
O REI DOS CAIPORAS
Os acontecimentos humanos são regidos por um destino cego e caprichoso? Há estrelas propícias e estrelas funestas? Tem fundamento a crença popular de que certas criaturas são felizes porque choraram no ventre materno, e outras desgraçadas porque não choraram nem riram?
Questão é
esta que não me atrevo a deslindar. A filosofia diz que os homens dependem de
si; o vulgo aponta mil casos em que todos os esforços de um homem vão esbarrar
diante de uma força invisível que o não deixa dar um passo adiante. A filosofia
é uma boa senhora, e o vulgo é um sujeito prático; seria parcialidade inclinar-me a qualquer deles.
Atento-me a ambos.
O que vou
contar alude a esta questão de fatalidade e destino. O vulgo inventou uma
palavra para indicar a fatalidade de um homem; chama-lhe Caiporismo. Os dicionários
ainda não trazem o termo, mas ele corre já pelas salas e ruas e adquiriu
direito de cidade.
João das
Mercês era o tipo do homem caipora. O destino com todas as suas legiões de
auxiliares tinha tomado a pessoa de João das Mercês por alvo de seus tiros.
João das Mercês se caísse de costas tinha toda a certeza de quebrar o nariz.
Choveram-lhe
desde o berço as contrariedades. Entrou no mundo com o pé esquerdo. É mister
ler esta expressão com a sua significação literal e real. A mãe de João das
Mercês não resistiu aos trabalhos cirúrgicos e faleceu horas depois de vir à
luz o filho.
Foi-se
buscar à pressa uma ama. Encontrou-se ao cabo de algumas horas uma preta que
alimentou o pequeno durante cinco dias, e morreu de erisipela em um joelho. A
segunda ama era uma mulher livre que tinha a mania de jogar na loteria, e que
ao fim de um mês tirou a sorte grande: saiu da casa para ir abrir uma loja de
costuras. A terceira entrou a amar o irmão mais velho do pequeno, com violência
tal, que o pai julgou acertado mandá-la embora. Veio quarta ama que era
dorminhoca e deixava o pequeno berrar toda a santa noite; a quinta ama era
respondona; a sexta dividia os afetos entre o menino e um permanente; a sétima
foi aturada até o fim do tempo da amamentação, a despeito de uma voz de soprano
que irritava os nervos do dono da casa, cantando modinhas do Norte todo o
santíssimo dia.
Parece que
esta variedade de leite e de amas influiu poderosamente em João das Mercês.
Logo nos primeiros anos verificou-se nele uma tendência pronunciada para o
sono, influxo da quarta ama. Aos cinco anos nada o alegrava mais que ver passar
a tropa na rua, gosto que lhe ficou naturalmente do leite que bebeu à namorada
do permanente. Aos sete anos cantava sofrivelmente, aos oito teve uma
erisipela, aos doze furtou ao pai cinco mil-réis para comprar um quarto de loteria;
aos quinze começou a namorar uma prima e aos dezesseis foi posto fora de casa
por seus atrevimentos.
Aqui temos
nós João das Mercês na rua, com dezesseis anos, sem vintém na
algibeira, nem pouso certo. Felizmente a prima
que ele namorava ainda tinha mãe e pai, que eram muito amigos de João das
Mercês e haviam até brigado com o pai dele a propósito de umas palmatoadas que
este aplicara no filho. João
algibeira, nem pouso certo. Felizmente a prima
que ele namorava ainda tinha mãe e pai, que eram muito amigos de João das
Mercês e haviam até brigado com o pai dele a propósito de umas palmatoadas que
este aplicara no filho. João
encaminhou-se
para lá.
— Meu pai
deitou-me fora de casa, disse ele a D. Angélica; venho ver se me dão pouso e mesa,
porque não tenho outro recurso.
— Fica
João, respondeu a senhora dona Angélica; fizeste bem em te lembrares que ainda
tens uma tia; aqui não te há de faltar nada, ao menos enquanto eu e o Gaspar
vivermos.
Marianinha
apareceu na sala e soube das desgraças do jovem primo. Ao mesmo tempo teve
notícia de que ele ia morar lá. Marianinha, que era o tipo da inocência, bateu
palmas e apertou a mão do primo, com uma efusão tal que não escapou à
perspicácia da senhora dona Angélica.
D.
Angélica tinha muitas razões para patrocinar os amores da filha e do sobrinho. Bem sabia ela que João das Mercês não tinha
herança nem emprego; mas em compensação Marianinha tinha uma perna mais curta
que a outra. Arranjado o rapaz, bem se lhe podia dar a pequena e tudo ficava em
casa.
Gaspar
aprovou todas as decisões da mulher, com tanta maior benevolência, quanto que,
se as não aprovasse, seria a mesma coisa. Durante vinte anos de casamento, não
constava que Gaspar tivesse jamais iniciado alguma coisa em casa, nem sequer
desaprovado a mulher. D. Angélica teve sempre o comando do exército doméstico, e devo acrescentar com a
fidelidade de um romancista sincero que
D. Angélica exercia esse comando com uma severidade digna de um general.
A boa
velha era caprichosa; o marido era o tipo da obediência. Um dia acordou D. Angélica
com a idéia de que o esposo devia usar suíças. Gaspar, que trazia a barba toda,
desde que ela achou que era a única moda respeitável, ia ao barbeiro e punha
abaixo metade do pêlo. Dois meses depois, Angélica adotava o sistema dos
bigodes, por se ter namorado de um retrato de Napoleão III. O marido voltava
para casa com uma faixa de soldado francês. Suspeitava-se que o corte das
calças inexplicáveis de Gaspar era produção de D. Angélica.
Aqui
temos, em duas palavras, a nova família de João das Mercês. Sabendo com que
amor o tratavam, o nosso João imaginou que ia levar uma vida regalada. Infelizmente
foi ilusão que durou pouco. D. Angélica disse um dia à mesa que era preciso
arranjar algum emprego para o sobrinho. Gaspar não se fez esperar. Foi dali a
um cavalheiro com que andara na escola e que ocupava então o lugar de ministro da Guerra. Pediu-lhe um emprego.
Gaspar foi notável durante toda a sua vida pelo aferro com que sempre
acompanhara o ministério atual. Obteve o emprego.
João das
Mercês obedeceu à intimação da sua tia e foi ocupar o lugar no Arsenal de
Guerra, tendo obtido antes consentimento do pai.
Marianinha
amava o primo, com toda a força de seus quinze anos. Era uma rapariga assaz
bonita, assaz faceira, dotada de um excelente coração. João das Mercês, que era
estouvado e mal educado, não deixava de ter igualmente um coração digno de
apreço. Amavam-se estas duas criaturas com o aferro de um primeiro amor. D.
Angélica alimentava esta chama que, segundo ela, devia ser legitimada na
igreja.
João das
Mercês também nutria essas esperanças; e tratava de as comunicar à prima.

— Quando
formos casados, dizia ele, havemos de ser felizes.
— Casados?
— Sim.
— Quando
há de ser?
— Um dia,
quando eu tiver mais idade.
— Ah! se
fosse já!...
Gaspar
ouviu um dia esta conversa, e não se pôde ter de furor.
— Casar!
exclamou ele; pois vocês já falam em casar? Onde é que se viu isto? Que diria
tua mãe, quando souber que já a minha filha fala em casamento? E tu, meu
pirralho, que idéias andas metendo na cabeça de tua prima? Ora esperem!
Marianinha
tremia; João murmurava uma resposta ao tio, quando este chegando-se à porta
gritou para dentro:
— Oh!
senhora dona Angélica!
— Que
temos? gritou de dentro a esposa de Gaspar.
— Queira
vir ate cá, respondeu o marido com voz macia.
— Não me
faltava mais nada! venha cá você.
Gaspar fez
um gesto de ameaça aos pequenos e foi ter com a mulher a que expôs o que
acabava de ouvir.
— E que
tem você com isso? disse-lhe a mulher. Se os pequenos gostam um do outro, fazem
muito bem; e eu até estimo isso, porque já andava com idéias de os unir. Você
veio atrapalhar tudo; ora vai, vai tranqüilizar os pequenos.
Gaspar
engoliu dificilmente a pílula. Atravessou o corredor como se passasse pelas
forcas caudinas; e voltou à sala onde os namorados tremiam pelo desfecho da
cena.
— O amor,
meus filhos, disse ele, é uma coisa santa, se vocês se amam com seriedade, sou o primeiro a aprovar esse
sentimento que nos eleva aos nossos próprios
olhos; o que eu combato, e que todos os bons pais devem combater, é o namoro
sem fim, o passatempo indigno de jovens bem formados. Quando eu e a respeitável
D. Angélica (aqui levantou muito a voz) nos amamos foi...
— Deixe-se
de estar contando essas coisas aos pequenos, clamou de dentro a senhora dona
Angélica.
— Foi
seriamente, continuou Gaspar em voz baixa.
Tudo
favorecia os amores de João das Mercês; mas ele não contava com o destino.
André das
Mercês, pai do nosso João, arrependeu-se um dia de ter posto o filho fora de
casa, e foi ter com a irmã para obter a volta de João das Mercês. D. Angélica
opôs-se vivamente à saída do sobrinho. Disse francamente ao irmão que o seu
projeto era insensato; que, já que tinha praticado um erro, devia agüentar com
todas as conseqüências dele.

André era
tão esturrado como a irmã; respondeu-lhe rispidamente; ela insistiu; insistiu;
e depois de uma longa discussão em que ambos mostraram toda a solidez da
respectiva língua, saiu André disposto a proceder violentamente.
Em caminho
refletiu que não era conveniente dar um escândalo, e que podia alcançar tudo
por bons modos.
— Talvez
ela hoje estivesse de mau humor, pensou ele.
Encontrou
o cunhado e expôs-lhe a questão.
— Meu
amigo, disse-lhe Gaspar, eu aprovo o procedimento de minha mulher, sem deixar
de aprovar as suas louváveis intenções...
—
Louváveis, tem razão, acudiu André; o que eu quero é receber meu filho em casa.
Assiste-me o direito...
— Não
contesto.
— A mana
está teimosa; mas se você intervier, pode ser que eu consiga alguma coisa...
— Acha
então que eu...
— Sem
dúvida, venha comigo.
— Vamos.
Minha mulher atende muito ao que eu digo. Com duas palavras minhas estou que
arranjarei tudo. O caso é que o senhor não estrague tudo com as suas insistências...
Deixe-me falar só.
— Estou
por tudo; eu não desejo brigar com ela.
— Está
visto. O que se quer é fazer-lhe ouvir a razão. Sabe o que são senhoras; caprichosas,
intolerantes; mas deixe-me, eu farei tudo... Espere-me aqui um bocadinho, que
eu vou ali à esquina comprar rapé, que tenho a caixa vazia.
— Eu vou
também.
— Não;
deixe-me ir só; o homem não gosta de vender rapé à vista de gente. São três
minutos.
Gaspar
voltou à esquina e meteu-se em um corredor. André, depois de passear perto de
um quarto de hora, foi à esquina e perguntou no armarinho pelo cunhado.
— Aqui só
veio um preto comprar uma vela de cera, respondeu o caixeiro.
André
ficou furioso, mas compreendeu tudo. Sabia que a irmã dominava o marido, mas
não calculava que chegasse a tanto.
Resolveu,
portanto, fazer as coisas por si.
No dia
seguinte apareceu em casa de Angélica (não ouso dizer em casa de Gaspar) e de
novo insistiu na entrega do pequeno; a missão não teve nenhum efeito. André
resolveu ir esperar à porta do Arsenal de Guerra que o pequeno saísse e
deitar-lhe a mão em cima.
João das
Mercês não escapou ao laço.
Nesse
mesmo dia foi morar para casa do pai com ordem de não sair nem para o
emprego nem para casa da tia.
emprego nem para casa da tia.
Imaginem o
furor de D. Angélica e a dor de Marianinha. Gaspar fez cem projetos de
vingança, sem que a mulher lhe aceitasse nenhum.
Separado
da jovem namorada, João das Mercês ficou entregue ao mais profundo desespero.
Correram os meses sem que se avistassem os dois. Ao cabo de um ano, André
arranjou para o filho um emprego, e foi a primeira vez que o mísero pôde pisar
a rua. Seu primeiro cuidado foi ir à casa da tia.
Achou-se
na sala toda a família e mais um rapaz de casaca e luvas brancas. Marianinha
empalideceu um pouco, mas logo lhe passou essa manifestação de remorso. Remorso
digo, porque o sujeito de luvas brancas e casaca, como o leitor há de ter
percebido, vinha pedir a moça em casamento.
D.
Angélica acabava um discurso acerca dos deveres do casamento e do amor das mães
aos filhos, discurso que Gaspar ouvia com aprovação de cabeça, e o noivo com
abrimentos de boca.
João das
Mercês não resistiu à dor. Saiu furioso acusando os céus e a terra das suas
desgraças. Complicaram-se estas com a morte do pai. João das Mercês ficou no mundo
sozinho. Era preciso trabalhar; o rapaz entrou a trabalhar como um mouro.
Houve
entretanto não sei que pretendente ao lugar dele; parece que o pretendente
tinha jus ao lugar, porque um dia de manhã o chefe da repartição mandou
chamar João das Mercês e deu-lhe a triste notícia de que estava demitido.
Nessa
triste posição esteve João das Mercês uns quinze dias que foi quanto lhe durou o
resto do ordenado. Ao fim desse tempo não tinha que comer. O estômago é
engenhoso e tem boa memória. João lembrou-se que havia, em uma casa de
pasto do seu conhecimento, um caixeiro a quem emprestara dez mil-réis em ocasião
em que se achava desempregado. Correu para lá.
O caixeiro
conheceu o credor, e acudiu a servi-lo. João das Mercês pediu alguma coisa para
almoçar, e fingindo ler a lista declarou ao caixeiro que não tinha dinheiro
naquela ocasião.
O caixeiro
era bom rapaz e não deixou de o servir. Foi pelo mesmo teor o jantar e a ceia.
No dia seguinte não havendo outra vela no horizonte culinário, João das Mercês
recorreu ainda ao caixeiro, que não deixou de lhe fiar o comer; mas pensando
que a penúria de João das Mercês era temporária, limitou-se a afiançar ao dono da
casa a capacidade do freguês.
Ao fim de
duas semanas, quando João das Mercês se assentava para comer o seu
décimo-quinto
almoço, o dono da casa foi-lhe levar uma conta que fez
empalidecer
o pobre rapaz.
— Amanhã
lhe pago isto, respondeu ele pondo a conta no bolso, e com tanta confiança
que parecia estar à espera de algum legado. Ignora-se como comeu ele no dia
seguinte e nos outros. Um mês depois achamo-lo empregado em copiar certidões
e outros papéis em casa de um tabelião. Era ativo no trabalho e sério no
procedimento; infelizmente o tabelião padecia de moléstias que o enchiam de mau humor
certas manhãs, mormente se comia na véspera carne cozida. Um dia em que o
tabelião entrou no cartório afinadíssimo, João das Mercês teve a desgraça
de copiar mal um papel. O tabelião revoltou-se contra o escrevente, e mandou
fazer outra cópia, a qual, não saindo capaz, levou o tabelião às nuvens. Por
desgraça, João das Mercês abalroou na mesa e entornou-lhe o tinteiro sobre uma
procuração.
Foi
demitido.
Tentou
João das Mercês entrar no comércio, e alcançou ser admitido como sócio de
indústria em um armarinho. O armarinho era afreguesado e João das Mercês julgou
ter enfim dado o último golpe no caiporismo. Daí a um ano reconheceu que andava
iludido com a aparente vitória.
O
caiporismo é a hidra de Lerna.
O sócio
disse-lhe um dia de manhã que ia buscar um primo em Sapopemba e partiu
acompanhado de uma pequena mala.
João das
Mercês ficou em casa só.
Mas os
dias correram sem que o sócio voltasse; até que João fosse surpreendido com uma letra de quinhentos mil-réis. Recorreu
à burra e não achou vintém. Deu parte à
polícia; mas nem por isso escapou da correição.
Foi solto
depois de um laborioso processo em que ficou provada a sua completa inocência.
Os credores tomaram conta dos bens, e João das Mercês ficou no meio da rua com
as algibeiras vazias e nenhuma esperança de melhora.
Não tinha
as algibeiras vazias de todo; depois de as revolver muito achou seis mil-réis.
— Que
tempo me durará isto? perguntou ele a si mesmo. Nem três dias; é preciso comer
e dormir. Acabado este dinheiro estou como antes. Que farei?
Aqui teve
uma dessas inspirações que salvam impérios.
— Gasto
dez tostões em alguma coisa, e com os cinco mil-réis de resto compro um quarto
de loteria.
Já sabemos
que ele tinha esta mania que lhe deixara uma das sete amas.
Assim fez.
Depois de
comer tranqüilamente um almoço sucinto e modesto, encaminhou-se para a Rua da
Quitanda e comprou o bilhete.
— 1441,
disse ele, bom número; tenho fé.
Tinha uma
esperança mas não tinha jantar nem cama. Felizmente a roda corria no dia
seguinte. João das Mercês entrou a passear pelas ruas, disposto a sofrer filosoficamente
a fome e o mais na esperança dos vinte contos.
Casualmente
encontrou o tio Gaspar.
— Como
estás? perguntou-lhe o tio.
— Bom.
— Já te
livraste do processo?
— Já.
— Tão
depressa?
— Acha que
foi depressa?
— Sim,
essas coisas costumam a ser mais longas. Eu quis fazer alguma coisa por ti; mas
tua tia, que é uma senhora de muito bem pensar, disse: “— Era bom ir socorrer o Joãozinho; mas o crime é tão feio
que não é bom a gente meter-se nisto;
que pensas tu, Gaspar?” “— Que hei de pensar, mulher? Penso que o rapaz é
inocente e que foi atraiçoado; mas as aparências enganam... e nesse caso é minha
vontade que não nos metamos nisto”.
— Faz bem.
— Onde
estás agora?
— Aqui na
rua.
— Mas qual
é o teu emprego?
— Passear.
— Que dizes?
— A
verdade.
Gaspar,
que não era mau homem, ficou penalizado com a situação do sobrinho. Quis fazer alguma coisa por ele; mas não
ousava.
— Já
comeste?
— Hoje
comi; amanhã não sei.
— Olha,
disse Gaspar com um belo movimento de generosidade, toma lá; eu fui agora mesmo
receber um dinheiro; toma dez mil-réis.
João das
Mercês aceitou os dez mil-réis e abraçou o tio.
— Bem!
disse ele, a sorte começa a ceder. Já tenho com que dormir hoje e comer amanhã.
Era não
contar com o caiporismo e D. Angélica. Esta senhora pediu ao marido contas do
dinheiro que fora cobrar. Gaspar contou-lhe francamente o estado em que achara
João das Mercês e o procedimento que tivera. D. Angélica irritou-se contra o marido e o sobrinho e exigiu a
imediata entrega do dinheiro. Por honra dela, devo dizer que a sua intenção era
simplesmente mortificar o marido. Mas este, acostumado a obedecer-lhe, tomou à
letra a ordem e saiu desesperado em busca de alguém que lhe emprestasse dez
mil-réis.
Esse
alguém foi o sobrinho.
João das
Mercês viu de longe o tio e aproximou-se dele. Achou-o triste e taciturno,
perguntou-lhe o que tinha.
— Nada,
disse Gaspar.
— Alguma
coisa tem meu tio; vamos, diga o que é.
Gaspar não
disse palavra.
Então
lembrou-se João das Mercês do domínio que a tia exercia no ânimo do marido, e
calculou que a tristeza de Gaspar se prendesse ao generoso presente dos dez
mil-réis.

— Qual!
disse Gaspar, quando João das Mercês lhe comunicou a suspeita; Angélica
não era capaz de semelhante coisa; estima-te e respeita-te. A verdadeira
causa de minha tristeza é que esse dinheiro não era meu, e eu dei-te os dez
mil-réis por engano.
João das
Mercês entregou o dinheiro ao tio.
Gaspar
sentiu-lhe borbulhar-lhe uma lágrima nos olhos. Apertou a mão ao sobrinho e
foi para casa. Entrava triunfante com os dez mil-réis, quando D. Angélica,
franzindo o sobrolho, perguntou-lhe de onde os houvera. Gaspar confessou-lhe
a verdade.
— Que!
exclamou a esposa; pois tu tiveste ânimo de ir tirar estes pobres dez mil-réis ao
rapaz que nem comer tinha?
— Mas
tu...
— Eu, o
quê? Eu disse aquilo por dizer. Vai, vai entregar este dinheiro ao pobre rapaz.
— Onde o
encontrarei agora?
Gaspar
saiu e não achou o sobrinho. Às ave-marias voltou para casa, mas receando
que a mulher lhe revistasse as algibeiras, coisa que nunca deixava de fazer
todas as noites, tratou de gastar os dez mil-réis como pôde.
João das
Mercês passou a noite na rua; no dia seguinte almoçou com um outro companheiro
do cartório; e à hora do costume foi para a Misericórdia ver correr a roda.
— Tenho um
pressentimento, disse ele consigo, de que hoje venço o destino.
Chegou;
dez minutos depois o nº 1441 era aclamado como tendo obtido os vinte contos de
réis.
João das
Mercês desmaiou.
Deram-lhe
os prontos socorros. Tornou a si, apalpou as algibeiras; e achou o abençoado
bilhete.
Graças a
este recurso inesperado foi à antiga casa de pasto, cuja dívida estava paga, e
apresentou o bilhete.
— Tenho
aqui a sorte grande; dê-me de jantar que eu depois de amanhã lhe satisfaço
a conta do que for.
Foi
prontamente obedecido. Jantou como um príncipe. No fim pediu ao caixeiro conhecido,
sempre sobre a base do bilhete, alguns charutos que só tinham o defeito de
não serem de Havana; no mais não prestavam para nada.
Mas
naquela situação tudo o que se fuma é bom. Qualquer homem fumará alegremente
couro de boi, se tiver a certeza de que no dia seguinte lhe metem na algibeira
vinte contos de réis.
Acabava
ele de acender um charuto, quando um sujeito que lhe ficara fronteiro, e tinha
ouvido a conversa com o dono da casa, lhe disse com familiaridade:
— Com que
então tirou a sorte grande?
— É
verdade, respondeu João das Mercês, com a indiscrição de um homem feliz

após
tantas desgraças. Tirei a sorte grande e ainda estou admirado disso.
— Por quê?
disse o sujeito, levantando-se com a xícara de café na mão e indo assentar-se à
mesa do rapaz.
— Porque
fui sempre muito caipora. Nunca comprei bilhete que me saísse sequer o mesmo
dinheiro. Desta vez porém acertei...
— Homem,
eu também fui sempre caipora. Joguei dois anos com o mesmo número e nunca tirei
mais de 40$000. Um dia porém, saiu o diabo detrás da porta e caiu-me a bicha em casa.
— Sim?
Quando foi isso?
— Foi há
seis meses.
— Um
quarto ou bilhete inteiro?
— Meio
bilhete. Recebi dez contos.
— Talvez
não precisasse deles...
— Quase
que lhe posso dizer isso. Graças a Deus ainda que não viessem os dez contos,
tinha com que passar. Acontece-lhe o mesmo?
—
Infelizmente não, disse João das Mercês seduzido com a maneira e a confiança do
interlocutor.
— Mais uma
razão para que eu o felicite.
O
desconhecido apertou a mão a João das Mercês e ofereceu-lhe um charuto.
— Estes
charutos daqui não prestam, tome este.
João das
Mercês acendeu o charuto depois de pôr o seu fora, e reclinou-se sobre a mesa a
conversar com o desconhecido.
Ao fim de
uma hora saíram de braço dado. O desconhecido disse chamar-se Viana; João das
Mercês deu também o seu nome. Saíram como dois amigos velhos. Passearam todo o
tempo; Viana levou a benevolência ao ponto de o convidar a tomar um sorvete no
Carceller.
Perto da
noite, disse Viana para João das Mercês:
— Vou
levá-lo até à sua casa.
João das
Mercês fez uma careta.
— Isso
agora há de ser mais difícil, disse ele depois de alguns instantes.
— Por quê?
— Porque...
— Seja
franco.
— Pois
bem, meu caro, eu não tenho casa!
— Não tem
casa?

João das
Mercês contou fielmente ao amigo a sua posição. Viana ouviu a narração com
visíveis sinais de simpatia.
— Pois se
isto o não incomoda nem ofende, ofereço-lhe por hoje um hospício. Amanhã já não
será preciso porque receberá o dinheiro.
— Aceito.
Dirigiram-se
para a Rua da Misericórdia. Viana morava ali em um primeiro andar mobiliado com
algum asseio.
— A casa
não está arranjada, disse ele, mas é porque eu mais me entendo com a desordem que com a ordem.
— Está
excelente, disse João das Mercês. Ah! meu caro senhor Viana, creio que sou
agora verdadeiramente feliz. No dia em que me entra o dinheiro pela porta, entra-me
um amigo pelo coração. Pela porta é metáfora, acrescentou ele rindo.
Viana
apertou-lhe a mão comovido.
— Tive um
amigo da sua idade; era a mesma alma franca e aberta aos sentimentos generosos;
permita-me a ilusão de que o encontrei agora...
— Espero
que não seja ilusão, exclamou João das Mercês.
Conversaram
até alta noite. À uma hora João das Mercês disse que estava com sono.
— Eu
também, disse Viana. Vamos dormir. Tenho sempre esta outra cama pronta para o que der e vier. Olhe, gosto de acordar
cedo.
— Homem,
nestas alturas não se me dera acordar mais tarde, respondeu João das Mercês
que, como sabemos, adquirira de uma das suas amas o modo de dormir demais.
— É que eu
tenho de sair cedo, para levar um papel à estrada de ferro. Às nove horas
estarei de volta.
— A minha
madrugada será às nove horas.
— Veja lá
se perdeu o bilhete.
— Nada, cá
está no bolso do colete.
Dormiram.
No dia
seguinte, seriam onze horas quando João das Mercês abriu os olhos. Viana ainda
não tinha voltado. O rapaz costumava estar na cama acordado ainda um quarto de
hora. Ao fim desse tempo levantou-se, lavou-se e vestiu-se.
Não tendo
relógio não sabia que horas eram. O sol estava encoberto. João das Mercês
chegou à janela a ver se via o dono da casa.
Não viu
ninguém.
Pouco
depois deram os sinos meio-dia.
—
Meio-dia, disse ele. Onde estará este homem.
Começou a
sentir fome e a arrepelar-se com a demora, quando instintivamente
levou a mão ao bolso do colete.
levou a mão ao bolso do colete.
Não achou
o bilhete!...
— Roubado!
exclamou ele com desespero.
Chegou à
janela, gritou, acudiu gente à porta que o deram por maluco. Do segundo
andar desceram algumas pessoas, e depois de ouvirem as queixas do mísero
rapaz, foram chamar a autoridade.
Quando o
rapaz conseguiu achar-se na rua eram já duas horas. Seu primeiro pensamento
foi ir à casa de loteria.
Correu
para lá.
Ó
desgraça! todos os quartos da sorte grande estavam pagos. Deu os sinais de Viana e
eram os mesmos de um sujeito que lá fora cobrar um quarto.
Não se
pode descrever o desespero de João das Mercês. Faltava-lhe aquele golpe mais
terrível que todos, o de ter a fortuna na mão e senti-la voar como um
pássaro
esquivo.
Não
hesitou; a idéia de morrer entrou-lhe na cabeça como uma solução às suas desgraças.
No fundo
do bolso ainda achou um cartão de barca. Dirigiu-se à ponte e tomou passagem
para S. Domingos.
No meio da
viagem, aproveitou o descuido das pessoas que se achavam perto dele e
atirou-se ao mar.
Houve logo
a bordo o rebuliço que um caso destes produz. A barca parou e a bordo se
empregaram todos os esforços para salvar o infeliz.
João das
Mercês veio à tona d’água quando lhe atiraram uma corda; ele repeliu-a com
energia.
Seu
pensamento era morrer.
Não
contava com o caiporismo.
Os
esforços empregados em favor de uma criatura que não queria nada da vida, foram
coroados de sucesso, João das Mercês foi salvo.
Passado
esse triste acontecimento, João das Mercês dispôs a lutar violentamente com a
sorte; pareceu-lhe esta sorrir. Alcançou o rapaz um emprego que lhe dera com que
viver pobremente.
Alugou uma
casinha na Cidade Nova, e assim passou alguns meses.
Um dia
reparou que havia defronte uma velha que não deixava de sorrir quando ele
entrava ou saía de casa. João das Mercês cumprimentava-a cortesmente, mas não
julgava que o riso fosse com ele.
A casa da
velha era a melhor casa da rua, e a moradora passava por ser rica.
Quando
João das Mercês descobriu que o riso era com ele, começou a prestar maior
atenção à vizinha. Esta redobrou de demonstrações e seria enfadonho contar
aqui miudamente os acontecimentos que se deram depois. Basta saber que João
das Mercês entrou a freqüentar a casa da vizinha, e esta declarou-lhe

francamente
o amor que o moço lhe havia inspirado.
Não
devendo esperar que a própria velha oferecesse aquilo que era um favor para
ele, João das Mercês exclamou um dia:
— E se nós
nos casássemos?
— Essa é a
minha intenção, disse Margarida, se acha que eu o posso fazer feliz.
— Oh! mais
que feliz!
A velha
tinha duzentos contos.
Era mais
que a sorte grande.
Marcou-se
o dia do casamento, correram os pregões, João das Mercês mandou fazer a roupa
nova e convidou Gaspar para ser padrinho.
— Sem
dúvida, meu rapaz, respondeu o tio, mas quem é a madrinha?
— Eu
tinha-me lembrado de minha tia...
— Conta
com ela; vou agora mesmo avisá-la.
Margarida
não cabia em si de contente; dizia que apesar da idade que tinha, sentia em si
mais amor do que nunca tivera ao defunto marido.
João das
Mercês disse a mesma coisa. Amara muitas vezes, mas nunca com tanta força.
— Sei o
que é, acrescentava ele, é que eu amei sempre a umas deslambidas sem gravidade
nem as graças que só se podem ter em certa idade.
Margarida
não tinha parente nenhum com exceção de um primo remoto, que fez todos os
esforços para impedir o casamento, e que nada tendo alcançado, resolvera
aceitar o convite para ser padrinho, não podendo brigar com a parenta rica.
Raiou
enfim a véspera do casamento.
Por
conselho da noiva, João das Mercês tinha desistido do emprego, aliás com repugnância,
porque não queria parecer que ia viver às sopas da mulher. A coisa era isso
mesmo, mas ele não queria a aparência da coisa.
Terníssimos
foram os adeuses dos noivos na véspera do casamento. João das Mercês já tinha
fechado a porta, e Margarida ainda acenava com o lenço.
Alta noite
foi João das Mercês acordado por violentas pancadas na porta. Levantou-se sobressaltado e foi ver o que era.
Era um
escravo de Margarida.
Vinha
dizer que a senhora estava mal; e que o mandava chamar.
A primeira
frase de dor do rapaz foi toda egoísta: Ah! meu caiporismo! Exclamou ele
enfiando as calças.
Margarida
estava realmente às portas da morte. Quis ver o noivo; este chegou; ela
apertou-lhe a mão com ternura.
Depois
chamando o primo declarou que desejava fazer o seu testamento, mas ainda não
tinha acabado de falar que expirou.
João das
Mercês teve um ataque.
Quando
voltou a si, o pobre rapaz lembrou-se outra vez de morrer. Mas tantos sucessos
lhe tinham embotado a energia.
Nunca
raiou dia de felicidade para este infeliz. Tem sido sucessivamente agente de
procurador, copista de advogado, porteiro de teatro, vendedor de bilhetes de loteria,
negociante de charutos, sempre perseguido pela fatalidade.
Ele mesmo
diz com resignação evangélica:
— Sou o
rei dos caiporas!
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Nota:
Texto-fonte: Publicado
originalmente em Jornal das
Famílias, 1870. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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