
Bagatela
I
Um dia do
mês de maio de 1842, numa das últimas janelas de uma casa, que forma a esquina
da rua Hautefeuille e da rua Serpente, estava encostado um moço pensativo e melancólico.
Era — para
usar da expressão da Torre de Nesle — uma bela cabeça que mais de uma rapariga teria visto passar em seus sonhos. Não uma bela
cabeça, à maneira dos keepsakes mas a pálida e inteligente fisionomia que se encontra muitas
vezes nas obras de Lemud e em seu mestre Volfrand, além de outras; bem o
sabeis, leitor, este ouvinte atraente e
grave do primeiro plano.
Percebia-se
a vida da alma através do invólucro do corpo; e depois de contemplar aquele
rosto que revelava o trabalho interior, não podia haver engano, e era força exclamar:
— É um artista ou um poeta.
Henrique
d'Auberseint era com efeito uma e outra coisa. Poeta, ele o era, como todas as criaturas felizmente dotadas e
maravilhosamente organizadas para o sofrimento. Porquanto a alma do homem
inteligente, o coração do poeta, do artista ou do filósofo, é um alaúde que
vibra harmonioso e sonoro ao sopro de todas as paixões humanas, grandes, fortes
e belas.
Henrique
era, pois, poeta. Mas sobretudo era artista. Há nos cais, nas exposições de
amostras de certos comerciantes, essas fitas que não estão seladas com um nome,
mas que são obras-primas. Uma obra-prima, assinada com um nome obscuro, será acaso uma obra-prima? Obscuro —
quanto nos temos votado a este rude
trabalho, orvalhado de suor do sangue, que se chama vida de artista — obscuro
quer dizer pobre. Henrique era pobre. Ah! Implacável e madrasta natureza, bem
faz aquele que te morde no seio para forçar-te a alimentá-la! É andar — há de
ser sempre feliz...
Henrique
foi perturbado em seu cismar por um rumor de passos precipitados que se fez
ouvir na escada. A porta da mansarda abriu-se bruscamente e entrou uma mulher.
—
Bagatela! — exclamou o artista levantando-se e indo ao seu encontro.
— Onde
está ele? — pronunciou ela com uma voz entrecortada pela fadiga, tomando a mão
do mancebo e voltando para ele seus olhos obscurecidos pelas lágrimas.

Henrique
não compreendeu ao princípio esta pergunta proferida de envolta com um soluço
aos seus ouvidos inquietos, e durante alguns minutos ele contemplou Bagatela com admiração.
O
semblante da moça radiava neste momento com uma beleza sobrenatural que não lhe
era comum talvez. As grandes dores desfiguram, assim como as grandes alegrias.
Ela era
bela, como uma bela virgem — com a elegância de maneiras e fineza de trato de uma
parisiense. Era bela, muito bela!
— Mas o
que acontece? pergunta Henrique com uma ansiedade, que crescia de minuto em minuto.
— Mas
desapareceu! Há dois dias que não se tem notícias dele! — respondeu Bagatela
com um ar sombrio. E se meus pressentimentos não se enganam, — ajuntou ela com
um novo soluço e novas lágrimas — morreu!
Henrique
soltou um grito.
— Tomai, —
continuou a moça apresentando-lhe uma carta — lede depressa... eu vo-lo
conjuro... Lede depressa... Acabam de ma entregar e é para vós... Reconheci a
letra do nosso amigo... Estive a ponto de abri-la... Vede... Lede, Henrique,
lede em nome do céu!
Henrique,
trêmulo, com os olhos perturbados, abriu convulsivamente a carta que a moça lhe
apresentara, e leu o que segue:
É um morto
que te escreve, meu caro Henrique, um verdadeiro morto, com a tinta negra do
Estígio lago, e com uma pena arrancada à asa de uma qualquer ave noturna ou
maligna, vampiro ou o que quiseres.
Não
grites, não lamentes, não chores. As lamentações ensurdecem, e as lágrimas, vês-tu, são uma parvoíce... O
fato está já consumado, e não é mais possível uma volta:
— Quem
volta de tão longe?...
Faço-te a
minha derradeira confissão, com certos conselhos e certas recomendações, que te
peço tenhas sempre em vista.
Tive uma
mãe, como qualquer porteiro, mas, conquanto saibamos sempre que procedemos de alguém — segundo a
opinião de Brid'oison, estou, todavia, embaraçadíssimo quanto a afirmar de quem
sou filho. É imoral, mas é verdade. Quanto ao meu nome — nada sei de legal —
pela ausência de qualquer declaração de meus autores nos registros da municipalidade.
Mas eu tenho um, fantasiado, todo ao
acaso, entre os nomes calendários: é — Máximo — nem mais, nem menos.
Máximo —
fui criado; Máximo — cresci; Máximo — vou desta para a outra vida. Tu sabes,
além disso, que entre a rapaziada chamava-me Max, por enquanto a vida é tão
curta... e inútil é alongá-la com três letras realmente inúteis.
Isto,
quanto ao meu nascimento e quanto ao meu passado — um pouco semelhante às
origens do Nilo. Não sabendo donde vinha, compreendes bem que eu nunca saberia
onde ia. Um bastão tem sempre duas pontas; — um começo e um fim. Por muito
tempo
embalei-me na esperança de ter um fim e
assemelhar-me, ao menos por aqui a um bastão. Eu acreditaria de boa vontade na eternidade das rosas, mas sempre me repugnou
acreditar na eternidade da eternidade...
embalei-me na esperança de ter um fim e
assemelhar-me, ao menos por aqui a um bastão. Eu acreditaria de boa vontade na eternidade das rosas, mas sempre me repugnou
acreditar na eternidade da eternidade...
Se eu não
conheci os meus autores — em desforra conheci a vida — triste conhecimento, entre parênteses.
Tiveste muita vez um espécimen de meu
caráter fantástico e razoável. Eu era ao mesmo tempo o mais jovial rapaz, e o
mais aborrecido indivíduo que se possa imaginar. Pamérgio forrado de Trenmor.
Muitas vezes me levantava
com projetos fantásticos que, postos em execução teriam feito arrebentar de riso a venerável estátua
do Hospital. Muitas vezes entrava para casa com o semblante pálido, enrugado —
e envelhecido horrivelmente. Lançava-me à cama, enchia de fumo o cachimbo, fumava-o e atirava-o pela janela com
uma raiva surda — sem respeito à sua cor poética de bistre. Nesses dias eu
seria capaz de devorar um policial — com as bandeirolas, mas sem as botas, entretanto.
Não
repares nos arabescos do meu estilo; estes gracejos são um vestido de arlequim —
o coração palpita embaixo. Hoje, ao escrever-te, sinto-me disposto a rir e
rio-me. Vale isso mais, acredita-me, do que atirar poeira ao céu, como os
Gracos. É meia- noite, acabo de encontrar alguns frangos éticos, fugindo de mim
nas ruelas sombrias da Cité. Deu-me isso uma alegria! Por quê? Ah! sim, porque!
sempre este ponto de interrogação!
Abro-te a
porta da alcova dos meus sentimentos; não é a primeira vez, mas a última.
Passava uma vida de tédio neste planeta, e além disso tenho um instinto viajor
que me impelia sempre para as estepes infinitas do incógnito. Corro para lá, em
teus braços, grande X., corro para lá,
abre-os bastante!...
Estou,
pois, a esta hora em marcha para a famosa viagem ao campo de que falam alguns.
O abade de Saint-Pierre. Eu mesmo me forneci um passaporte inglês de Wester;
não encontro, embora, alfândegas nas fronteiras da vida!... Meti audaciosamente
a mão na urna do destino — e antes da
minha hora — subtraí — o meu número... Eis tudo!
Agora
falemos um pouco de ti — e dela, dela! dela!... Prometi-te um conselho, vou dar-to. Tu tens talento,
Henrique, um grande talento: confirma-o
perante a multidão, ela não achará dificuldades em acreditá-lo. Foste talhado
por um Deus de Homero; em três passos atingirás ao termo, mas é preciso dar o
primeiro; mãos à obra, os outros dois é apenas uma pernada.
Isto
quanto ao conselho. Agora aos legados. Faço-te meu herdeiro universal. Tudo o que existe em minha oficina
é teu. Sabes o que valem as telas de um
artista morto? As minhas te ajudarão a viver. Vende-as!
Leva à
Bagatela aquela pintura que eu fiz ligeiramente um dia em sua casa...
Mostra-lhe esta carta, consola-a, ama-a, protege-a; responder-me-ás por ela.
Bagatela é
a escolhida de meu coração... Um dia, em que ela estava triste e eu alegre,
dei-lhe este nome de Bagatela que prevaleceu sobre o seu de — Gabriela.
Peço-lhe que o conserve, é minha vontade; fui eu que lho deu! Tu e ela foram
para mim o
mundo. Ela era o amor — tu, eras a amizade.
Por que me não bastavam estas duas felicidades? Por quê? ainda este maldito ponto de interrogação...
mundo. Ela era o amor — tu, eras a amizade.
Por que me não bastavam estas duas felicidades? Por quê? ainda este maldito ponto de interrogação...
Assim,
chego à recomendação que te queria fazer: — é grave, é um morto que ta faz,
Henrique. Cumpre obedecer religiosamente. Que Bagatela seja tua irmã, Henrique; sê o seu
protetor, seu amigo, seu pai — mas, nada mais. Pensai em mim algumas vezes e entretanto
sede ambos fiéis à minha memória
Dixi — Adeus, Henrique, adeus,
Bagatela, adeus ...
Máximo — vulgo o Velho!
“Todo como
o velho Palma !...”
II
— Morto! —
murmurou Auberseint com uma voz sombria. — Morto sem me ter apertado a mão!
— Morto!
repetiu por sua vez a moça — meus pressentimentos não me enganaram... Meu Deus! Meu Deus!...
Pronunciando
estas palavras, vacilaram-lhe os joelhos; a trepidação compulsiva de seu corpo
tornou-se mesmo tão violenta que se Henrique não a tivesse retido nos braços
ela rolaria pelo chão.
—
Gabriela! Gabriela! — gritou Henrique com um desespero cheio de solicitude.
— Ah! Max!
querido Max! — soluçou Bagatela — Max por que nos deixas assim?
— Como ela
o ama! — murmurou Henrique — Feliz morto!
— Ah!
Henrique — tornou Bagatela — não sabeis o que perco eu na morte dele! aquele nobre espírito, com o nobre coração...
Eu lhe devia tanto, que nem todos os amores, e adorações bastariam para
pagar-lhe!... Não o sabíeis, Henrique, pois que a sua delicadeza com semelhante
confissão teria sofrido. — Ele levantou-me da calçada em que eu estava na rua,
uma noite de inverno, eu tiritava de frio, tinha fome, e minha mãe acabava de
morrer... Nossa história, a minha e de minha mãe — não vo-la contarei... é
banal como a miséria, simples como a dor!... Eu estava pois na rua — exposta ao
vento e à neve, desfalecida, semimorta e quase louca!... Máximo passou. Quando
ele viu as lágrimas que corriam pelas minhas faces azuladas pelo frio, quando
ele viu a minha miséria e o meu desespero, levou-me para a sua casa de artista,
deu-me a chave dela, e pelo espaço de três meses, foi para comigo respeitoso,
benfeitor e dedicado. Procurou- me trabalho... Enfim, uma manhã bateu à minha
porta — “Minha menina — me disse ele com tristeza — é preciso que nos
separemos... Tenho uma má reputação, ao que parece, e é mister que a vossa não
sofra. Não deveis desmerecer aos olhos
das pessoas de bem... Aluguei para vós, em vosso nome, na rua do Oeste, uma pequena habitação — donde
se descortinam os jardins de Luxemburgo
e onde eu vos pedirei como um favor — a permissão de ir algumas vezes, como
amigo...”
— “Oh!
sempre, senhor Máximo! sempre quando quiser... Eu não sou senão o que me
fizeste: uma costureira modesta e feliz por viver do produto de seu trabalho...
Esta ventura.., eu vo-la devo... Deus
vos abençoe por isso!”

— Eis aqui
o que eu respondi a Max com as lágrimas nos olhos, ajuntou Bagatela.
— Bem
sabeis, Henrique, como foi nobre e desinteressada a conduta do nosso amigo...
Eu o amava — nunca lho disse... mas dir-lho-ia um dia se ele esperasse um
pouco... Acreditou talvez na minha frieza, na minha indiferença, e contudo Deus
sabe com que gratidão eu aceitaria a oferta de seu coração e de seu nome!
Bagatela
calou-se. Era grande a sua emoção na evocação destas recordações.
Com
efeito, ela amara tão ingenuamente Max! como Gretchen ela fizera tanto por ele —
que ele já nada lhe tinha a fazer... Porém Max tinha cousas singulares no cérebro...
amava profundamente Bagatela... cercara-a sempre de cuidados delicados de atenções ternas, mas sempre de
mistura com uma espécie de respeito. Ela era para ele mais que uma irmã e menos
que uma amante. Quando trabalhava, entre ela e Henrique, ele lhe lançava de vez
em quando um olhar paternal e amoroso ao mesmo tempo, e murmurava depois: “Há
de ser minha mulher!”
— Oh! Max!
Max! murmurou de novo Bagatela.
— Ah!
feliz morto! — murmurou de novo Henrique.
Na tarde desse dia, o jornal — O Mensageiro — publicou estas linhas: — “Acabamos de saber da desaparição de
Mr. Máximo — vulgo o Velho — Mr. Máximo tinha há algum tempo acessos de febre
ardente e tudo faz crer que em um desses momentos pôs fim aos seus dias... É
uma perda imensa para a arte de que Mr. Máximo era um digno representante...
Cumpre registrar a sua morte no martirológio dos grandes pintores — que o
desespero, uma paixão continuada ou qualquer outra cousa levaram ao suicídio...
Depois de David, morto longe da Pátria, depois de Gros — agonizando no Sena,
depois de Leopoldo Roberto, que se degolou em Veneza — depois de Gericault
Sigalon, citamos o fim doloroso de Mr. Máximo!
É assim
que se escreve a História!”
Alguns
meses se passaram e — é mister confessá-lo para vergonha eterna deste pedaço de
caoutchouc (borracha) que se chama coração humano — e cada dia levava consigo
uma porção do amor e da amizade que Henrique e Bagatela votavam a esse pobre
Max, morte sem dúvida, para os fazer felizes.
Toda a dor
desaparece com o tempo por mais profunda que seja... cedo os pesares deixam de manchar o estofo cambiante
da existência... Nem custa a desembaraçar a alma das recordações, que ligam
ainda os vivos aos mortos... Assim, vai o mundo! Ontem, dor que parecia ser
eterna, — sim, eterna como a aurora; hoje, esquecimento total das criaturas
extintas, e cuja presença, além disso, seria importuna! E, realmente, os mortos
são bem maçantes personagens em exigir uma memória sua sobre a terra. Para quê?
Todavia,
não nos devemos apressar em deitar a primeira pedra da exprobração a essas duas
pobres crianças. Max não estava totalmente morto na memória e no coração de
Bagatela e de Henrique. Este último, sobretudo, quase às portas da miséria,
apesar da herança que lhe deixara seu amigo, parecia acabrunhado por um remorso
secreto de resto, bem fraco pela idéia de que Bagatela não partilhava seu
criminoso amor. Primeiro que tudo, por uma dessas delicadezas do coração, que
os amantes hão de compreender — tinha perdido o hábito de pronunciar esse nome
de Bagatela sob o qual Max amara a mulher que ele amava também, posto que sem
esperança. Em segundo lugar perdera ele também o hábito de se dirigir para o lado da casa de
Bagatela.
Esta, por
seu turno, não ousara queixar-se deste apartamento, mas lastimava-o
porque o viu sofrer, e as mulheres que têm uma
missão sobre a terra de mansidão, de comiseração, de
afetuosidade, nunca faltam a ela. Bagatela sabia que Henrique era pobre e
orgulhoso, e atribuía à sua miséria, que ele quisera suavizar, a dureza e
grosseria que mostrava. Somente de vez em quando afligia-se a pobre moça com
seu silêncio tenebroso, quando o interrogava delicada e amigavelmente sobre as
causas dessa dor que o minava surdamente... Henrique não podia confessar-lhe
que era o seu amor por ela a causa única de seus tormentos e de seus combates
de cada dia. Não ousava confessar-lho receando chamar
sobre si sua cólera e desprezo... Belas, completas, e ingênuas eram aquelas naturezas! Como Henrique se
assemelhava a esses D. Juans que inundam os salões e os bastidores, e que
imaginam como Hans Svederlick, que não há honra nem favor que não possam
colher, querendo para eles, “toda a galante flor!” Pobre namorado! pobre poeta!
pobre artista!
porque o viu sofrer, e as mulheres que têm uma
missão sobre a terra de mansidão, de comiseração, de
afetuosidade, nunca faltam a ela. Bagatela sabia que Henrique era pobre e
orgulhoso, e atribuía à sua miséria, que ele quisera suavizar, a dureza e
grosseria que mostrava. Somente de vez em quando afligia-se a pobre moça com
seu silêncio tenebroso, quando o interrogava delicada e amigavelmente sobre as
causas dessa dor que o minava surdamente... Henrique não podia confessar-lhe
que era o seu amor por ela a causa única de seus tormentos e de seus combates
de cada dia. Não ousava confessar-lho receando chamar
sobre si sua cólera e desprezo... Belas, completas, e ingênuas eram aquelas naturezas! Como Henrique se
assemelhava a esses D. Juans que inundam os salões e os bastidores, e que
imaginam como Hans Svederlick, que não há honra nem favor que não possam
colher, querendo para eles, “toda a galante flor!” Pobre namorado! pobre poeta!
pobre artista!
Compreendendo,
enfim, que aquele amor o mataria, Henrique resolveu um dia matar-se e acabar com um golpe suas
irresoluções e sofrimentos. Mas, ele não queria morrer na rua para ser
transportado e exposto figura hedionda — sobre as hediondas tábuas da Morgue!
Não!... a morte na sua pequena mansarda, ao pé de seus quadros, de suas obras: —
na sua mansarda ainda perfumada com a presença de Bagatela: na sua mansarda,
onde ele vivia com a imagem adorada, onde ela chorara; e onde lhe apertara a
mão ao despedir-se! Essa morte, sim, valia a pena!
Além
disso, ele morria descansado sobre a sorte dessa mulher por quem ia morrer;
porquanto no primeiro dia de cada mês, à noitinha, um velho, cujo semblante austero
e melancólico causava respeito, apresentava-se em casa de Bagatela, dava-lhe um
rolo de 150 francos, rendimento mensal que lhe deixara Max; depois retirava-se
cumprimentando, mas sem proferir uma palavra.
Uma noite,
pois, Henrique entrou em casa resolvido a pôr termo à existência que o
acabrunhava. Acendeu a lâmpada, correu os ferrolhos da porta, que não se fechava
de todo, e depois de algumas disposições testamentárias, tomou uma pistola que
pusera ao entrar em uma mesa e carregou-a...
— Amo-a
muito, murmurou ele penivelmente, para não persistir em minha resolução... Sede fiel à minha memória! — disse Max.., serei fiel à sua memória... vamos... Daqui a poucos minutos estarei de
jornada para a eternidade!... Ele gracejava nos seus últimos momentos... Max!
Tinha essa coragem... Ah! É que era amado! Por que matou-se? Eu nunca ousara
conceber esta esperança que faz minha alegria e suplício... Adeus, pois, vós
todos objetos queridos que vou abandonar, adeus!
Henrique
inclinou orgulhosamente a cabeça. No momento em que colocava na fronte o cano
da pistola, bateram na porta. Abaixou a arma e esperou. Bateram de novo, mas
com uma violência inaudita. E a porta rodou sobre os gonzos...
—
Henrique! que íeis fazer? — exclamou Bagatela, precipitando-se ao mancebo e arrancando-lhe
a pistola.
— Bem o
vedes! — respondeu ele com uma voz surda — ia morrer!
— Morrer!
tu, Henrique! oh! não deves morrer... eu to proíbo!
Dois olhos
e dois lábios que dizem eloqüentemente: — vivei! têm o direito de serem ouvidos. Henrique sentiu desvanecerem-se
as suas veleidades de suicídio... sobretudo quando Bagatela ajuntou:
— Há muito
tempo que eu adivinhei o teu amor — porque eu também te amava; sofrias, dizes
tu? E eu? Eu! acreditas então que eu não houvesse mister de coragem, ou antes
de crueldade, para deixar-te assim esperar-me, sofrer e
chorar? Combatias contra o vão fantasma de um
passado que lá vai... lutavas com um
remorso que não deve mais pesar em teu coração, agora que eu venho a ti, e te
absolvo! Se é um crime esse nosso amor, meu doce amigo, tomo sobre mim a
responsabilidade e a vergonha... Podemos ser felizes de hora avante, Henrique,
pois que eu sou rica... um parente de minha mãe deixou-me uma herança... É uma bênção do céu! não teremos mais necessidade dos
benefícios póstumos de Máximo.
chorar? Combatias contra o vão fantasma de um
passado que lá vai... lutavas com um
remorso que não deve mais pesar em teu coração, agora que eu venho a ti, e te
absolvo! Se é um crime esse nosso amor, meu doce amigo, tomo sobre mim a
responsabilidade e a vergonha... Podemos ser felizes de hora avante, Henrique,
pois que eu sou rica... um parente de minha mãe deixou-me uma herança... É uma bênção do céu! não teremos mais necessidade dos
benefícios póstumos de Máximo.
Mr. Heine
tem razão: “Todos sabem o que são cacetadas; mas o que é amor, todos ainda
ignoram!”
—
Gabriela! — respondeu Henrique com um desespero misturado de tristeza. — Fugi,
deixai-me só... Há entre nós uma barreira que não podemos transpor... a lembrança
de Máximo?
— Mas tu
não me amas, Henrique?
— Não te
amo! Mas não é por ti que eu quero morrer? Deixa-me... não quero ser perjuro!... vai-te!
— Ficarei
aqui! — disse Bagatela com uma voz resoluta. — Há oito dias que te espero... oito
séculos! pois que eu os contei... Tu não me procuraste... procurei-te eu...
Venho dizer-te: separados, éramos infelizes; reunidos...
— Oh! não
acabes, Gabriela.
— Então
morramos ambos morramos...
— Ainda
não, meus filhos — disse uma voz.
Bagatela e
Henrique voltaram-se e viram, a primeira com medo, o segundo com espanto,
aproximar-se um velho, cujo casacão pardo e cabelos brancos tinham um ar
respeitável.
— O
desconhecido! — murmurou a moça.
— Senhora,
eu vos saúdo — disse o velho com uma voz trêmula e um pouco desfalecida. — Bom
dia, Senhor! estão ambos espantados... que tínheis! Queríeis morrer, meu jovem amigo? Ah! fora com isso! é
bom para os maníacos, e vós tendes juízo.
— Ah! esta
voz! esta voz!... — exclamaram Bagatela e Henrique.
— É a de
um homem que vos ama e quer a vossa felicidade, meus filhos... — retrucou o
velho; — eu soube apreciar-vos ambos, há bastante tempo, posto que pouco me
conheceis. Mr. Máximo, de quem fui amigo outrora, deixou-me o cuidado de velar
sobre vós... Obedeci-lhe religiosamente... Vós que sois tão dignos um do outro,
— (aqui a voz do velho fez-se um pouco irônica, o que não notaram os nossos
amantes; tão ocupados estavam em recordar-se onde tinham ouvido essa voz tão
fresca e suave ainda, apesar de seu abalo tremor de ancião)! Vós que sois tão
dignos um do outro... ide tocar a meta da ventura! eis aqui o vosso dote... não
é considerável... porém Max ficará satisfeito — lá em cima, se o aceitardes....
É a última recordação que ele vos dá... Minha missão está terminada... O que
vos peço ainda, em nome de
Max, é de
vos lembrardes algumas vezes, de vez em quando, quando não
tiverdes outra coisa a fazer... nas vossas horas de
tédio, ou de prazer, que um homem existiu, que vos criou, e levou consigo a
consolação de ter ao menos as vossas saudades... é bem pouco uma recordação...
e bem pouco uma lágrima... Fazei algumas vezes essa melancólica esmola dos
vivos a um morto, que só tem aqui na terra uma preocupação: — a vossa ventura.
Adeus, só me vereis ainda uma vez, no dia do
vosso casamento; até mais ver, meus filhos
e... até mais ver!....
vosso casamento; até mais ver, meus filhos
e... até mais ver!....
E sem
esperar uma resposta de Bagatela ou de Henrique, o velho desapareceu.
—
Henrique, murmurou Bagatela com uma doce melancolia. Henrique... bem o vedes...
Nada mais se opõe à vossa ventura... Mas não vos quis legar um remorso...
Coisa
estranha! — justamente em razão daquela absolvição que Max dera, de além-túmulo aos seus criminosos pensamentos,
Bagatela e Henrique sentiam a consciência agitar-se, e apenas o artista morto
levantava os seus escrúpulos eles renasciam mais vivos em suas almas...
— Oh! Max
valia mais do que eu! — respondeu Henrique, voltando a cabeça, para ocultar à
Bagatela a vista de uma lágrima que lhe resvalara furtivamente na face.
III
Um mês se
tinha passado e em uma capela da Igreja de S. Sulpício, um padre abençoava dois
jovens que tomavam diante de Deus o cargo de se amarem até a morte.
A um canto
da capela estava um velho imóvel, com o pescoço estendido, que seguia com o
olhar febril e quebrado cada movimento dos novos esposos que eram Bagatela e
Henrique... apenas a moça pronunciou corando de ventura o sim fatal, o velho
estremeceu e a sua fisionomia exprimiu uma angústia dolorosa...
Terminada
a cerimônia dispersou-se a multidão. Bagatela estava radiante com o vestido azul do céu que parecia abençoar esta união e sorrir a
esta festa. Henrique tinha por momentos, um ar pensativo e triste e quando
subiu para o carro, procurou e fez procurar por toda parte o velho; mas ele
tinha desaparecido.
Enquanto
os noivos se iam de seu lado contentes e brilhantes, ele apressava o passo com
um ar sombrio, para chegar mais depressa.
Subiu uma
escada de uma casa da rua dos Mártires, abriu uma porta e achou-se em uma oficina povoada de quadros, de
estátuas, e objetos de arte. Parou então, pôs a mão sobre o
coração e contou as pancadas. — Tudo está acabado! murmurou ele com
uma voz quebrada. — Ela e ele são felizes... Está bem...
E ficou
entregue a uma meditação profunda que tinha por fim incessante uma determinação
terrível.
— Nada de
saudades estéreis! Nada de desejos quiméricos! — disse ele contemplando com
olhar quebrado e resignado as nuvens que purpureavam o horizonte — lá vai o
tempo das saudades e desejos... agora é a agonia... é a morte... a morte! Oh!
ela já está em mim... em mim todo!
E pôs a
mão sobre a fronte!
— A
inteligência, esse archote soberbo que irradia isoladamente ao lado do próprio sol?...
Está apagada em mim...
Pôs a mão
no coração:
— O
coração, esse diamante precioso que nada altera... Meu coração! quebrou-se em mil pedaços, como vidro...

Sorriu
amargamente e continuou:
— Ah! os
cantos de meu coração, e as marcas da minha vida são como cipós da Via Apiena:
não há mais que cinzas e aqui jaz! Sobre os
destroços dos meus amores e de minhas esperanças, só tinha de dormitar agora...
Ah! a vida é feita de abrolhos e espinhos... Pobres ovelhas que o invisível
pastor leva ao matadouro da morte, deixam lã a cada espinheiro, sangue a cada
fonte de pedra... Pus o dedo sobre a ventura e a ventura fugiu-me para não
voltar mais...
As divinas
promessas do amor esvaneceram-se ao sopro gelado da indiferença... como eu era insensato! crer na coragem de
Henrique e na virtude de Bagatela! Oh! queridos ídolos derrocados! Mas para que
inventar Galatéas impossíveis? Por que quis eu apoiar a ventura de toda a minha
vida na areia movediça das paixões? — Quis, fatal pensamento! — submeter o amor
de um e a amizade de outro à pedra de toque da ausência, e essa experiência
provou-me o egoísmo dessas duas afeições sem as quais eu não podia viver... No
fundo da ânfora onde as lancei ambas,
resta um pouco de ouro puro e muita terra...
Não me
amam mais, não me podem mais amar... E é tal o desencanto horrível de minha
alma que nesta hora solene chega a duvidar que eles me amassem!... Mas que
importa? Eu os amava, eu os amo ainda, ingratas crianças que me esqueceram tão
depressa!... E a sua virtude me é cara, apesar de haver quebrado a minha... Ah!
a ventura! a ventura! — repetiu ele com violento furor — a ventura! ... por ventura nós a conhecemos —
nós os eleitos, os predestinados, os gloriosos, cuja vida é um calvário de
estações dolorosas... A ventura nunca vem cedo; chega mesmo tarde demais. É um
viajante descuidado e fantástico, que
não sabe onde vai, onde deve comer, onde deve dormir, e que uma noite vem por
fantasia bater à nossa porta. Mas já a velhice cá estava: a cabeça está calva, os olhos sombrios, a boca fechada; nós
nos habituamos à imobilidade da sepultura, pela imobilidade da idéia. Todavia
abre-se a porta a esse viajante estouvado e falador que para vir à nossa casa
solitária toma um caminho mais longe... que retardou-se na viagem a cercar com
as mãos as cinturas das jovens aldeãs encontradas, e a contar-lhes loucas
histórias que as fizeram corar — de prazer! Abrimos a porta mas, rosnando; por
que temos reumatismos: abrimos rosnando e tossindo, escandalizados das risadas
intempestivas e da alegria extravagante desse hóspede, cuja vinda, que nos
importuna tantas vezes, há bom tempo saudamos com efusão e gratidão... Não lhe
compreendemos o falar... Já nos é um estrangeiro; mais que um estrangeiro
mesmo, um inimigo; por que sua presença agora em nossa casa é uma ironia
amarga, é um insulto. Mas não somos maus; não sabemos sê-lo; a dor habitua à
bondade; e em vez de dizer a esse estranho que nos perturba o sono de ancião,
batendo precipitadamente na porta fechada de nosso coração: “Já não vem a
tempo!” — dizemos-lhe melancolicamente: — “É bastante tarde!”
— Ah!
coisa terrível.., coisa terrível... a ventura!
Durante um
instante ficou ele com a cabeça entre as mãos crispadas; depois continuou com os olhos mais úmidos de
lágrimas, porém mais enternecidos:
— Ouço
soar em meu coração sinfonias inebriantes da mocidade, como um alegre concerto
de vozes amadas... Ouço minhas alegres e frescas recordações de mancebo bater
carga e rolar louca e impetuosamente por meu pobre cérebro... Ah! toque insensato, amante risonho dessas
recordações, dessas sinfonias me fazem mal!... Quero dormir o meu último sono,
embalado pelo pensamento de que meu fantasma doce e triste atravessará talvez a
vida de Henrique e Bagatela, e deixará
um vestígio perfumado em seus corações... Ah! ainda vem ver, por que tentei
essa prova maldita?... Antes de morrer experimentei a morte... Magoadora experiência!
não sei se devo alegrar-me com ela, pois eles são felizes, ou entristecer-me uma vez que morro! Oh! meus
ídolos! ídolos amados, caístes do
pedestal em que vos elevei!... Eu devera morrer logo... teria lançado a campo, crença, fé, ilusão!... não assistira à tua fraqueza Henrique! não assistira à tua queda, Gabriela!...
pedestal em que vos elevei!... Eu devera morrer logo... teria lançado a campo, crença, fé, ilusão!... não assistira à tua fraqueza Henrique! não assistira à tua queda, Gabriela!...
Depois,
desembaraçando-se do vestuário do velho que o incomodava, Max dirigiu-se
pálido, grave, com a fronte carregada de idéias sinistras, para o fundo da sua
oficina e para diante de uma tela branca que parecia esperar dele o movimento e
a vida...
O rosto
viril do artista refletiu, nesse instante, as torturas sem nome, as angústias
horríveis, as dores inauditas que lhe rasgavam a alma desde o dia em que
voluntariamente deixara Henrique e Bagatela... Estava acostumado ao uso das
decepções como Mitrídates ao uso dos venenos; mas desta vez a dose era forte
demais: matava-o!...
Nesse
instante, ele odiava a vida com todas as forças que lhe restavam... desenganado
deste mundo, chegava quase aos lábios a taça fatal quando o vento lhe trouxe o
eco fraco de um canto lançado no espaço: Pôs-se a escutar. A voz dizia:
Debalde
semeei formosas crenças.
Nem um
raio de sol desceu-me aos prados!
Veio a dor
às campinas da esperança
Como vai
joio ao trigo.
— É a voz
de um poeta! — murmurou Max com um melancólico sorriso. — Não sou só eu a
sofrer!
Chegou-se
depois ao seu cavalete, tomou os pincéis e na tela colocada em frente dela construiu em uma hora, que passou como um
relâmpago — o poema melancólico e pungente de sua vida despedaçada ainda no
começo... Evocou por um momento os dois
entes adorados que tinham vindo um após outro cravar-lhe o punhal no coração... E essa tela animou-se como por encanto!
Iluminou-se de reflexos fantásticos e vertiginosos! Max dava assim o derradeiro
esforço de seu gênio, o último grito de sua alma, a última vibração de seu
coração...
Mas esse
esforço sobrenatural devido à febre e ao desespero, esmagou-o... Ele arrastou-se até a janela para contemplar ainda
uma vez o céu que lhe negava, como suprema consolação, fechar os olhos nos
seios de uma mulher, e nos braços de um amigo; palpitava-lhe o peito
convulsivamente...
Grossas
nuvens pardas, levadas por um vento. Estas acumulavam-se no horizonte como uma
massa de neve. O sol, em seu ocaso, espalhava sobre a cidade uma cor sombria em
harmonia com as sombrias idéias do artista...
— Vamos! —
exclamou ele voltando à mesa onde depusera ao entrar um pequeno frasco contendo
um licor escuro. — Que o sacrifício se consuma! Agora que todas as afeições
estão mortas, que as minhas ilusões estão extintas, vou extinguir-me com elas,
como elas vou morrer... O aventureiro Gabor tinha razão: — “A vida é uma
caçoada amarga!...”
E de um
trago, o heróico artista absorveu o licor do vidro que descompôs-lhe o semblante
rapidamente.
Corria-lhe
o olhar sangrento e úmido de um a outro objeto, roçando de leve muitas
recordações que se prendiam a duas criaturas queridas e amadas demais.
De repente,
esse olhar moribundo parou na tela deslumbrante em que seu gênio lançara a última
palavra... Parecia-lhe que legar aos vivos, aos indiferentes, aos felizes o
admirável poema que ele esboçara seria uma profanação, um sacrilégio, uma impiedade e reunindo então as poucas
forças que lhe deixava o veneno, arrastou-se penivelmente até o cavalete, tomou
uma faca e em um sublime e último esforço rasgou e despedaçou freneticamente a
tela... Depois seus braços se torceram, os dedos se lhe crisparam, soltou um
grito surdo, um grito de angústia e de saudades supremas que o eco repetiu.
— Tudo
acabara.
---
Nota:
Texto-fonte:
Contos de
Machados de Assis: Relicários e raisonnés, de Mauro Rosso, Editora PUC Rio,
Edições Loyola, Rio de Janeiro, 2008. Publicado originalmente em A Marmota, de
10/05 a 30/08/1859.
Nenhum comentário:
Postar um comentário