
O CAPITÃO MENDONÇA
I
Estando um
pouco arrufado com a dama dos meus pensamentos, achei-me eu uma noite sem
destino nem vontade de preencher o tempo alegremente, como convém em tais situações. Não queria ir para
casa porque seria entrar em luta com a
solidão e a reflexão, duas senhoras que se encarregam de pôr termo a todos os
arrufos amorosos.
Havia
espetáculo no Teatro de S. Pedro. Não quis saber que peça se representava;
entrei, comprei uma cadeira e fui tomar conta dela, justamente quando se
levantava o pano para começar o primeiro ato. O ato prometia; começava por um
homicídio e acabava por um juramento. Havia uma menina, que não conhecia pai
nem mãe, e era arrebatada por um embuçado que eu suspeitei ser a mãe ou o pai
da menina. Falava-se vagamente de um marquês incógnito, e aparecia a orelha de
um segundo e próximo assassinato na pessoa de uma condessa velha. O ato acabou
com muitas palmas.
Apenas
caiu o pano houve a balbúrdia do costume; os espectadores marcavam as cadeiras
e saíam para tomar ar. Eu, que felizmente estava em lugar onde não podia ser
incomodado, estendi as pernas e entrei a olhar para o pano da boca, no qual,
sem esforço da minha parte, apareceu a minha arrufada senhora com os punhos
fechados e ameaçando-me com olhos furiosos.
— Que lhe
parece a peça, sr. Amaral?
Voltei-me
para o lado de onde ouvira proferir o meu nome. Estava à minha esquerda um
sujeito, já velho, vestido com uma sobrecasaca militar, e sorrindo amavelmente
para mim.
—
Admira-se de lhe saber o nome? perguntou o sujeito.
— Com
efeito, respondi eu; não me lembro de o ter visto...
— A mim
nunca me viu; cheguei ontem do Rio Grande do Sul. Também eu nunca o tinha
visto, e no entanto conheci-o logo.
—
Adivinho, respondi; dizem-me que me pareço muito com meu pai. Conheceu-o, não?
— Pudera!
fomos companheiros d’armas. O coronel Amaral e o capitão Mendonça passavam no
exército por ser a imagem da perfeita amizade.

— Agora me
recordo de que meu pai me falava muito no capitão Mendonça.
— Sou eu.
—
Falava-me com muito interesse; dizia que era o seu melhor e mais fiel amigo.
— Era
injusto o coronel, disse o capitão abrindo a caixa de rapé, eu fui mais do que
isso, fui o único amigo fiel que ele teve. Mas seu pai era cauteloso, talvez não quisesse ofender ninguém. Era um tanto
fraco seu pai; a única rixa que tivemos foi por eu uma noite chamar-lhe tolo. O
coronel reagiu, mas convenceu- se finalmente... Quer uma pitada?
—
Obrigado.
Admirou-me
que o mais fiel amigo de meu pai tratasse tão desdenhosamente a sua memória, e
entrei logo a suspeitar da amizade que os ligara no exército. Confirmou-me esta suspeita a lembrança de que
meu pai, quando falava no capitão Mendonça, dizia ser um excelente homem... com
uma aduela de menos.
Contemplei
o capitão enquanto ele sorvia a pitada e sacudia com o lenço a camisa
ligeiramente maculada por um clássico e legítimo pingo. Era um homem de boa
presença, gesto militar, olhar um tanto vago, barba de fonte a fonte, passando por baixo do queixo, como convém a um
militar que se respeita. A roupa era toda nova, e o velho capitão mostrava
estar acima das necessidades da vida.
A
expressão da cara não era má; mas o olhar vago e as sobrancelhas espessas e salientes
transtornavam o rosto.
Conversamos
do passado; o capitão contou-me a campanha contra Rosas, e a parte que nela
tomou com meu pai. A sua conversa era animada e pitoresca; lembrava-se de muitos episódios, entremeava
tudo com anedotas engraçadas.
Ao cabo de
vinte minutos o público começou a inquietar-se com a extensão do intervalo e a
orquestra dos tacões executou a sinfonia do desespero.
Justamente
nesse momento veio um sujeito chamar o capitão para ir a um camarote. O capitão
quis adiar a visita para outro intervalo, mas, instando o sujeito, cedeu e
apertou-me a mão dizendo:
— Até já.
Fiquei
outra vez só; os tacões cederam lugar às rabecas, e ao cabo de alguns minutos
começou o segundo ato.
Como aquilo
para mim não era distração nem ocupação, acomodei-me o melhor que pude na
cadeira e cerrei os olhos ouvindo um monólogo do protagonista, que cortava o
coração e a gramática.
Não tardou
que fosse despertado pela voz do capitão. Abri os olhos e vi-o de pé.
— Quer
saber de uma coisa? perguntou ele. Eu vou cear; acompanha-me?
— Não
posso, queira desculpar-me, respondi.
— Não
admito desculpa; faça de conta que eu sou o coronel e digo: Pequeno, vamos cear!
— Mas é
que eu espero...

— Não
espera ninguém!
O diálogo
provocou alguns murmúrios à roda de nós. Vendo a disposição anfitriônica do
capitão, achei prudente acompanhá-lo para não dar lugar a uma manifestação
pública.
Saímos.
— Cear a
esta hora, disse o capitão, não é próprio de um rapaz como o senhor; mas eu cá
sou velho e militar.
Não
repliquei.
A falar
verdade eu não tinha preferência pelo teatro nem por coisa nenhuma; queria
passar o tempo. Conquanto não me arrastasse nenhuma simpatia para o capitão, a
maneira por que me tratava e a circunstância de ter sido companheiro d’armas de
meu pai, faziam com que a companhia dele fosse naquele momento mais aceitável
que a de outro qualquer.
Além
destas razões todas, a vida que eu levava era tão monótona que a diversão do
capitão Mendonça devia encher uma boa página com matéria nova. Digo a diversão
do capitão Mendonça, porque o meu companheiro tinha não sei que no gesto e nos
olhos que me parecia excêntrico e original. Encontrar um original ao meio de tantas cópias de que anda farta a vida
humana, não é uma fortuna?
Acompanhei,
portanto, o meu capitão, que continuou a falar durante o caminho todo,
arrancando-me apenas de longe em longe um monossílabo.
No fim de
algum tempo paramos defronte de uma casa velha e escura.
— Vamos
entrar, disse Mendonça.
— Que rua
é esta? perguntei eu.
— Pois não
sabe? Oh! como anda com a cabeça a juros! Esta é a Rua da Guarda Velha.
— Ah!
O velho
bateu três pancadas; daí a alguns segundos rangia a porta nos gonzos e nós
entrávamos num corredor escuro e úmido.
— Então
não trouxeste luz? perguntou Mendonça a alguém que eu não via.
— Vim com
pressa.
— Bem;
fecha a porta. Dê cá a mão, sr. Amaral; esta entrada é um pouco esquisita, mas lá em cima estaremos melhor.
Dei-lhe a
mão.
— Está
trêmula, observou o capitão Mendonça.
Eu tremia,
com efeito; pela primeira vez surgiu-me no espírito a suspeita de que o
pretendido amigo de meu pai não fosse mais que um ladrão, e aquilo uma ratoeira
armada aos néscios.
Mas era
tarde para retroceder; qualquer demonstração de medo seria pior. Por isso,
respondi alegremente:

— Se lhe
parecer que não há de tremer quem entre por um corredor como este, o qual, haja
de perdoar, parece o corredor do inferno.
— Quase
acertou, disse o capitão, guiando-me pela escada acima.
— Quase?
— Sim; não
é o inferno, mas é o purgatório.
Estremeci
ao ouvir estas últimas palavras; todo o meu sangue precipitou-se para o
coração, que começou a bater apressado. A singularidade da figura do capitão, singularidade da casa, tudo se acumulava para
encher-me de terror. Felizmente chegamos
acima e entramos para uma sala iluminada a gás, e mobiliada como todas as casas
deste mundo.
Para
gracejar e conservar toda a independência do meu espírito, disse sorrindo:
— Está
feito, o purgatório tem boa cara; em vez de caldeiras tem sofás.
— Meu rico
senhor, respondeu o capitão, olhando fixamente para mim, coisa que pela primeira vez acontecia, porque o seu
olhar era sempre vesgo; meu rico senhor, se pensa que desse modo arranca o meu
segredo está muito enganado. Convidei-o
para cear; contente-se com isto.
Não
respondi; as palavras do capitão desvaneceram as minhas suspeitas acerca da
intenção com que ele ali me trouxera, mas criaram outras impressões; suspeitei
que o capitão estivesse doido; e o menor incidente confirmava-me a suspeita.
— Moleque!
disse o capitão; e, quando o moleque apareceu, continuou: prepara a ceia; tira
vinho da caixa nº 25; vai; quero tudo pronto em um quarto de hora.
O moleque
foi executar as ordens de Mendonça. Este, voltando-se para mim, disse:
— Sente-se
e leia alguns destes livros. Vou mudar de roupa.
— Não
volta ao teatro? perguntei eu.
— Não.
II
Poucos
minutos depois caminhávamos para a sala de jantar, que ficava nos fundos da
casa. A ceia era farta e apetitosa; no centro campeava um soberbo assado frio;
pastelinhos, doces, velhas botelhas de vinho, completavam a ceia do capitão.
— É um
banquete, disse eu.
— Qual! é
uma ceia ordinária... não vale nada.
Havia três
cadeiras.
— Sente-se
aqui, disse-me ele indicando a do meio, e sentando-se ele próprio na que ficava
à minha esquerda. Compreendi que havia mais um conviva, mas não perguntei.
Também não era preciso; daí a poucos segundos saía de uma porta em frente uma moça alta e pálida, que me
cumprimentou e se dirigiu para a
cadeira que ficava à minha direita.
cadeira que ficava à minha direita.
Levantei-me,
e fui apresentado pelo capitão à menina, que era filha dele, e acudia ao nome
de Augusta.
Confesso
que a presença da moça me tranqüilizou um pouco. Não só deixara de estar a sós
com um homem tão singular como o capitão Mendonça, mas também a presença da moça naquela casa indicava que o
capitão, se era doido como eu suspeitava, era ao menos um doido manso.
Tratei de
ser amável com a minha vizinha, enquanto o capitão trinchava o peixe com uma
habilidade e destreza que bem indicavam a sua proficiência nos misteres da boca.
— Devemos
ser amigos, disse eu a Augusta, pois que nossos pais o foram também.
Augusta
levantou para mim dois belíssimos olhos verdes. Depois sorriu e abaixou a
cabeça com ar de casquilhice ou de modéstia, porque ambas as coisas podiam ser.
Contemplei-a nessa posição; era uma formosa cabeça, perfeitamente modelada, um
perfil correto, uma pele fina, cílios longos, e cabelos cor de ouro, áurea
coma, como os poetas dizem do sol.
Durante
esse tempo Mendonça tinha concluído a tarefa; e começava a servir-nos. Augusta
brincava com a faca, talvez para mostrar-me a finura da mão e o torneado do
braço.
— Estás
muda, Augusta? perguntou o capitão servindo-a de peixe.
— Qual,
papai! estou triste.
— Triste?
Então que tens?
— Não sei;
estou triste sem causa.
Tristeza
sem causa traduz-se muitas vezes por aborrecimento. Eu traduzi assim o dito da
moça, e senti-me ferido no meu amor-próprio, aliás sem razão fundada. Para
alegrar a moça tratei de alegrar a situação. Esqueci o estado do espírito do pai,
que me parecia profundamente abalado, e entrei a conversar como se estivesse entre amigos velhos.
Augusta
pareceu gostar da conversa; o capitão também entrou a rir como um homem de
juízo; eu estava num dos meus melhores dias; acudiam-me os ditos engenhosos e
as observações de algum chiste. Filho do século, sacrifiquei ao trocadilho, com
tal felicidade que inspirei o desejo de ser imitado pela moça e pelo pai.
Quando a
ceia acabou reinava entre nós a maior intimidade.
— Quer
voltar ao teatro? perguntou-me o capitão.
— Qual!
respondi.
— Quer
dizer que prefere a nossa companhia, ou antes... a companhia de Augusta.
Esta
franqueza do velho pareceu-me um pouco indiscreta. Estou certo de que fiquei
rubro. Não aconteceu o mesmo a Augusta, que sorriu dizendo:
— Se assim
é, não lhe devo nada, porque eu também prefiro agora a sua
companhia ao melhor espetáculo deste mundo.
companhia ao melhor espetáculo deste mundo.
A
franqueza de Augusta admirou-me ainda mais que a de Mendonça. Mas não era fácil
mergulhar-me em reflexões profundas quando os belos olhos verdes da moça
estavam pregados nos meus, parecendo dizer-me:
— Seja
amável como até agora.
— Vamos
para a outra sala, disse o capitão levantando-se.
Fizemos o
mesmo. Dei o braço a Augusta, enquanto o capitão nos guiava para outra sala,
que não era a de visitas. Sentamo-nos, menos o velho, que foi acender um
cigarro numa das velas do candelabro, enquanto eu lançava um olhar rápido pela
sala, que me pareceu de todo ponto estranha. A mobília era antiga, não só no
molde, senão também na idade. No centro havia uma mesa redonda, grande, coberta
com um tapete verde. Numa das paredes havia pendurados alguns animais
empalhados. Na parede fronteira a essa havia apenas uma coruja, também
empalhada, e com olhos de vidro verde, que, apesar de fixos, pareciam
acompanhar todos os movimentos que a gente fazia.
Aqui
voltaram os meus sustos. Olhei, entretanto, para Augusta, e esta olhou para mim.
Aquela moça era o único laço que havia entre mim e o mundo, porque tudo naquela
casa me parecia realmente fantástico; e eu já não duvidava do caráter purgatorial
que me fora indicado pelo capitão.
Estivemos
silenciosos alguns minutos; o capitão fumava o cigarro passeando com as mãos
atrás das costas, posição que pode indicar a meditação de um filósofo ou a
taciturnidade de um néscio.
De repente
parou defronte de nós, sorriu, e perguntou-me:
— Não acha
formosa esta pequena?
—
Formosíssima, respondi.
— Que
lindos olhos, não são?
—
Lindíssimos, com efeito, e raros.
— Faz-me
honra esta produção, não?
Respondi
com um sorriso aprovador. Quanto a Augusta, limitou-se a dizer com adorável
simplicidade:
— Papai é
mais vaidoso do que eu; gosta de ouvir dizer que sou bonita. Quem não sabe
disso?
— Há de
notar, disse-me o capitão sentando-se, que esta pequena é franca de mais para o
seu sexo e idade...
— Não lhe
acho defeito...
— Nada de
evasivas; a verdade é essa. Augusta não se parece com as outras moças que pensam muito bem de si, mas sorriem
quando lhes fazem algum cumprimento, e franzem o sobrolho quando não lhos
fazem.
— Direi
que é uma adorável exceção, respondi eu sorrindo para a moça, que me agradeceu sorrindo também.
— Isso é,
disse o pai; mas exceção completa.
— Uma
educação racional, continuei eu, pode muito bem...
— Não só a
educação, tornou Mendonça, mas até a origem. A origem é tudo, ou quase tudo.
Não
entendi o que queria dizer o homem. Augusta parece que entendeu, porque entrou
a olhar para o teto sorrindo maliciosamente. Olhei para o capitão; o capitão
olhava para a coruja.
Reanimou-se
a conversa por espaço de alguns minutos, ao cabo dos quais o capitão, que
parecia ter uma idéia fixa, perguntou-me:
— Então
acha esses olhos bonitos?
— Já lho
disse; são tão formosos quanto raros.
— Quer que
lhos dê? perguntou o velho.
Inclinei-me
dizendo:
— Seria
muito feliz em possuir tão raras prendas; mas...
— Nada de
cerimônias; se quer, dou-lhos; senão, limito-me a mostrar-lhos.
Dizendo
isto, levantou-se o capitão e aproximou-se de Augusta, que inclinou a cabeça
sobre as mãos dele. O velho fez um pequeno movimento, a moça ergueu a cabeça, o
velho apresentou-me nas mãos os dois belos olhos da moça.
Olhei para
Augusta. Era horrível. Tinha no lugar dos olhos dois grandes buracos como uma
caveira. Desisto de descrever o que senti; não pude dar um grito; fiquei
gelado. A cabeça da moça era o que mais hediondo pode criar a imaginação
humana; imaginem uma caveira viva, falando, sorrindo, fitando em mim os dois
buracos vazios, onde pouco antes nadavam os mais belos olhos do mundo. Os
buracos pareciam ver-me; a moça contemplava o meu espanto com um sorriso
angélico.
— Veja-os
de perto, dizia o velho diante de mim; palpe-os; diga-me se já viu obra tão
perfeita.
Que faria
eu senão obedecer-lhe? Olhei para os olhos que o velho tinha na mão. Aqui foi
pior; os dois olhos estavam fitos em mim, pareciam compreender-me tanto quanto
os buracos vazios do rosto da moça; separados do rosto, não os abandonara a vida; a retina tinha a mesma luz
e os mesmos reflexos. Daquele modo as
duas mãos do velho olhavam para mim como se foram um rosto.
Não sei
que tempo se passou; o capitão tornou a aproximar-se de Augusta; esta abaixou a
cabeça, e o velho introduziu os olhos no seu lugar.
Era
horrível tudo aquilo.
— Está
pálido! disse Augusta, obrigando-me a olhar para ela, já restituída ao estado
anterior.
— É
natural... balbuciei eu; vejo coisas...
—
Incríveis? perguntou o capitão esfregando as mãos.
—
Efetivamente, incríveis, respondi; não pensava...

— Isto é
nada! exclamou o capitão; e eu folgo muito que ache incríveis essas coisas
poucas que viu, porque é sinal de que eu vou fazer pasmar o mundo.
Tirei o
lenço para limpar o suor que me caía em bagas. Durante esse tempo Augusta
levantou-se e saiu da sala.
— Vê a
graça com que ela anda? perguntou o capitão. Aquilo tudo é obra minha... é obra
do meu gabinete.
— Ah!
— É
verdade; é por ora a minha obra-prima; e creio que não há que dizer-lhe; pelo
menos o senhor parece estar encantado...
Curvei a
cabeça em sinal de assentimento. Que faria eu, pobre mortal sem força, contra
um homem e uma rapariga que me pareciam dispor de forças desconhecidas aos
homens?
Todo o meu
empenho era sair daquela casa; mas por maneira que os não molestasse. Desejava
que as horas tivessem asas; mas é nas crises terríveis que elas correm
fatalmente lentas. Dei ao diabo os meus arrufos, que foram a causa do encontro
com semelhante sujeito.
Parece que
o capitão adivinhara aquelas minhas reflexões, porque continuou, depois de algum silêncio:
— Deve
estar encantado, ainda que um tanto assustado e arrependido da sua condescendência.
Mas isso é puerilidade; nada perdeu em vir aqui, antes ganhou; fica sabendo
coisas que só mais tarde saberá o mundo. Não lhe parece melhor?
— Parece,
respondi sem saber o que dizia.
O capitão
continuou:
— Augusta
é a minha obra-prima. É um produto químico; gastei três anos para dar ao mundo
aquele milagre; mas a perseverança vence tudo, e eu sou dotado de um caráter
tenaz. Os primeiros ensaios foram maus; três vezes saiu a pequena dos meus
alambiques, sempre imperfeita. A quarta foi esforço de ciência. Quando aquela
perfeição apareceu caí-lhe aos pés. O criador admirava a criatura!
Parece que
eu tinha pintado o pasmo nos olhos, porque o velho disse:
— Vejo que
se espanta de tudo isto, e acho natural. Que poderia o senhor saber de
semelhante coisa?
Levantou-se,
deu alguns passos, e sentou-se outra vez. Nesse momento entrou o moleque trazendo café.
A presença
do moleque fez-me criar alma nova; imaginei que fosse ali dentro a única criatura verdadeiramente humana com quem
me pudesse entender. Entrei a fazer-lhe
sinais, mas não consegui ser entendido. O moleque saiu, e fiquei a sós com o
meu interlocutor.
— Beba o
seu café, meu amigo, disse-me ele, vendo que eu hesitava, não por medo, mas
porque realmente não tinha vontade de tomar coisa nenhuma.
Obedeci
como pude.
Augusta
tornou à sala.
III
O velho
voltou-se para contemplá-la; nenhum pai olhou ainda para sua filha com mais amor do que aquele. Via-se bem que o amor
era realçado pelo orgulho; havia no olhar do capitão uma certa altivez que em
geral não acompanha a ternura paterna.
Não era um
pai, era um autor.
Quanto à
moça, parecia também orgulhosa de si. Sentia bem quanto o pai a admirava.
Conhecia que todo o orgulho do velho estava nela, e por compensação todo o
orgulho dela estava no autor dos seus dias. Se a Odisséia tivesse a mesma forma,
teria o mesmo sentir, quando Homero a contemplasse.
Coisa
singular! Impressionava-me aquela mulher, apesar da sua origem misteriosa e
diabólica; eu sentia ao pé dela uma sensação nova, que não sei se era amor, se
admiração, se fatal simpatia.
Quando
fitava os olhos dela dificilmente podia afastar os meus, e contudo já tinha visto
os seus lindíssimos olhos nas mãos do pai, já tinha contemplado com terror os
buracos vazios como os olhos da morte.
Ainda que
lentamente, adiantava-se a noite; ia amortecendo o ruído de fora; entrávamos no
silêncio absoluto que tão tristemente quadrava com a sala em que me eu achava e
os interlocutores com quem me entretinha.
Era
natural retirar-me; levantei-me e pedi licença ao capitão para sair.
— Ainda é
cedo, respondeu.
— Mas eu
voltarei amanhã.
— Voltará
amanhã e quando quiser; mas por hoje é cedo. Nem sempre se encontra um homem como eu; um irmão de Deus,
um deus na terra, porque eu também posso criar como ele; e até melhor, porque
eu fiz Augusta e ele nem sempre faz criaturas como esta. Os hotentotes, por
exemplo...
— Mas,
disse eu, tenho pessoas que me esperam...
— É
possível, disse o capitão sorrindo, mas por agora não há de ir...
— Por que
não? interrompeu Augusta. Acho que pode ir, com a condição de que volta amanhã.
—
Voltarei.
— Jura-me?
— Juro.
Augusta
estendeu-me a mão.
— Está
dito! disse ela; mas se faltar...
— Morre,
acrescentou o pai.
Senti um
calafrio ao ouvir a última palavra de Mendonça. Entretanto, saí,

despedindo-me
o mais alegre e cordialmente que pude.
— Venha à
noite, disse o capitão.
— Até
amanhã, respondi.
Quando
cheguei à rua respirei. Estava livre. Acabara-se-me aquela tortura que nunca
havia imaginado. Apressei o passo e entrei em casa, meia hora depois.
Foi-me
impossível conciliar o sono. A cada instante via o meu capitão com os olhos de
Augusta nas mãos, e a imagem da moça flutuava entre o nevoeiro da minha
imaginação como uma criatura de Ossian.
Quem era
aquele homem e aquela menina? A menina era realmente um produto químico do
velho? Ambos mo haviam afirmado, e até certo ponto tive a prova disso. Podia
supô-los doidos, mas o episódio dos olhos desvanecia essa idéia. Estaria eu ainda no mundo dos vivos, ou começara
já a entrar
na região dos sonhos
e do desconhecido?
Só a
fortaleza do meu espírito resistiu a tamanhas provas; outro, que fosse mais fraco,
teria enlouquecido. E seria melhor. O que tornava a minha situação mais dolorosa
e impossível de suportar era justamente a perfeita solidez da minha razão. Do
conflito da minha razão com os meus sentidos resultava a tortura em que me eu achava; os meus olhos viam, a minha
razão negava. Como conciliar aquela
evidência com aquela incredulidade?
Não dormi.
No dia seguinte saudei o sol como um amigo ansiosamente esperado. Vi que estava
no meu quarto; o criado trouxe-me o almoço, que era todo composto de coisas deste mundo; cheguei à
janela e dei com os olhos no edifício da
câmara dos deputados; não tinha que ver mais; eu estava ainda na terra, e na terra
estava ainda aquele maldito capitão e mais a filha.
Então
refleti.
Quem sabe
se eu não podia conciliar tudo? Lembrei-me de todas as pretensões da química e
da alquimia. Ocorreu-me um conto fantástico de Hoffmann em que um alquimista
pretende ter alcançado o segredo de produzir criaturas humanas. A criação
romântica de ontem não podia ser a realidade de hoje? E se o capitão tinha
razão não era para mim grande glória denunciá-lo ao mundo?
Há em
todos os homens alguma coisa da mosca do carroção; confesso que, prevendo o triunfo do capitão, lembrei-me logo
de ir agarrado às abas da sua imortalidade. Era difícil crer na obra do homem;
mas quem acreditou em Galileu? quantos não deixaram de crer em Colombo? A
incredulidade de hoje é a sagração de amanhã. A verdade desconhecida não deixa
de ser verdade. É verdade por si mesma,
não o é pelo consenso público. Ocorreu-me a imagem dessas estrelas que os astrônomos
descobrem agora sem que elas tenham deixado de existir muitos séculos antes.
Razões de
coronel ou razões de cabo de esquadra, o certo é que eu as dei a mim próprio e
foi em virtude delas, não menos que pela fascinação do olhar da moça, que eu lá
me apresentei em casa do capitão à rua da Guarda Velha apenas anoiteceu.
O capitão
estava à minha espera.
— Não saí
de propósito, disse-me ele; contava que viesse, e queria dar-lhe o espetáculo
de uma composição química. Trabalhei o dia todo para preparar os ingredientes.

Augusta
recebeu-me com uma graça verdadeiramente adorável. Beijei-lhe a mão como se
fazia antigamente às senhoras, costume que se trocou pelo aperto de mão, aliás
digno de um século grave.
— Tive
saudades suas, disse-me ela.
— Sim?
— Aposto
que as não teve de mim?
— Tive.
— Não
acredito.
— Por quê?
— Porque
eu não sou filha bastarda. Todas as outras mulheres são filhas bastardas, eu só
posso gabar-me de ser filha legítima, porque sou filha da ciência e da vontade
do homem.
Não me admirava
menos a linguagem que a beleza de Augusta. Evidentemente era o pai quem lhe
incutia semelhantes idéias. A teoria que ela acabava de expor era tão
fantástica como o seu nascimento. O certo é que a atmosfera daquela casa já me
punha no mesmo estado que os dois habitantes dela. Foi assim que alguns
segundos depois repliquei:
—
Conquanto eu admire a ciência do capitão, lembro-lhe que ainda assim ele não fez mais do que aplicar elementos da natureza
à composição de um ente que até agora parecia excluído da ação dos reagentes
químicos e dos instrumentos de laboratório.
— Tem
razão até certo ponto, disse o capitão; mas acaso sou eu menos admirável?
— Pelo
contrário; e nenhum mortal até hoje pode gabar-se de ter ombreado com o senhor.
Augusta
sorriu agradecendo-me. Notei mentalmente o sorriso, e parece que a idéia
transluziu no meu rosto, porque o capitão, sorrindo também, disse:
— A obra
saiu perfeita, como vê, depois de muitos ensaios. O penúltimo ensaio era
completo, mas faltava uma coisa à obra; e eu queria que ela saísse tão completa como a que o outro fez.
— Que lhe
faltava então? perguntei eu.
— Não vê,
continuou o capitão, como Augusta sorri de contente quando lhe fazem alguma
alusão à beleza?
— É
verdade.
— Pois
bem, a penúltima Augusta que me saiu do laboratório não tinha isso; esquecera-me
incutir-lhe a vaidade. A obra podia ficar assim, e estou que seria, aos olhos
de muitos, mais perfeita do que esta. Mas eu não penso assim; o que eu queria
era fazer uma obra igual à do outro. Por isso, reduzi outra vez tudo ao estado
primitivo, e tratei de introduzir na massa geral uma dose maior de
mercúrio.
Não creio
que o meu rosto me traísse naquele momento; mas o meu espírito fez uma careta.
Estava disposto a crer na origem química de Augusta, mas hesitava
ouvindo os pormenores da composição.
ouvindo os pormenores da composição.
O capitão
continuou, olhando ora para mim, ora para a filha, que parecia extasiada
ouvindo a narração do pai:
— Sabe que
a química foi chamada pelos antigos, entre outros nomes, ciência de Hermes. Acho inútil lembrar-lhe que Hermes é o
nome grego de Mercúrio, e mercúrio é o nome de um corpo químico. Para
introduzir na composição de uma criatura humana a consciência, deita-se no
alambique uma onça de mercúrio. Para fazer a vaidade dobra-se a dose do mercúrio,
porque a vaidade, segundo a minha opinião, não é mais que a irradiação da
consciência; à contração da consciência
chamo eu modéstia.
—
Parece-lhe então, disse eu, que homem vaidoso é aquele que recebeu uma grande
dose de mercúrio no seu organismo?
— Sem
dúvida nenhuma. Nem pode ser outra coisa; o homem é um composto de moléculas e
corpos químicos; quem os souber reunir tem alcançado tudo.
— Tudo?
— Tem
razão; tudo, não; porque o grande segredo consiste em uma descoberta que eu fiz e constitui por assim dizer o
princípio da vida. Isso é que há de morrer comigo.
— Por que
não o declara antes para adiantamento da humanidade?
O capitão
levantou os ombros desdenhosamente; foi a única resposta que obtive.
Augusta
tinha-se levantado e foi ao piano tocar alguma coisa que me pareceu ser uma
sonata alemã. Eu pedi licença ao capitão para fumar um charuto, enquanto o
moleque veio receber ordens relativas ao chá.
IV
Acabado o
chá, disse-me o capitão:
— Doutor,
preparei hoje uma experiência em honra sua. Sabe que o diamante não é mais que
o carvão de pedra cristalizado. Há tempos tentou um sábio químico reduzir o
carvão de pedra a diamante, e li num artigo de revista que conseguiria apenas
compor um pó de diamante, e nada mais. Eu alcancei o resto; vou mostrar-lhe um pedaço de carvão de pedra e
transformá-lo em diamante.
Augusta
bateu palmas de contente. Admirado dessa alegria súbita, perguntei-lhe sorrindo
a causa.
— Gosto
muito de ver uma operação química, respondeu ela.
— Deve ser
interessante, disse eu.
— E é. Não
sei até se papai era capaz de me fazer uma coisa.
— O que é?
— Eu lhe
direi depois.
Dai a
cinco minutos estávamos todos no laboratório do capitão Mendonça, que era uma
sala pequena e escura, cheia dos instrumentos competentes. Sentamo-
nos, Augusta e
eu, enquanto o pai preparava a transformação anunciada.
nos, Augusta e
eu, enquanto o pai preparava a transformação anunciada.
Confesso
que, apesar da minha curiosidade de homem de ciência, dividia a minha atenção
entre a química do pai e as graças da filha. Augusta tinha efetivamente um
aspecto fantástico; quando entrou no laboratório respirou largamente e com prazer,
como quando se respira o ar embalsamado dos campos. Via-se que era o seu ar
natal. Travei-lhe da mão, e ela com esse estouvamento próprio da castidade
ignorante, puxou a minha mão para si, fechou-a entre as suas, e pô-las no
regaço. Nesse momento passou o capitão ao pé de nós; viu-nos e sorriu à socapa.
— Vê,
disse-me ela inclinando-se ao meu ouvido, meu pai aprova.
— Ah!
disse eu, meio alegre, meio espantado de ver aquela franqueza da parte de uma
menina.
No
entanto, o capitão trabalhava ativamente na transformação do carvão de pedra em
diamante. Para não ofender a vaidade do inventor fazia-lhe eu de quando em quando alguma observação, a que ele
respondia sempre. A minha atenção, porém, estava toda voltada para Augusta. Não
era possível ocultá-lo; eu já a amava; e por cúmulo de ventura era amado
também. O casamento seria o desenlace natural daquela simpatia. Mas deveria eu
casar-me, sem deixar de ser bom cristão? Esta idéia transtornou um pouco o meu
espírito. Escrúpulos de consciência!
A moça era
um produto químico; seu único batismo foi um banho de súlfur. A ciência daquele homem explicava tudo; mas a
minha consciência recuava. E por quê? Augusta era tão bela como as outras
mulheres — talvez mais bela —, pela mesma
razão que a folha da árvore pintada é mais bela que a folha natural. Era um
produto de arte; o saber do autor despojou o tipo humano de suas incorreções
para criar um tipo ideal, um exemplar único. Ar triste! era justamente essa idealidade que nos separaria aos olhos do
mundo!
Não sei
dizer que tempo gastou o capitão na transformação do carvão; eu deixava correr
o tempo olhando para a moça e contemplando os seus belos olhos em que havia
todas as graças e vertigens do mar.
De repente
o cheiro acre do laboratório começou a aumentar de intensidade; eu que não
estava acostumado senti-me um pouco incomodado, mas Augusta pediu-me que
ficasse ao pé dela, sem o que teria saído.
— Não
tarda! não tarda! exclamou o capitão com entusiasmo.
A
exclamação era um convite que nos fazia; eu deixei-me estar ao pé da filha. Seguiu-se
um silêncio prolongado. Fui interrompido no meu êxtase pelo capitão, que dizia:
— Pronto!
aqui está!
E
efetivamente trouxe um diamante na palma da mão, perfeitíssimo e da melhor água.
O volume era metade do carvão que servira de base à operação química. Eu, à
vista da criação de Augusta, já me não admirava de nada. Aplaudi o capitão;
quanto à filha, saltou-lhe ao pescoço e deu-lhe dois apertadíssimos abraços.
— Já vejo,
meu caro sr. capitão, que deste modo deve ficar rico. Pode transformar em
diamante todo o carvão que lhe parecer.
— Para
quê? perguntou-me ele. Aos olhos de um naturalista o diamante e o carvão de
pedra valem a mesma coisa.
— Sim, mas
aos olhos do mundo...
— Aos
olhos do mundo o diamante é a riqueza, bem sei; mas é a riqueza relativa. Suponha,
meu rico sr. Amaral, que as minas de carvão do mundo inteiro, por meio de um alambique monstro, se transformam
em diamante. De um dia para outro o mundo caía na miséria. O carvão é a
riqueza; o diamante é o supérfluo.
—
Concordo.
— Faço
isto para mostrar que posso e sei; mas não o direi a ninguém. É segredo que
fica comigo.
— Não
trabalha então por amor à ciência?
— Não;
tenho algum amor à ciência, mas é um amor platônico. Trabalho para mostrar que
sei e posso criar. Quanto aos outros homens, importa-me pouco que saibam ou
não. Chamar-me-ão egoísta; eu digo que sou filósofo. Quer este diamante como
prova da minha estima e amostra do meu saber?
— Aceito,
respondi.
— Aqui o
tem; mas lembre-se sempre que esta pedra rutilante, tão procurada no mundo, e
de tanto valor, capaz de lançar a guerra entre os homens, esta pedra não é mais
que um pedaço de carvão.
Guardei o
brilhante, que era lindíssimo, e acompanhei o capitão e a filha que saíam do
laboratório. O que naquele momento me impressionava mais que tudo era a moça.
Eu não trocaria por ela todos os diamantes célebres do mundo. Cada hora que
passava ao pé dela aumentava a minha fascinação. Sentia invadir-me o delírio do
amor; mais um dia e eu estaria unido àquela mulher irresistivelmente; separar-nos seria a morte para mim.
Quando
chegamos à sala, o capitão Mendonça perguntou à filha, batendo uma pancada na
testa:
— É
verdade! Não me disseste que tinhas de pedir-me uma coisa?
— Sim; mas
agora é tarde; amanhã. O doutor aparece, não?
— Sem
dúvida.
— Afinal,
disse Mendonça, o doutor há de acostumar-se aos meus trabalhos... e acreditará
então...
— Já
creio. Não posso negar a evidência; quem tem razão é o senhor; o resto do mundo
não sabe nada.
Mendonça
ouvia-me radiante de orgulho; o seu olhar, mais vago que nunca, parecia
refletir a vertigem do espírito.
— Tem
razão, disse ele, depois de alguns minutos; eu estou muito acima dos outros
homens. A minha obra-prima...
— É esta,
disse eu apontando para Augusta.
— Por ora,
respondeu o capitão; mas eu medito coisas mais pasmosas; por exemplo, creio que
descobri o meio de criar gênios.
— Como?
— Pego num
homem de talento, notável ou medíocre, ou até num homem nulo, e faço dele um
gênio.
— Isso é
fácil...
— Fácil,
não; é apenas possível. Aprendi isto... Aprendi? não, descobri isto, guiado por uma palavra que encontrei num livro
árabe do século décimo sexto. Quer
vê-lo?
Não tive
tempo de responder; o capitão saiu e voltou daí a alguns segundos com um livro
in-fólio na mão, grosseiramente impresso em caracteres árabes feitos com tinta vermelha. Explicou-me a sua idéia,
mas por alto; eu não lhe prestei grande atenção; os meus olhos estavam
embebidos nos de Augusta.
Quando sai
era meia-noite. Augusta com voz suplicante e terna disse-me:
— Vem
amanhã?
— Venho!
O velho
estava de costas; eu levei a mão dela aos meus lábios e imprimi-lhe um longo e
apaixonado beijo.
Depois saí
correndo: tinha medo dela e de mim.
V
No dia
seguinte recebi um bilhete do capitão Mendonça, logo de manhã:
Grande
notícia! Trata-se da nossa felicidade, da sua, da minha e da de Augusta. Venha à noite sem falta.
Não
faltei.
Fui
recebido por Augusta, que me apertou as mãos com fogo. Estávamos sós; ousei
dar-lhe um beijo na face. Ela corou muito, mas retribuiu-me imediatamente o
beijo.
— Recebi
hoje um bilhete misterioso de seu pai...
— Já sei,
disse a moça; trata-se com efeito da nossa felicidade.
Passava-se
isto no patamar da escada.
— Entre!
entre! gritou o velho capitão.
Entramos.
O capitão
estava na sala fumando um cigarro e passeando com as mãos nas costas, como na
primeira noite em que o vira. Abraçou-me, e mandou que me sentasse.
— Meu caro
doutor, disse-me ele depois que nos sentamos ambos, ficando Augusta de pé
encostada à cadeira do pai; meu caro doutor, raras vezes a fortuna cai a ponto
de fazer a completa felicidade de três pessoas. A felicidade é a mais rara
coisa deste mundo.

— Mais
rara que as pérolas, disse eu sentenciosamente.
— Muito
mais, e de maior valia. Dizem que César comprou por seis milhões de sestércios
uma pérola, para presentear Sevília. Quanto não daria ele por essa outra
pérola, que recebeu de graça, e que lhe deu o poder do mundo?
— Qual?
— O gênio.
A felicidade é o gênio.
Fiquei um
pouco aborrecido com a conversa do capitão. Eu cuidava que a felicidade de que
se tratava para mim e Augusta era o nosso casamento. Quando o homem me falou no
gênio, olhei para a moça com olhos tão aflitos, que ela veio em meu auxilio
dizendo ao pai:
— Mas,
papai, comece pelo princípio.
— Tens
razão; desculpa se o sábio faz esquecer o pai. Trata-se, meu caro amigo — dou-lhe este nome —, trata-se de um
casamento.
— Ah!
— Minha
filha confessou-me hoje de manhã que o ama loucamente e é igualmente amada.
Daqui ao casamento é um passo.
— Tem
razão; amo loucamente sua filha, e estou pronto a casar-me com ela, se o
capitão consente.
—
Consinto, aplaudo e agradeço.
Preciso
acaso dizer que a resposta do capitão, ainda que prevista, encheu de felicidade o meu coração ambicioso?
Levantei-me e apertei alegremente a mão do
capitão.
—
Compreendo! compreendo! disse o velho; já passaram por mim essas coisas. O amor
é quase tudo na vida; a vida tem duas grandes faces: o amor e a ciência. Quem
não compreender isto não é digno de ser homem. O poder e a glória não impedem
que a caveira de Alexandre seja igual à caveira de um truão. As grandezas da
terra não valem uma flor nascida à beira dos rios. O amor é o coração, a ciência
a cabeça; o poder é simplesmente a espada...
Interrompi
esta enfadonha preleção acerca das grandezas humanas dizendo a Augusta que
desejava fazer a sua felicidade e ajudar com ela a tornar tranqüila e alegre a
velhice do pai.
— Lá por
isso não se incomode, meu genro. Eu hei de ser feliz, quer queiram quer não. Um
homem de minha têmpera nunca é infeliz. Tenho a felicidade nas mãos, não a faço
depender de vãos preconceitos sociais.
Poucas
palavras mais trocamos neste assunto, até que Augusta tomou a palavra dizendo:
— Mas,
papai, ainda lhe não falou das nossas condições.
— Não te
impacientes, pequena; a noite é grande.
— De que
se trata? perguntei eu.
Mendonça
respondeu:

— Trata-se
de uma condição lembrada por minha filha; e que o doutor naturalmente aceita.
— Pois
não!
— Minha
filha, continuou o capitão, deseja uma aliança digna de si e de mim.
— Não lhe
parece que eu possa?...
— É
excelente para o caso, mas falta-lhe uma pequena coisa...
— Riqueza?
— Ora,
riqueza! isso tenho eu de sobra... se quiser. O que lhe falta, meu rico, é justamente
o que me sobra.
Fiz um
gesto de compreender o que ele dizia, mas simplesmente por formalidade, porque eu não compreendia nada.
O capitão
tirou-me do embaraço.
—
Falta-lhe gênio, disse.
— Ah!
— Minha
filha pensa muito bem que a descendente de um gênio, só de outro gênio pode ser
esposa. Não hei de entregar a minha obra às mãos grosseiras de um hotentote; e
posto que, na planta geral dos outros homens, o senhor seja efetivamente um
homem de talento — aos meus olhos não passa de um animal muito mesquinho —,
pela mesma razão de que quatro candelabros alumiam uma sala e não poderiam
alumiar a abóbada celeste.
— Mas...
— Se lhe
não agrada a figura, dou-lhe outra mais vulgar: a mais bela estrela do céu nada
vale desde que aparece o sol. O senhor será uma bonita estrela, mas eu sou o
sol, e diante de mim vale tanto uma estrela como um fósforo, como um vaga-lume.
O capitão
dizia isto com um ar diabólico, e o olhar mais vago que nunca. Receei que
realmente o meu capitão, apesar de sábio, tivesse um acesso de loucura. Como
sair-lhe das garras? e teria eu ânimo de fazê-lo diante de Augusta, a quem me
prendia uma simpatia fatal?
Interveio
a moça.
— Bem
sabemos de tudo isto, disse ela ao pai; mas não se trata de dizer que ele nada
vale; trata-se de dizer que há de valer muito... tudo.
— Como
assim? perguntei.
—
Introduzindo-lhe o gênio.
Apesar da
conversa que a este respeito tivemos na noite anterior, não compreendi logo a explicação de Mendonça; mas
ele teve a caridade de me expor claramente a sua idéia.
— Depois
de profundas e pacientes investigações, cheguei a descobrir que o talento é uma
pequena quantidade de éter encerrado numa cavidade do cérebro; o gênio é o
mesmo éter em porção centuplicada. Para dar gênio a um homem de
talento basta inserir na referida cavidade do
cérebro mais noventa e nove quantidades de éter puro. É justamente a operação
que vamos fazer.
talento basta inserir na referida cavidade do
cérebro mais noventa e nove quantidades de éter puro. É justamente a operação
que vamos fazer.
Deixo a
imaginação do leitor calcular a soma de espanto que me causou este feroz projeto do meu futuro sogro; espanto que
redobrou quando Augusta disse:
— É uma
verdadeira felicidade que papai houvesse feito esta descoberta. Faremos hoje
mesmo a operação, sim?
Seriam
dois loucos? ou andaria eu num mundo de fantasmas? Olhei para ambos; ambos
estavam risonhos e tranqüilos como se houvessem dito a coisa mais
natural
deste mundo.
Tranqüilizou-se-me
o ânimo a pouco e pouco; refleti que era um homem robusto, e que não seria um
velho e uma moça débil que me haviam de forçar a uma operação que eu considerava
um simples e puro assassinato.
— A
operação será hoje, disse Augusta depois de alguns instantes.
— Hoje,
não, respondi; mas amanhã a esta hora com toda a certeza.
— Por que
não hoje? perguntou a filha do capitão.
— Tenho
muito que fazer.
O capitão
sorriu com ar de quem não engolia a pílula.
— Meu
genro, eu sou velho e conheço todos os recursos da mentira. O adiamento que nos
pede é uma evasiva grosseira. Pois não é muito melhor ser hoje um grande
luzeiro da humanidade, um êmulo de Deus, do que ficar até amanhã simples homem
como os outros?
— Sem
dúvida; mas amanhã teremos mais tempo...
— Eu
apenas lhe peço meia hora.
— Pois
bem, será hoje; mas eu desejo simplesmente dispor agora de uns três quartos de
hora, findos os quais volto e fico à sua disposição.
O velho
Mendonça fingiu aceitar a proposta.
— Pois
sim; mas para ver que eu não me descuidei do senhor, ande cá ao laboratório ver
a soma de éter que pretendo introduzir-lhe no cérebro.
Fomos ao
laboratório; Augusta ia pelo meu braço; o capitão caminhava adiante com uma
lanterna na mão. O laboratório estava iluminado com três velas em forma de
triângulo. Noutra ocasião perguntaria eu a razão daquela disposição especial
das velas; mas naquele momento todo o meu desejo era estar longe de semelhante
casa.
E contudo
uma força me prendia, e dificilmente poderia eu arrancar-me dali; era Augusta.
Aquela moça exercia sobre mim uma pressão a um tempo doce e dolorosa; sentia-me
escravo dela, a minha vida como que se fundia na sua; era uma fascinação
vertiginosa.
O capitão
sacou de um caixão de madeira preta um frasco contendo éter. Disse-me ele que
havia no frasco, porque eu não vi coisa nenhuma, e fazendo esta observação,
respondeu-me ele:
— Pois
precisa ver o gênio? Afirmo-lhe que há aqui dentro noventa e nove doses
de éter, as quais, juntas à única dose que a
natureza lhe deu, formarão cem doses perfeitas.
de éter, as quais, juntas à única dose que a
natureza lhe deu, formarão cem doses perfeitas.
A moça
pegou no frasco e o examinou contra a luz. Pela minha parte, limitei-me a
convencer o homem por meio da minha simplicidade.
— Afirma-me,
disse-lhe eu, que é gênio de primeira ordem?
—
Afirmo-lho. Mas por que se há de fiar em palavras? O senhor vai saber o que é.
Dizendo
isto puxou-me pelo braço com tamanha força que eu vacilei. Compreendi que era
chegada a crise fatal. Procurei desvencilhar-me do velho, mas senti cair- me na
cabeça três ou quatro gotas de um líquido gelado; perdi as forças, fraquearam-me as pernas; caí no chão sem
movimento.
Aqui não
poderei descrever cabalmente a minha tortura; eu via e ouvia tudo sem poder
articular uma palavra nem fazer um gesto.
— Queria
lutar comigo, maganão? dizia o químico; lutar com aquele que te vai fazer
feliz! Era ingratidão antecipada; amanhã tu me hás de abraçar contentíssimo.
Voltei os
olhos para Augusta; a filha do capitão preparava um longo estilete, enquanto o velho tratava de introduzir
sutilmente no frasco um finíssimo tubo de borracha destinado a transportar o
éter do frasco para o interior do meu cérebro.
Não sei
que tempo durou a preparação do meu suplício; sei que ambos se aproximaram de
mim; o capitão trazia o estilete e a filha o frasco.
— Augusta,
disse o pai, toma cuidado não se derrame éter nenhum; olha, traz aquela luz;
bem; senta-te aí no banquinho. Eu vou furar-lhe a cabeça. Apenas sacar o
estilete, introduze-lhe o tubo e abre a pequena mola. Bastam dois minutos; aqui
tens o relógio.
Ouvi
aquilo tudo banhado em suores frios. De repente os olhos foram-se-me enterrando;
as feições do capitão assumiram proporções descomunais e fantásticas; uma luz
verde e amarela enchia todo o quarto; pouco a pouco os objetos iam perdendo as formas, e tudo em
volta de mim ficou mergulhado numa penumbra crepuscular.
Senti uma
dor agudíssima no alto do crânio; corpo estranho penetrou até o interior do
cérebro. Não sei de mais nada. Creio que desmaiei.
Quando dei
acordo de mim o laboratório estava deserto; pai e filha tinham desaparecido.
Pareceu-me ver em frente de mim uma cortina. Uma voz forte e áspera soou aos
meus ouvidos:
— Olá!
acorde!
— Que é?
— Acorde!
quem tem sono dorme em casa, não vem ao teatro.
Abri de
todo os olhos; vi em frente de mim um sujeito desconhecido; eu achava- me
sentado numa cadeira no teatro de S. Pedro.
— Ande,
disse o sujeito, quero fechar as portas.
— Pois o
espetáculo acabou?
— Há dez
minutos.
— E eu
dormi esse tempo todo?
— Como uma
pedra.
— Que
vergonha!
—
Realmente, não fez grande figura; todos que estavam perto riam de o ver dormir
enquanto se representava. Parece que o sono foi agitado...
— Sim, um
pesadelo... Queira perdoar; vou-me embora.
E saí
protestando não recorrer, em casos de arrufo, aos dramas ultra-românticos: são
pesados demais.
Quando ia
pôr o pé na rua, chamou-me o porteiro, e entregou-me um bilhete do capitão Mendonça. Dizia assim:
Meu caro
doutor.
Entrei há
pouco e vi-o dormir com tão boa vontade que achei mais prudente ir-me embora
pedindo-lhe que me visite quando quiser, no que me dará muita honra.
10 horas
da noite.
Apesar de
saber que o Mendonça da realidade não era o do sonho, desisti de o ir visitar.
Berrem os praguentos, embora — tu és a rainha do mundo, ó superstição.
---
Nota:
Texto-fonte: Publicado
originalmente em Jornal das
Famílias, 1870. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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