soledade havia tudo, menos a
mulher que agora encontrei.
Como se
vê, não aparecia a menor sombra no céu da vida do nosso herói. Parecia impossível
que alguma coisa viesse turvá-lo.
Pois veio.
Uma tarde,
entrando Amaro Faria para jantar achou uma carta com o selo do correio.
Abriu-a e
leu-a.
A carta dizia
isto:
Uma pessoa
que o viu há dias no Teatro Lírico, num camarote da segunda ordem, é quem
escreve esta carta.
Há quem
atribua o amor a simpatias elétricas; não tenho nada com essas investigações; mas o que me acontece faz
crer que os que adotam aquela teoria tenham razão.
Era a
primeira vez que o via e logo, sem saber como, nem por que razão, senti-me
dominada pelo seu olhar.
Passei uma
noite horrível.
O senhor
estava ao pé de duas senhoras, e conversava ternamente com uma delas. É sua
noiva? é sua mulher? Não sei; mas seja o que for, bastou-me vê-lo assim, para
odiar o objeto das suas atenções.
Talvez que
haja loucura neste passo que dou; é possível, porque eu perdi a razão. Amo-o
doidamente, e bem quisera poder dizer-lhe em face. É o que nunca farei. Os meus
deveres obrigam-me a esta reserva; estou condenada a amá-lo sem confessar que o
amo.
Basta,
porém, que o senhor saiba que há uma mulher, entre todas as desta capital, que
apenas o vê estremece de júbilo e de desespero, de amor e de ódio, por não
poder ser sua, unicamente sua.
Amaro
Faria leu e releu esta carta. Não conhecia a letra, nem podia imaginar quem
fosse a autora. Soube apenas o que lhe dizia a carta; nada mais.
Passado
porém esse primeiro movimento de curiosidade, o fazendeiro da Soledade guardou a carta, e foi passar a noite
em casa de Carvalho, onde Antonina o
recebeu com a ternura do costume.
Amaro quis
referir a aventura da carta; mas receando que um fato tão inocente pudesse
causar infundados ciúmes à futura esposa, não disse palavra a esse respeito.
Daí a dois
dias nova carta o esperava.
Desta vez
Amaro abriu a carta apressadamente, por ter visto que a letra era a mesma.

O romance
começava a interessá-lo.
Dizia a
carta:
Foi inútil
o meu protesto. Quis deixar de escrever-lhe mais; apesar de tudo, sinto que não
posso deixar de fazê-lo. É uma necessidade fatal...
Ah! os
homens ignoram quanto esforço é preciso a uma mulher para conter-se nos limites
do dever.
Hesitei
muito em escrever-lhe a primeira carta, e esta mesmo não sei se lha remeterei;
mas o amor triunfou e triunfará sempre, porque eu já não vivo senão pela sua
lembrança! De noite e de dia, a todas as
horas, em todas as circunstâncias, a sua pessoa está sempre presente ao meu espírito.
Sei o seu
nome, sei a sua posição. Sei mais que é um homem de bem. O senhor é que não sabe quem eu sou, e
pensará ao ler estas cartas, que eu ando em busca de um romance que me
rejuvenesça o coração e as feições. Não; sou moça, e posso afirmar que sou bela.
Não é porque mo digam; poderão querer lisonjear-me; mas o que não é lisonja é o
murmúrio de admiração que eu ouço apenas entro numa sala ou passo em alguma
rua.
Desculpe
se lhe falo de mim com esta linguagem.
O que
importa saber é que eu o amo perdidamente, e que a ninguém mais pertenço, nem
pertencerei.
Uma carta
sua, uma linha, uma lembrança, para que eu tenha uma relíquia e um talismã.
Se quiser
fazer esta graça em favor de uma mulher desgraçada, escreva a P. L., e mande
pôr no correio, que eu lá mandarei buscar.
Adeus!
adeus!
Amaro
Faria não estava acostumado a romances destes, nem eles são comuns na vida.
A primeira
carta produzira-lhe uma certa curiosidade, que aliás passou; mas a segunda já
lhe produzira mais; sentia-se atraído para o misterioso e o desconhecido, isso
a que ele fugira sempre, contentando-se com a realidade prática das coisas.
— Devo
escrever-lhe? perguntava ele consigo. É positivo que esta mulher ama- me; não
se escrevem cartas assim. É bonita, porque o confessa sem medo de prová-lo
algum dia. Mas devo escrever-lhe?
Nisto
batem palmas.
V
Era Luís
Marcondes que chegava da Europa.
— Que é
isto? já de volta? perguntou-lhe Amaro.

— É
verdade; para variar. Eu é que me admiro de achar-te na corte, quando já te fazia na fazenda.
— Não, não
fui à Soledade depois que voltei; e vais espantar-te da razão; vou casar-me.
—
Casar-te!
— É
verdade.
— Com a
mão esquerda, morganaticamente...
— Não,
publicamente, e com a mão direita.
— É
assombroso.
— Dizes
isso porque não conheces a minha noiva; é um anjo.
— Então
dou-te os meus parabéns.
— Hei de
apresentar-te hoje. E para festejar a tua chegada jantas comigo.
— Sim.
À mesa do
jantar, Amaro contou a Marcondes a história das cartas; e leu-lhes ambas.
— Bravo!
disse Marcondes. Que lhe respondeste?
— Nada.
— Nada! És
um grosseirão e um tolo. Pois uma mulher escreve-te, mostra-se apaixonada por
ti, e tu nada lhe respondes? Não fará isso o Marcondes. Desculpa se te falo em
verso... O velho Horácio...
Estava
iminente um discurso. Faria, para atalhá-lo, apresentou-lhe a lista, e Marcondes
passou rapidamente do velho Horácio a um assado com batatas.
— Mas,
continuou o amigo de Amaro, não me dirás por que motivo lhe não respondeste?
— Eu sei
lá. Primeiramente porque não estou acostumado a esta espécie de romances vivos,
começando por cartas anônimas, e depois porque vou casar...
— A isso
respondo eu que uma vez é a primeira, e que o ires casar não impede nada. Indo
daqui para Botafogo, não há motivo nenhum que me impeça de entrar no Passeio Público
ou na Biblioteca Nacional... Queres tu ceder-me o romance?
— Isso
nunca: seria uma deslealdade...
— Pois
então responde.
— Mas que
lhe hei de dizer?
— Dize-lhe
que a amas.
— É
impossível; ela não pode acreditar...
— Pateta!
disse Marcondes pondo vinho nos cálices. Dize-lhe que a simples leitura das
cartas te puseram a cabeça a arder, e que já sentes que hás de vir a
amá-la, se já não a amas... e neste sentido
escreve-lhe três ou quatro laudas.
amá-la, se já não a amas... e neste sentido
escreve-lhe três ou quatro laudas.
— Então
achas que eu devo...
— Sem
dúvida alguma.
— Para
falar a verdade eu tenho certa curiosidade...
— Pois
avante.
Amaro
escreveu nessa mesma tarde uma carta concebida nestes termos, que Marcondes
aprovou integralmente:
Senhora. —
Quem quer que seja, é uma alma grande e um coração de fogo. Só um grande amor
pode aconselhar um passo destes tão arriscado.
Li e reli
as suas duas cartas; e hoje, quer que lhe diga? penso nelas exclusivamente;
fazem-me o efeito de um sonho. Eu pergunto a mim mesmo se é possível que eu
inspirasse tal amor, e agradeço aos deuses o ter-me demorado aqui na corte,
pois que tive ocasião de ser feliz.
Na minha
solidão as suas cartas são um íris de esperança e de felicidade.
Mas eu
seria mais completamente feliz se pudesse conhecê-la; se me fosse dado vê-la de perto, adorar sob a
forma humana este mito que a minha imaginação está criando.
Ousarei
esperá-lo?
É já
grande atrevimento conceber semelhante idéia; mas espero que me perdoará,
porque o amor perdoa tudo.
Em
qualquer caso, fique certa de que eu sinto-me com forças para corresponder ao
seu amor, e adorá-la como merece.
Uma
palavra sua, e ver-me-á correr por entre os mais insuperáveis
obstáculos.
A carta
foi para o correio com as indicações necessárias; e Amaro, que ainda hesitou no
momento de mandá-la, dirigiu-se à noite para casa da noiva em companhia de Luís
Marcondes.
VI
Antonina
recebeu o noivo com a mesma alegria do costume. Marcondes agradou a todas as
pessoas da casa pelo gênio galhofeiro que tinha, e apesar da tendência para os
discursos intermináveis.
Quando,
pelas onze horas e meia da noite, saíram de casa de Carvalho, Marcondes
apressou-se a dizer ao amigo:
— A tua
noiva é linda.
— Não
achas?

— Decerto.
E parece que te quer muito...
— É por
isso que eu lamento ter escrito aquela carta, disse Amaro suspirando.
— Olha que
parvo! exclamou Marcondes. Por que motivo há de Deus dar nozes a quem não tem
dentes?
—
Acreditas que ela responda?
— Se
responde! Eu estou traquejado nisto, meu rico!
— Que
responderá ela?
— Mil
coisas bonitas.
— Afinal
em que dará tudo isto? perguntou Amaro. Eu creio que ela gosta de mim... Não te
parece?
— Já te
disse que sim!
— Estou
ansioso por ver a resposta.
— E eu
também...
Marcondes
dizia consigo mesmo:
— Era bem
bom que eu tomasse para mim este romance, porque o palerma estraga tudo.
Amaro
percebeu que o amigo hesitava em dizer-lhe alguma coisa.
— Em que
pensas? perguntou-lhe.
— Penso
que tu és um palerma; e sou capaz de continuar o teu romance por minha conta.
— Isso
não! já agora deixa-me acabar. Vamos ver que resposta vem. Quero que me ajudes,
sim?
— Pronto,
com a condição de que não hás de ser tolo.
Separaram-se.
Amaro foi
para casa, e tarde conciliou o sono. A história das cartas enchia-lhe o espírito;
imaginava a mulher misteriosa, construía dentro de si uma figura ideal; dava-lhe cabelos de ouro...
VII
A próxima
carta da misteriosa mulher era um hino de amor e de alegria; ela agradecia ao seu amado aquelas linhas;
prometia que só deixaria a carta quando morresse.
Havia
porém dois períodos que aguaram o prazer de Amaro Faria. Um dizia assim:
Há dias
vi-o passar na rua do Ouvidor com uma família. Disseram-me que o senhor vai
casar com uma das moças. Sofri
horrivelmente; vai casar, quer dizer que a
ama... e esta certeza mata-me!
horrivelmente; vai casar, quer dizer que a
ama... e esta certeza mata-me!
O outro
período pode resumir-se a estes termos:
Quanto ao
pedido que me faz de querer ver-me, respondo-lhe que não há de ver-me nunca;
nunca, ouviu? Basta que saiba que eu o amo, muito mais do que há de amá-lo a
viúva Antonina. Perca a esperança de ver-me.
— Estás
vendo, disse Amaro Faria a Marcondes mostrando-lhe a carta, está tudo perdido.
— Oh!
pateta! disse-lhe Marcondes. Tu não vês que esta mulher não diz o que sente?
Pois acreditas que isto seja a expressão exata do pensamento dela? Acho a
situação excelente para responderes; trata bem o período do teu casamento, e insiste de novo no desejo de contemplá-la.
Amaro
Faria aceitou facilmente este conselho; o seu espírito o predispunha para aceitá-lo.
No dia
seguinte uma nova epístola do fazendeiro da Soledade foi para a caixa do correio.
Os pontos
capitais da carta foram tratados por mão de mestre. O instinto de Amaro
supria-lhe a experiência.
Quanto à
noiva, dizia ele que era exato que ia casar-se, e que naturalmente a moça com
quem o viu a sua incógnita amadora era Antonina; entretanto, se era certo que o
casamento fazia-se por inclinação, não era de estranhar que um novo amor viesse
substituir aquele; e a própria demora do enlace era uma prova de que o destino
lhe preparava uma felicidade maior no amor da autora das cartas.
Por fim,
Amaro pedia instantemente para vê-la, ainda que fosse um minuto, porque, dizia
ele, queria guardar as feições que devia adorar eternamente.
A
incógnita respondeu, e a carta dela era um composto de expansões e reticências,
protestos e negativas.
Marcondes
animava o abatido e recruta Amaro Faria, que em mais duas cartas resumiu a
maior força de eloqüência de que podia dispor.
A última
produziu o desejado efeito. A misteriosa correspondente terminava a sua resposta
com estas textuais palavras:
Consinto
em que me veja, mas apenas um minuto. Irei com a minha criada, antes amiga que criada, em um
carro, no dia 15, esperá-lo na praia do Flamengo, às sete horas da manhã. Para
que se não engane, o carro tem o número
13; é o de um cocheiro que já esteve ao
meu serviço.
— Que te
dizia eu? perguntou Marcondes ao amigo quando este lhe mostrou esta resposta.
Se não estivesse eu aqui lá se te ia por água abaixo este romance. Meu caro, dizem que a vida é um caminho cheio de
espinhos e flores; se é assim, acho tolice que um homem não apanhe as flores
que encontra.
Desta vez
Marcondes pôde fazer tranqüilamente o discurso; porque Amaro Faria, todo entregue às emoções que a carta lhe
produzia, não procurou atalhá-lo.
— Enfim,
hoje são 13, disse Marcondes; 15 é o dia marcado. Se for bonita como
diz, vê se foges com ela; o paquete do Rio da
Prata sai a 23, e a tua fazenda é um quadrilátero.
diz, vê se foges com ela; o paquete do Rio da
Prata sai a 23, e a tua fazenda é um quadrilátero.
— Vê que
letra fina! e que perfume!
— Não tem
dúvida; é uma mulher elegante. O que eu desejo é saber o resultado; no dia 15
vou esperar em tua casa.
— Sim.
VIII
Rompeu
finalmente o dia 15, ansiosamente esperado por Amaro Faria.
O jovem
fazendeiro perfumou-se e enfeitou-se o mais que pôde. Estava adorável. Depois de um último olhar lançado ao espelho,
Amaro Faria saiu e entrou num tílburi.
Tinha
calculado o tempo de lá chegar; mas, como todo o namorado, chegou um quarto de hora antes.
Deixou o
tílburi a certa distância, e entrou a passear ao longo da praia.
De cada
vez que assomava um carro ao longe, Amaro Faria sentia-se enfraquecer; mas o
carro passava, e em vez do número feliz trazia um 245 ou 523, que o deixava em
profunda tristeza.
Amaro
consultava o relógio de minuto a minuto.
Afinal
assoma ao longe um carro que andava vagarosamente como devem andar os carros
que entram em tais mistérios.
— Será
este? disse Amaro consigo.
O carro
aproximava-se com lentidão e vinha fechado, de maneira que ao passar junto de Amaro, este não pôde ver quem ia
dentro.
Mas apenas
passou, Amaro leu o número 13.
As letras
pareceram-lhe de fogo.
Foi
imediatamente atrás; o carro parou dali a vinte passos. Amaro aproximou-se e bateu na portinhola.
A
portinhola abriu-se.
Havia
dentro duas mulheres, ambas tinham um véu na cabeça, de maneira que Amaro não
podia distinguir as suas feições.
— Sou eu!
disse ele timidamente. Prometeu-me que eu a veria...
E dizendo
isto dirigia-se alternadamente para uma e outra, pois não sabia qual delas era a misteriosa correspondente.
— Vê-la
somente, e irei com a sua imagem no meu coração!
Uma das
mulheres descobriu o rosto.
— Veja!
disse ela.
Amaro
recuou um passo.
Era
Antonina.
A viúva
continuou:
— Aqui
estão as suas cartas; lucrei muito. Como depois de casada não será tempo de
arrepender-se, foi bom que o conhecesse agora mesmo. Adeus.
Fechou a
portinhola, e o carro partiu.
Amaro
ficou alguns minutos no mesmo lugar, olhando sem ver, e com ímpetos de correr atrás do carro; mas era impossível
apanhá-lo o mais ligeiro tílburi, porque o carro, levado a galope, ia longe.
Amaro
chamou de novo o seu tílburi e voltou para a cidade.
Apenas
chegou à casa, saiu-lhe ao encontro o jovem Marcondes, com um sorriso nos
lábios.
— Então, é
bonita?
— É o
diabo! deixa-me!
Instado
por Marcondes, o fazendeiro da Soledade contou tudo ao amigo, que o consolou
como pôde, mas saiu de lá rindo às gargalhadas.
IX
Amaro
voltou para a fazenda.
Quando
entrava pelo portão da Soledade foi dizendo consigo estas filosóficas palavras:
— Volto ao
meu café; sempre que fui em busca do desconhecido dei-me mal; agora tranco as
portas e viverei no meio das minhas plantações.
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Nota:
Texto-fonte: Publicado
originalmente em Jornal das
Famílias, 1868. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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