
O ANJO RAFAEL
I
Cansado da vida, descrente dos homens, desconfiado das mulheres e
aborrecido dos credores, o dr. Antero da Silva determinou um dia despedir-se
deste mundo.
Era pena.
O dr. Antero contava trinta anos, tinha saúde, e podia, se quisesse, fazer uma
bonita carreira. Verdade é que para isso fora necessário proceder a uma completa
reforma dos seus costumes. Entendia, porém, o nosso herói que o defeito não estava em si, mas nos outros; cada
pedido de um credor inspirava-lhe uma apóstrofe contra a sociedade; julgava
conhecer os homens, por ter tratado até então com alguns bonecos sem
consciência; pretendia conhecer as mulheres, quando apenas havia praticado com
meia dúzia de regateiras do amor.
O caso é
que o nosso herói determinou matar-se, e para isso foi à casa da viúva Laport, comprou uma pistola e entrou em casa,
que era à rua da Misericórdia.
Davam
então quatro horas da tarde.
O dr.
Antero disse ao criado que pusesse o jantar na mesa.
— A viagem
é longa, disse ele consigo, e eu não sei se há hotéis no caminho.
Jantou com
efeito, tão tranqüilo como se tivesse de ir dormir a sesta e não o último sono.
O próprio criado reparou que o amo estava nesse dia mais folgazão que nunca.
Conversaram alegremente durante todo o jantar. No fim dele, quando o criado lhe
trouxe o café, Antero proferiu paternalmente as seguintes palavras:
— Pedro,
tira de minha gaveta uns cinqüenta mil-réis que lá estão, são teus. Vai passar
a noite fora e não voltes antes da madrugada.
—
Obrigado, meu senhor, respondeu Pedro.
— Vai.
Pedro
apressou-se a executar a ordem do amo.
O dr.
Antero foi para a sala, estendeu-se no divã, abriu um volume do Dicionário filosófico e começou a ler.
Já então
declinava a tarde e aproximava-se a noite. A leitura do dr. Antero não podia
ser longa. Efetivamente daí a algum tempo levantou-se o nosso herói e fechou o
livro.
Uma fresca
brisa penetrava na sala e anunciava uma agradável noite. Corria então o
inverno, aquele benigno inverno que os fluminenses têm a ventura de conhecer e
agradecer ao céu.
O dr.
Antero acendeu uma vela e sentou-se à mesa para escrever. Não tinha parentes,
nem amigos a quem deixar carta; entretanto, não queria sair deste mundo sem
dizer a respeito dele a sua última palavra. Travou da pena e escreveu as
seguintes linhas:
Quando um
homem, perdido no mato, vê-se cercado de animais ferozes e traiçoeiros, procura fugir se pode. De
ordinário a fuga é impossível. Mas estes animais meus semelhantes tão
traiçoeiros e ferozes como os outros, tiveram a inépcia de inventar uma arma, mediante
a qual um transviado facilmente lhes escapa das unhas.
É
justamente o que vou fazer.
Tenho ao pé
de mim uma pistola, pólvora e bala; com estes três elementos reduzirei a minha
vida ao nada. Não levo nem deixo saudades. Morro por estar enjoado da vida e
por ter certa curiosidade da morte.
Provavelmente,
quando a polícia descobrir o meu cadáver, os jornais escreverão a notícia do
acontecimento, e um ou outro fará a esse respeito considerações filosóficas.
Importam-me bem pouco as tais considerações.
Se me é
lícito ter uma última vontade, quero que estas linhas sejam publicadas no
Jornal do Commercio. Os rimadores de ocasião encontrarão assunto para algumas
estrofes.
O dr.
Antero releu o que tinha escrito, corrigiu em alguns lugares a pontuação,
fechou o papel em forma de carta, e pôs-lhe este sobrescrito: Ao mundo.
Depois
carregou a arma; e, para rematar a vida com um traço de impiedade, a bucha que
meteu no cano da pistola foi uma folha do Evangelho de S. João.
Era noite
fechada. O dr. Antero chegou-se à janela, respirou um pouco, olhou para o céu, e disse às estrelas:
— Até já.
E saindo
da janela acrescentou mentalmente:
— Pobres
estrelas! Eu bem quisera lá ir, mas com certeza hão de impedir-me os vermes da
terra. Estou aqui, e estou feito um punhado de pó. É bem possível que no futuro
século sirva este meu invólucro para macadamizar a rua do Ouvidor. Antes isso;
ao menos terei o prazer de ser pisado por alguns pés bonitos.
Ao mesmo
tempo que fazia estas reflexões, lançava mão da pistola, e olhava para ela com
certo orgulho.
— Aqui
está a chave que me vai abrir a porta deste cárcere, disse ele.
Depois
sentou-se numa cadeira de braços, pôs as pernas sobre a mesa, à americana,
firmou os cotovelos, e segurando a pistola com ambas as mãos, meteu o cano
entre os dentes.

Já ia
disparar o tiro, quando ouviu três pancadinhas à porta. Involuntariamente levantou a cabeça. Depois de um curto silêncio
repetiram-se as pancadinhas. O rapaz não esperava ninguém, e era-lhe
indiferente falar a quem quer que fosse. Contudo, por maior que seja a
tranqüilidade de um homem quando resolve abandonar a vida, é-lhe sempre
agradável achar um pretexto para prolongá-la um pouco mais.
O dr.
Antero pôs a pistola sobre a mesa e foi abrir a porta.
II
A pessoa
que batera à porta era um homem grosseiramente vestido. Trazia uma carta na
mão.
— Que me
quer? perguntou-lhe o dr. Antero.
— Trago
esta carta, que lhe manda meu amo.
O dr.
Antero aproximou-se da luz para ler a carta.
A carta
dizia assim:
Uma pessoa
que deseja propor um negócio ao sr. dr. Antero da Silva pede-lhe que venha
imediatamente à sua casa. O portador desta o acompanhará. Trata-se de uma
fortuna.
O rapaz
leu e releu a carta, cuja letra não conhecia, e cujo laconismo trazia um ar
de
mistério.
— Quem é
teu amo? perguntou o dr. Antero ao criado.
— É o sr.
major Tomás.
— Tomás de
quê?
— Não sei
mais nada.
O dr.
Antero franziu a testa. Que mistério seria aquele? Uma carta sem assinatura, uma
proposta lacônica, um criado que não sabia o nome do patrão, eis quanto bastou
para despertar vivamente a curiosidade do dr. Antero. Apesar de não ter o espírito propenso às aventuras, esta o
impressionara a tal ponto que esqueceu por um instante a lúgubre viagem tão
friamente planeada.
Olhou para
o criado atentamente; as feições eram comuns, o olhar pouco menos de estúpido.
Evidentemente não era um cúmplice, se é que no fundo daquela aventura havia um
crime.
— Onde
mora teu amo? perguntou o dr. Antero.
— Na
Tijuca, respondeu o criado.
— Mora só?
— Com uma
filha.
— Menina
ou moça?
— Moça.
— Que
qualidade de homem é o major Tomás?
— Não lhe
posso dizer, respondeu o criado, porque fui para lá há oito dias apenas. Quando
entrei, disse-me o patrão: “José, a tua obrigação é servir muito, falar pouco e
não ver nada”. Até hoje tenho executado a ordem do patrão.
— Há mais
criados em casa? perguntou o dr. Antero.
— Há uma
criada, que serve à filha do amo.
— Ninguém
mais?
— Ninguém
mais.
A idéia do
suicídio já estava longe do espírito do dr. Antero. O que o prendia agora era o
mistério daquela missão noturna e as singulares referências do portador da carta. Varreu-lhe do espírito igualmente a
suspeita de um crime. A sua vida tinha sido tão indiferente ao resto dos
homens, que não podia ter inspirado a ninguém a idéia de uma vingança.
Contudo,
hesitava ainda; mas relendo o misterioso bilhete, reparou nas últimas palavras:
trata-se de uma fortuna; palavras que nas duas primeiras leituras apenas lhe
causaram uma ligeira impressão.
Quando um
homem quer deixar a vida por um simples aborrecimento, a promessa de uma
fortuna é razão bastante para suspender o passo fatal. No caso do dr. Antero a promessa da fortuna era razão
decisiva. Se averiguarmos bem a causa principal do tédio que este mundo lhe
inspirava, veremos que não é outra senão a falta de cabedais. Desde que estes
lhe batiam à porta, o suicídio já não tinha razão de ser.
O doutor
disse ao criado que o esperasse, e tratou de vestir-se.
— Em todo
o caso, disse ele consigo, a todo tempo é tempo; se não morrer hoje posso
morrer amanhã.
Vestiu-se,
e lembrando-se de que seria conveniente ir armado, meteu a pistola no bolso, e
saiu acompanhado pelo criado.
Quando os
dois chegaram à porta da rua, já os esperava um carro. O criado convidou o dr.
Antero a entrar, e foi sentar na almofada com o cocheiro.
Conquanto
os cavalos fossem a trote largo, longa pareceu a viagem ao doutor, que, apesar
das circunstâncias singulares daquela aventura, tinha ânsia por ver-lhe o
desfecho. Entretanto, à proporção que o carro se ia afastando do centro populoso
da cidade, o espírito do nosso viajante tomava-se de certa apreensão. Era ele
mais estouvado que animoso; a sua tranqüilidade diante da morte não era resultado
do valor de ânimo. No fundo do seu espírito havia uma extrema dose de fraqueza.
Podia disfarçá-la quando dominava os acontecimentos; mas agora que os
acontecimentos dominavam a ele, facilmente desaparecia o simulacro de coragem.
Enfim o
carro chegou à Tijuca, e, depois de andar um grande espaço, parou diante de uma
chácara completamente separada de todas as demais habitações.
O criado
veio abrir a porta, e o doutor apeou-se. As pernas tremiam-lhe um pouco, e o
coração pulsava-lhe apressadamente. Estavam diante de um portão fechado. A
chácara era cercada por um muro um tanto baixo, por cima do qual o dr. Antero
pôde ver a casa de habitação, colocada no fundo da chácara perto da
encosta de uma colina.
encosta de uma colina.
O carro
deu volta e partiu, enquanto o criado abria o portão com uma chave que trazia
no bolso. Entraram os dois, e o criado fechando por dentro o portão indicou o
caminho ao dr. Antero.
Não quero
dar ao meu herói proporções que ele não tem; confesso que naquele momento o dr. Antero da Silva estava bem
arrependido de ter aberto a porta ao importuno portador da carta. Se pudesse
fugir, fugia, ainda correndo o risco de passar por covarde aos olhos do criado.
Mas era impossível. O doutor fez das tripas coração, e caminhou na direção da
casa.
A noite
era clara, mas sem lua; soprava um vento que agitava brandamente as folhas das
árvores.
O doutor
caminhava por uma alameda acompanhado pelo criado; rangia a areia debaixo de seus
pés. Apalpou o bolso para verificar se tinha a pistola consigo; em todo o caso
era um recurso.
Quando
chegaram ao meio do caminho o doutor perguntou ao criado:
— O carro
não volta?
— Suponho
que sim; meu amo o informará melhor.
O doutor
teve uma idéia súbita: empregar o tiro no criado, saltar o muro e voltar para
casa. Chegou a engatilhar a arma, mas imediatamente refletiu que o ruído despertaria a atenção, e a sua fuga tornava-se
improvável.
Resignou-se,
pois, à sorte, e caminhou para a casa misteriosa.
Misteriosa
é o termo; todas as janelas estavam fechadas; não havia uma única réstia de
luz; não se ouvia o menor rumor de fala.
O criado
tirou do bolso outra chave, e com ela abriu a porta da casa, que tornou a fechar
apenas o doutor entrou. Aí tirou o criado do bolso uma caixa de fósforos, acendeu
um, e com ele um rolo de cera que trazia consigo.
O doutor
viu então que se achava em uma espécie de pátio, tendo ao fundo uma escada
comunicando para o sobrado. Perto da porta de entrada havia um cubículo tapado
por um gradil de ferro, e que servia de casa a um enorme cão. O cão entrou a
rosnar quando pressentiu gente; mas o criado fê-lo calar, dizendo:
—
Silêncio, Dolabela!
Subiram a
escada até acima, e depois de atravessarem um extenso corredor, acharam-se
diante de uma porta fechada. O criado tirou do bolso uma terceira chave, e
depois de abrir a porta convidou o dr. Antero a entrar, dizendo:
— Queira o
senhor esperar aqui, enquanto eu vou dar parte a meu amo da sua chegada.
Entretanto, deixe-me acender-lhe uma vela.
Efetivamente
acendeu uma vela que se achava dentro de um castiçal de bronze em cima de uma
pequena mesa redonda de mogno, e saiu.
O dr.
Antero achava-se num quarto; havia a um lado uma cama alta; a mobília era de um
gosto severo; o quarto tinha apenas uma janela, mas gradeada. Sobre a mesa
havia alguns livros, pena, papel e tinta.
É fácil
imaginar a ânsia com que o doutor esperou a resposta do seu misterioso
correspondente. O que ele queria era pôr termo
àquela aventura que tinha ares de um
conto de Hoffmann. A resposta não se demorou. O criado voltou dizendo que o major Tomás não podia falar imediatamente ao
doutor; oferecia-lhe quarto e cama, e
adiava. a explicação para o dia seguinte.
correspondente. O que ele queria era pôr termo
àquela aventura que tinha ares de um
conto de Hoffmann. A resposta não se demorou. O criado voltou dizendo que o major Tomás não podia falar imediatamente ao
doutor; oferecia-lhe quarto e cama, e
adiava. a explicação para o dia seguinte.
O doutor
insistiu em falar-lhe naquela ocasião, pretextando ter importante motivo de
voltar à cidade; no caso de não poder o major falar-lhe, propunha ele voltar no
dia seguinte. O criado ouviu-o com todo
o respeito, mas declarou que não voltaria ao patrão, cujas ordens eram imperiosas. O
doutor ofereceu dinheiro ao criado; mas este recusou os presentes de Artaxerxes
com um gesto tão solene, que tapou a boca ao moço.
— Tenho
ordem, disse finalmente o criado, de trazer-lhe uma ceia.
— Não
tenho fome, respondeu o dr. Antero.
— Nesse
caso, boa noite.
— Adeus.
O criado
dirigiu-se para a porta, enquanto o doutor o seguia ansiosamente com os olhos.
Iria ele fechar-lhe a porta por fora? Realizou-se a suspeita; o criado fechou a
porta e levou a chave consigo.
É mais
fácil imaginar que narrar a noite aflitiva do dr. Antero. Os primeiros raios do
sol, penetrando através das grades da janela, acharam-no vestido sobre a cama,
onde só conseguira adormecer pelas quatro horas da madrugada.
III
Ora, o
nosso herói teve um sonho durante o curto espaço de tempo que dormiu. Sonhou
que tendo executado o seu plano de suicídio, fora levado para a cidade das
dores eternas, onde Belzebu o destinava a ser perpetuamente queimado numa
imensa fogueira. O infeliz fazia as suas objeções ao anjo do reino escuro; mas
este, com uma única resposta, reiterava a ordem dada. Quatro chanceleres infernais
lançaram mão dele e o lançaram ao fogo. O doutor deu um grito e acordou.
Saía de um
sonho para entrar em outro.
Levantou-se
espantado; não conhecia o quarto em que se achava, nem a casa em que dormira.
Mas pouco a pouco foi-lhe reproduzindo a memória todos os incidentes da
véspera. O sonho tinha sido um mal imaginário; mas a realidade era um mal
positivo. O rapaz teve ímpetos de gritar; reconheceu, porém, a inutilidade do
recurso; preferiu esperar.
Não
esperou muito; daí alguns minutos ouviu o ruído da chave na fechadura.
Entrou o
criado.
Trazia na
mão as folhas do dia.
— Já de
pé!
— Sim,
respondeu o dr. Antero. Que horas são?
— Oito
horas. Aqui tem as folhas de hoje. Olhe, ali tem um lavatório

O doutor
não havia reparado ainda no lavatório; a preocupação tinha-lhe feito esquecer a
lavagem do rosto; tratou de remediar o esquecimento.
Enquanto
lavava o rosto, perguntou-lhe o criado:
— A que
horas almoça?
— Almoçar?
— Sim,
almoçar.
— Pois eu
vou ficar aqui?
— São
ordens que tenho.
— Mas,
enfim, estou ansioso por falar a esse major que não conheço, e que me tem preso sem que eu saiba por que motivo.
— Preso!
exclamou o criado. O senhor não está preso; meu amo quer falar-lhe, e por isso é que eu o fui chamar; deu-lhe
quarto, cama, dá-lhe um almoço; creio que isto não é tê-lo preso.
O doutor
tinha enxugado o rosto, e sentou-se numa poltrona.
— Mas que
me quer teu amo? perguntou-lhe.
— Isso não
sei, respondeu o criado. A que horas quer o almoço?
— A que
for do teu gosto.
— Bem,
respondeu o criado. Aqui tem as folhas.
O criado
fez um respeitoso cumprimento ao doutor e saiu fechando a porta.
Cada
minuto que passava era para o desgraçado moço um século de angústia. O que mais
o torturava eram precisamente aquelas atenções, aqueles obséquios sem
explicação possível, sem presumível desfecho. Que homem seria esse major, e que
lhe queria ele? O doutor fez mil vezes esta pergunta a si mesmo sem achar resposta
possível.
Do criado
já sabia ele que nada poderia alcançar; além de novo na casa, parecia absolutamente
estúpido. Seria honesto?
O dr.
Antero fez esta última reflexão metendo a mão no bolso e tirando a carteira. Restavam-lhe
ainda uns cinqüenta mil-réis.
— É quanto
basta, pensou ele, para conseguir deste pateta que me ponha fora
daqui.
O doutor
esquecia que já na véspera o criado recusara dinheiro em troca de um
serviço
menos importante.
Às nove
horas o criado voltou trazendo numa bandeja um almoço delicado e apetitoso.
Apesar da gravidade da situação, o nosso herói atacou o almoço com uma
intrepidez de verdadeiro general de mesa. Dentro de vinte minutos só restavam
nos pratos mortos e feridos.
Ao mesmo
tempo que comia ia ele interrogando o criado.
— Dize-me
cá; queres fazer-me um grande favor?
— Qual?
— Tenho
aqui cinqüenta mil-réis à tua disposição, e amanhã posso dar-te mais cinqüenta,
ou cem, ou duzentos; em troca disto peço-te que arranjes meio de me pôr fora desta casa.
—
Impossível, senhor, respondeu o criado sorrindo; eu só obedeço a meu amo.
— Sim; mas
teu amo nunca virá a saber que eu te dei dinheiro; tu podes dizer-lhe que a
minha fuga foi devida a um descuido, e deste modo ficamos ambos salvos.
— Eu sou
honrado; não posso aceitar o seu dinheiro.
O doutor
ficou desanimado com a austeridade do fâmulo; bebeu o resto do borgonha que tinha no copo, e levantou-se
fazendo um gesto de desespero.
O criado
não se impressionou; preparou o café para o hóspede e foi oferecer-lhe. O
doutor bebeu dois ou três goles e restituiu-lhe a xícara. O criado arrumou a louça
na bandeja e saiu.
No fim de
meia hora voltou o criado dizendo que seu amo estava pronto para receber o dr.
Antero.
Conquanto
o doutor desejasse sair da situação em que se achava, e saber o fim para que o
haviam mandado buscar, nem por isso o impressionou menos a idéia de ir ver
enfim o terrível e desconhecido major.
Lembrou-se
que podia haver algum perigo, e instintivamente apalpou a algibeira; esquecia-se
de que ao deitar-se tinha posto a pistola debaixo do travesseiro. Era impossível
tirá-la à vista do criado, resignou-se.
O criado
fê-lo sair primeiro, fechou a porta e seguiu adiante para guiar o mísero doutor. Atravessaram o corredor por onde
haviam passado na véspera; depois entraram em outro corredor que ia ter a uma
pequena sala. Aí disse o criado ao doutor que esperasse enquanto ia dar parte a
seu amo, e penetrando numa sala que ficava à esquerda, voltou pouco depois
dizendo que o major esperava o dr. Antero.
O doutor
passou à outra sala.
IV
Estava ao
fundo, sentado numa poltrona de couro, um velho alto e magro, envolvido num largo chambre amarelo.
O doutor
deu apenas alguns passos e parou; mas o velho, apontando-lhe para uma cadeira que lhe ficava defronte,
convidou-o a sentar.
O doutor
obedeceu imediatamente.
Houve um
curto silêncio, durante o qual o dr. Antero pôde examinar a figura que tinha
diante de si.
Os cabelos
do major Tomás eram completamente brancos; a tez era pálida e macilenta. Os
olhos vivos, mas encovados; dissera-se a luz de uma vela prestes a extinguir-se,
e soltando do fundo do castiçal os seus últimos lampejos.

Os beiços
do velho eram finos e brancos; e o nariz, curvo como um bico de águia, assentado
sobre um par de bigodes da cor dos cabelos; os bigodes eram a base daquela
enorme coluna.
O aspecto
do major poderia causar menos desagradável impressão, se não fossem as bastas e
cerradas sobrancelhas, cujas pontas internas vinham ligar-se na parte superior
do nariz; além disso o velho contraía constantemente a testa, o que lhe produzia
uma enorme ruga que, vista de longe, dava ares de ser uma continuação do nariz.
Independentemente
das circunstâncias especiais em que o doutor se achava, a figura do major
inspirava um sentimento de medo. Podia ser uma excelente pessoa; mas o seu
aspecto repugnava à vista e ao coração.
O dr.
Antero não ousava romper o silêncio; e limitava-se a contemplar o homem. Este olhava
alternativamente para o
doutor e para
as unhas. As
mãos do velho pareciam
garras; o dr. Antero já as estava sentindo cravadas em si.
— Estou
falando ao dr. Antero da Silva? perguntou lentamente o major.
— Um seu
criado.
— Criado
de Deus, respondeu o major com um sorriso estranho.
Depois
continuou:
— Doutor
em medicina, não?
— Sim,
senhor.
— Conheci
muito seu pai; fomos companheiros no tempo da independência. Era ele mais velho
do que eu dois anos. Pobre coronel! ainda hoje sinto a sua morte.
O moço
respirou; a conversa levava um bom caminho; o major confessava-se amigo de seu
pai, e lhe falava nele. Animou-se um pouco, e disse:
— Também
eu, sr. major.
— Bom
velho! continuou o major; sincero, alegre, valente...
— É
verdade.
O major
levantou-se um pouco, apoiando as mãos nos braços da poltrona, e disse com voz
surda:
— E mais
que tudo, era obediente àqueles que têm uma origem no céu!
O doutor
arregalou os olhos; não compreendera bem o sentido das últimas palavras do
major. Não podia supor que aludisse aos sentimentos religiosos de seu pai, que
era tido no seu tempo como um profundo materialista.
Contudo,
não quis contrariar o velho, e procurou ao mesmo tempo obter uma explicação.
— É exato,
disse o rapaz; meu pai era profundamente religioso.
—
Religioso não basta, respondeu o major brincando com os cordões do chambre; conheço
muita gente religiosa que não respeita os enviados do céu. Creio que o senhor
foi educado com as mesmas idéias de seu pai, não?

— Sim,
senhor, balbuciou o dr. Antero aturdido com as palavras enigmáticas do major.
Este,
depois de esfregar as mãos e torcer o bigode repetidas vezes, perguntou ao seu
interlocutor:
— Diga-me,
foi bem tratado em minha casa?
—
Magnificamente.
— Pois
aqui vai morar a seu gosto e o tempo que lhe parecer.
— Teria
muita honra nisso, respondeu o doutor, se pudesse dispor do meu tempo; há de
consentir, pois, que eu recuse por enquanto o seu oferecimento. Apressei-me a
vir ontem por causa do bilhete que me mandou. Que me quer V. Exa.?
— Duas
coisas: a sua companhia e o seu casamento; dou-lhe em troca uma fortuna.
O doutor
olhou espantado para o velho, e este, compreendendo o espanto do rapaz,
disse-lhe sorrindo:
— De que
se admira?
— Eu...
— Do
casamento, não é?
— Sim,
confesso que... Não sei como mereço essa honra de ser convidado para noivo
mediante uma fortuna.
—
Compreendo o seu espanto; é próprio de quem foi educado lá fora; eu cá procedo
de modo contrário ao que se pratica nesse mundo. Mas, vamos: aceita?
— Antes de
tudo, sr. major, responda: por que se lembrou de mim?
— Fui
amigo de seu pai; quero prestar-lhe esta homenagem póstuma, dando ao senhor em
casamento a minha única filha.
— Trata-se
então de sua filha?
— Sim,
senhor; trata-se de Celestina.
Os olhos
do velho tornaram-se mais vivos que nunca ao pronunciar o nome da filha.
O dr.
Antero olhou algum tempo para o chão e respondeu:
— Bem sabe
que o amor é que faz os casamentos felizes. Entregar uma moça a um rapaz a quem
ela não ama é dar-lhe um suplício...
—
Suplício! Ora, aí vem o senhor com a linguagem lá de fora. Minha filha ignora até o que seja amor; é um anjo na raça e na
candura.
Dizendo
estas últimas palavras o velho olhou para o teto e ficou assim durante algum tempo como se contemplasse alguma coisa
invisível aos olhos do rapaz. Depois, abaixando outra vez os olhos, continuou:
— A sua
objeção não vale nada.

— Tenho
outra; é justo que aqui dentro não exista a mesma ordem de idéias que há lá
fora; mas é natural que os que são lá de fora não partilhem as mesmas idéias cá
de dentro. Por outros termos, eu não desejaria casar com uma moça sem amá-la.
— Aceito a
objeção; estou certo que apenas a vir ficará morrendo por ela.
— É
possível.
— É certo.
Ora, pois, vá para o seu quarto; à hora do jantar mandá-lo-ei chamar; jantaremos
os três.
O velho
levantou-se e foi a um canto da sala puxar pelo cordão de uma campainha. O dr.
Antero teve ocasião de ver então a estatura do major, que era alta e até certo
ponto majestosa.
Acudiu o
criado e o major deu-lhe ordem de conduzir o doutor para o quarto.
V
Quando o
doutor se achou só no quarto entrou a meditar na situação conforme se lhe
desenhara ela depois da conversa com o major. O velho parecia-lhe singularmente
extravagante, mas falava-lhe do pai, mostrava-se afável, e afinal de contas
oferecia a filha e uma riqueza. O espírito do moço estava mais um pouco tranqüilo.
É verdade
que ele opusera objeções à proposta do velho, e parecera agarrar-se a todas as
dificuldades, por menores que fossem. Mas eu não posso ocultar que a resistência
do rapaz era talvez menos sincera do que ele próprio pensava. A perspectiva da
riqueza disfarçou por algum tempo a singularidade da situação.
A questão
agora era ver a moça; se fosse bonita; se tivesse uma fortuna, que mal havia em
se casar ele com ela? O doutor aguardou a hora do jantar com uma impaciência a
que já não eram estranhos os cálculos da ambição.
O criado
tinha-lhe posto à disposição um guarda-roupa, e meia hora depois serviu-lhe um
banho. Satisfeitas essas necessidades de asseio, o doutor deitou-se na cama e
tirou à vontade um dos livros que se achavam sobre a mesa. Era um romance de
Walter Scott. O rapaz, educado com o estilo de telegrama dos livros de Ponson
du Terrail, adormeceu logo à segunda página.
Quando
acordou era tarde; recorreu ao relógio, e achou-o parado; esquecera-se de lhe dar corda.
Receava
que o criado o tivesse vindo chamar, e se retirasse por encontrá-lo a dormir.
Era estrear mal a sua vida na casa de um homem que talvez fizesse dele aquilo
de que já nem tinha esperanças.
Imagine-se,
pois, a ansiedade com que ele esperou as horas.
Valia-lhe,
porém, que, apesar dos receios, a sua imaginação trabalhava sempre; e era de
ver o quadro que ela desenhava no futuro, os castelos que construía no ar; credores
pagos, casas magníficas, salões, bailes, carros, cavalos, viagens, mulheres
enfim, porque nos sonhos do dr. Antero havia sempre uma ou duas mulheres.
O criado
veio enfim chamá-lo.

A sala do
jantar era pequena, mas ornada com muito gosto e simplicidade.
Quando o
doutor entrou não havia ninguém; mas pouco depois entrou o major, já vestido
com uma sobrecasaca preta abotoada até o pescoço e contrastando com a cor branca dos seus cabelos e bigodes e a tez
pálida do rosto.
O major
sentou-se à cabeceira da mesa, e o doutor à esquerda; a cadeira da direita
estava reservada para a filha do major.
Mas onde
estava a moça? O doutor quis fazer a pergunta ao velho; mas reparou a tempo que
a pergunta seria indiscreta.
E sobre
indiscreta, seria inútil, porque alguns minutos depois abriu-se uma porta que
ficava fronteira ao lugar em que o doutor estava sentado, e apareceu uma criada
anunciando a chegada de Celestina.
O velho e
o doutor levantaram-se.
A moça
apareceu.
Era uma
figura delgada e franzina, nem alta nem baixa, mas extremamente airosa. Não
andou, deslisou da porta à mesa; seus pés deviam ser asas de pomba.
O doutor
ficou profundamente surpreendido com a aparição; até certo ponto contava com
uma rapariga nem bonita nem feia, uma espécie de fardo que só podia ser
carregado aos ombros de uma fortuna. Pelo contrário, tinha diante de si uma
verdadeira beleza.
Era, com
efeito, um rosto angélico; transluzia-lhe no semblante a virgindade do coração. Os olhos serenos e doces pareciam
feitos para a contemplação; os cabelos louros e caídos em cachos naturais
assemelhavam-se a uma auréola. A tez era alva e finíssima; todas as feições
eram de uma harmonia e correção admiráveis. Rafael podia copiar dali uma das
suas virgens.
Vestia de
branco; uma fita azul, presa à cintura, delineava-lhe o talhe elegante e gracioso.
Celestina
dirigiu-se ao pai e beijou-lhe a mão: depois cumprimentou sorrindo ao dr.
Antero, e sentou-se na cadeira que lhe estava destinada.
O doutor
não tirava os olhos dela. No espírito superficial daquele homem entrava a
descobrir-se uma profundidade.
Pouco
depois de sentar-se, a moça voltou-se para o pai e perguntou-lhe:
— Este
senhor é o que vai ser meu marido?
— É,
respondeu o maior.
— É
bonito, disse ela sorrindo para o rapaz.
Havia
tanta candura e simplicidade na pergunta e na observação da moça, que o doutor
voltou instintivamente a cabeça para o major, com ímpetos de perguntar-lhe se
devia acreditar nos seus ouvidos.
O velho
compreendeu o espanto do rapaz, e sorriu maliciosamente. O doutor olhou outra
vez para Celestina, que o contemplava com uma admiração tão natural e tão
sincera, que o rapaz chegou... a corar.
Começaram
a jantar.
A conversa
começou tolhida e esquerda, por causa do doutor, que caminhava de espanto em
espanto; mas dentro de pouco tornou-se expansiva e franca.
Celestina
era a mesma afabilidade do pai, realçada pelas graças da juventude, e mais
ainda por uma singeleza tão agreste, tão nova, que o doutor se julgava transportado
a uma civilização desconhecida.
Quando
acabaram o jantar passaram à sala da sesta. Chamava-se assim uma espécie de
galeria de onde se descortinavam os arredores da casa. Celestina deu o braço ao
doutor sem que este lhe oferecesse e seguiram os dois adiante do major, que ia resmungando uns salmos de Davi.
Na sala da
sesta sentaram-se os três; era a hora do crepúsculo; as montanhas e o céu começavam
a despir os véus da tarde para vestir os da noite. A hora era propícia aos
enlevos; o dr. Antero, posto que educado em outra ordem de sensações, sentia-se
arrebatado nas asas da fantasia.
A conversa
versou sobre mil coisas de nada; a moça disse ao doutor que tinha dezessete
anos, e perguntou a idade dele. Depois, contou por menor todos os hábitos da sua vida, as suas prendas e seu
gosto pelas flores, o seu amor às estrelas, tudo isso com uma graça que tirava
um pouco da juventude e um pouco da infância.
Voltou-se
ao assunto do casamento, e Celestina perguntou se o rapaz tinha dúvida em casar
com ela.
— Nenhuma,
disse ele; pelo contrário, tenho sumo prazer... é uma felicidade para mim.
— Que lhe
disse eu? perguntou o pai de Celestina. Eu já sabia que bastava vê-la para
ficá-la amando.
— Então
posso contar que seja meu marido, não?
— Sem
dúvida, disse o doutor sorrindo.
— Mas o
que é marido? perguntou Celestina, depois de alguns instantes.
A esta
pergunta inesperada, o rapaz não pôde reprimir um movimento de surpresa. Olhou para o velho major; mas este,
encostado na larga poltrona em que se
achava sentado, começava a adormecer.
A moça
repetia com os olhos a pergunta feita com os lábios. O doutor envolveu-a com um
olhar de amor, talvez o primeiro que teve em sua vida; depois pegou docemente
na mão de Celestina e levou-a aos lábios.
Celestina
estremeceu toda e soltou um pequeno grito, que fez acordar sobressaltado o
major.
— Que é?
disse este.
— Foi meu
marido, respondeu a moça, que tocou com a boca dele na minha mão.
O major
levantou-se, olhou severamente para o rapaz, e disse à filha:
— Está
bem, vai para o teu quarto.
A moça
ficou um pouco surpreendida com a ordem do pai, mas obedeceu imediatamente,
despedindo-se do rapaz com a mesma descuidosa simplicidade
com que lhe falara pela primeira vez.
com que lhe falara pela primeira vez.
Quando os
dois ficaram sós, o major pegou no braço do doutor, e disse-lhe:
— Meu caro
senhor, respeite as pessoas do céu; quero um genro, não quero um tratante. Ora, cuidado!
E saiu.
O dr. Antero
ficou atônito com as palavras do major; era a terceira vez que lhe falava em
pessoas ou enviados do céu. Que queria dizer com aquilo?
Pouco
depois veio o criado com ordem de acompanhá-lo até o quarto; o doutor obedeceu sem fazer objeção.
VI
A noite
foi má para o dr. Antero; acabara de assistir a cenas tão estranhas, ouvira palavras
tão misteriosas, que o pobre moço perguntou a si mesmo se não era vítima de um
sonho.
Infelizmente
não era.
Aonde iria
dar aquilo tudo? Qual o resultado da cena da tarde? O rapaz temia, mas já não
ousava pensar na fuga; a idéia da moça começava a ser um vínculo.
Dormiu
tarde e mal; foram-lhe agitados os sonhos.
No dia
seguinte levantou-se cedo, e recebeu do criado as folhas do dia. Enquanto não
vinha a hora do almoço, quis ler as notícias do mundo, do qual parecia estar separado por um abismo.
Ora, eis
aqui o que encontrou no Jornal do Commercio:
Suicídio.
— Anteontem, à noite, o dr. Antero da Silva, depois de dizer ao seu criado que
saísse e só voltasse de madrugada, encerrou-se no quarto da casa que ocupava à
rua da Misericórdia, e escreveu a carta que os leitores encontrarão adiante.
Como se vê
dessa carta, o dr. Antero da Silva declarava a sua intenção de matar-se; mas a
singularidade do caso é que, voltando o criado para casa de madrugada,
encontrou a carta, mas não encontrou o amo.
O criado
deu imediatamente parte à polícia, que empregou todas as diligências a ver se
obtinha notícia do jovem doutor.
Com
efeito, depois de bem combinadas providências, encontrou-se na praia de Santa Luzia um cadáver que se
reconheceu ser o do infeliz moço. Parece que, apesar da declaração de que
empregaria a pistola, o desgraçado procurou outro meio menos violento de morte.
Supõe-se
que uma paixão amorosa o levou a cometer este ato; outros querem que fosse por
fugir aos credores. A carta entretanto reza de outros motivos. Ei-la.
Aqui
seguia a carta que vimos no primeiro capítulo.

A leitura
da notícia produziu no dr. Antero uma impressão singular; estaria ele morto
deveras? Teria já saído do mundo da realidade para o mundo dos eternos sonhos?
Era tão extravagante tudo o que lhe acontecia desde a antevéspera, que o pobre
rapaz sentiu por um instante vacilar-lhe a razão.
Mas pouco
a pouco voltou à realidade das coisas; interrogou a si e a tudo o que o rodeava;
releu atentamente a notícia; a identidade reconhecida pela polícia, que ao princípio o impressionara, fê-lo sorrir
depois; e não menos o fez sorrir um dos motivos que se dava ao suicídio, o
motivo da paixão amorosa.
Quando o
criado voltou, pediu-lhe o doutor notícia circunstanciada do major e de sua filha. A moça estava boa; quanto ao major,
disse o criado que lhe ouvira de noite alguns soluços, e que de manhã se
levantara abatido.
—
Admira-me isto, acrescentou o criado, porque não sei que tivesse motivo para chorar,
e além disso o amo é um velho alegre.
O doutor
não respondeu; sem saber por que, atribuía-se a causa daqueles soluços do
velho; foi a ocasião do seu primeiro remorso.
O criado
disse-lhe que o almoço o esperava; o doutor dirigiu-se para a sala de jantar onde achou o major realmente um pouco
abatido. Foi direito a ele.
O velho
não se mostrou ressentido; falou-lhe com a mesma bondade da véspera. Pouco
depois chegou Celestina, bela, descuidosa, inocente como da primeira vez; beijou a testa do pai, apertou a mão ao doutor
e sentou-se no seu lugar. O almoço correu sem incidente; a conversa nada teve
de notável. O major propôs que na tarde desse dia Celestina executasse ao piano
alguma composição bonita, para que o doutor pudesse apreciar os seus talentos.
Entretanto
a moça quis mostrar ao rapaz as suas flores, e o pai deu-lhe licença para isso;
a um olhar do velho a criada de Celestina acompanhou os dois futuros noivos.
As flores
de Celestina estavam todas em meia dúzia de vasos, postos sobre uma janela do
seu gabinete de leitura e trabalho. Chamava ela aquilo o seu jardim. Bem
pequeno era ele, e pouco tempo exigia para o exame; ainda assim, o doutor tratou
de prolongá-lo o mais que pôde.
— Que me
diz a estas violetas? perguntou a moça.
— São
lindíssimas! respondeu o doutor.
Celestina
arranjou as folhas com sua mãozinha delicada; o doutor adiantou a sua mão para
tocar nas folhas também; os dedos de ambos se encontraram; a moça estremeceu, e
baixou os olhos; um leve rubor coloriu-lhe as faces.
O rapaz
receou que daquele involuntário encontro pudesse nascer algum motivo de remorso
para ele, e tratou de retirar-se. A moça despediu-se, dizendo:
— Até
logo, sim?
— Até
logo.
O doutor
saiu do gabinete de Celestina, e já entrava a pensar como daria com o caminho
para o seu quarto, quando encontrou à porta o criado, que se preparou para
acompanhá-lo.
— Tu
pareces a minha sombra, disse-lhe o doutor sorrindo.

— Sou
apenas um criado do senhor.
Entrando
no quarto ia o rapaz cheio de vivas impressões; a pouco e pouco sentia- se
transformado pela moça; até os receios se lhe dissipavam; parecia-lhe que ao pé
dela não devia recear coisa nenhuma.
Os jornais
estavam ainda em cima da mesa; perguntou ao criado se seu amo costumava a
lê-los. O criado respondeu que não, que ninguém os lia em casa, e tinham sido
assinados só por causa dele.
— Só por
minha causa?
— Só.
VII
O jantar e
a música reuniram os três convivas durante perto de quatro horas. O doutor
estava no sétimo céu; já começava a enxergar a casa como sua; a vida que levava
era para ele a melhor vida deste mundo.
— Um
minuto mais tarde, pensava ele, e eu tinha perdido esta felicidade.
Com
efeito, pela primeira vez o rapaz amava seriamente; Celestina aparecera-lhe como
a personificação da ventura terrestre e das santas efusões do coração. Contemplava-a
com respeito e ternura. Podia viver ali eternamente.
Entretanto
a conversa sobre o casamento não se repetiu; o major esperava que o rapaz se
declarasse, e o rapaz aguardava oportunidade para fazer a sua declaração ao
major.
Quanto a
Celestina, apesar de seu angélico estouvamento, evitava falar do assunto. Seria
recomendação do pai? O doutor chegou a supô-lo; mas a idéia varreu-se-lhe do
espírito ante a consideração de que era tudo tão franco naquela casa que uma
recomendação desta ordem só podia ter por causa um grande acontecimento. O ósculo na mão da moça não lhe
pareceu acontecimento de tanta magnitude.
Cinco dias
depois da sua estada ali, o major disse-lhe ao almoço que desejava falar-lhe, e com efeito, apenas se acharam os
dois a sós, o major tomou a palavra, e expressou-se nestes termos:
— Meu caro
doutor, já deve ter percebido que eu não sou um homem vulgar; nem sou mesmo um
homem. Gosto do senhor porque tem respeitado a minha origem celeste; se eu fugi ao mundo é porque ninguém
me queria respeitar.
Conquanto
já tivesse ouvido do major algumas palavras dúbias nesse sentido, o dr. Antero
ficou assombrado com o pequeno discurso, e não achou resposta que lhe desse.
Arregalou muito os olhos e abriu a boca; todo ele era um ponto de admiração e interrogação ao mesmo tempo.
— Eu sou,
continuou o velho, eu sou o anjo Rafael, mandado pelo Senhor a este vale de lágrimas a ver se colho algumas boas
almas para o céu. Não pude cumprir a minha missão, porque apenas disse quem era
fui tido em conta de impostor. Não quis afrontar a ira e o sarcasmo dos homens;
retirei-me a esta morada, onde espero
morrer.
O major
dizia tudo com uma convicção e serenidade que, dado o caso de falar a um homem
menos mundano, vê-lo-ia logo ali a seus pés. Mas o dr. Antero não viu
na origem celeste do major mais do que uma
monomania pacífica. Compreendeu que era
inútil e perigoso contestá-lo.
na origem celeste do major mais do que uma
monomania pacífica. Compreendeu que era
inútil e perigoso contestá-lo.
— Fez bem,
disse o moço, fez bem em fugir ao mundo. Que há aí no mundo que valha um sacrifício verdadeiramente grande? A
humanidade já se não regenera; se Jesus aparecesse hoje é duvidoso que lhe
deixassem fazer o discurso da montanha; matavam-no logo no primeiro dia.
Brilharam
os olhos do major ouvindo as palavras do doutor; quando ele acabou, o velho
saltou-lhe ao pescoço.
— Disse
pérolas, exclamou o velho. Isso é que é ver as coisas. Bem vejo, sai a seu pai;
jamais ouvi daquele amigo palavra que não fosse de veneração para mim. Tem o
mesmo sangue nas veias.
O dr.
Antero correspondeu como pôde à efusão do anjo Rafael, por cujos olhos saiam
chispas de fogo.
— Ora,
pois, continuou o velho sentando-se outra vez, é isso mesmo o que eu desejava
encontrar; um rapaz de bom caráter, que pudesse fazer de minha filha aquilo que
ela merece, e não duvidasse da minha natureza nem da minha missão. Diga-me,
gosta de minha filha?
— Muito!
respondeu o rapaz; é um anjo...
— Pudera!
atalhou o major. Que queria então que ela fosse? Há de casar com ela, não?
— Sem
dúvida.
— Bom,
disse o major olhando para o doutor com um olhar cheio de tão paternal ternura, que o moço sentiu-se comovido.
Nesse
momento, a criada de Celestina atravessou a sala, e passando por trás da cadeira
do major abanou a cabeça com ar de compaixão; o doutor apanhou o gesto que a
criada fizera só para si.
— O
casamento há de ser breve, continuou o major quando os dois se acharam sós, e,
como lhe disse, dou-lhe uma riqueza. Quero que acredite; vou mostrar-lhe.
O dr.
Antero recusou ir ver a riqueza, mas pede a verdade que se diga que a recusa
era simples formalidade. A atmosfera angélica da casa já o tinha melhorado em
parte, mas havia nele ainda uma parte do homem, e do homem que passara metade da vida em dissipações de
espírito e sentimento.
Como o
velho insistisse, o doutor declarou-se pronto a acompanhá-lo. Passaram dali a
um gabinete onde o major tinha a biblioteca; o major fechou a porta com a chave;
depois disse ao doutor que tocasse uma mola que desaparecia no lombo de um
livro fingido, no meio de uma estante.
O doutor
obedeceu.
Toda
aquela fileira de livros era simulada; ao toque do dedo do doutor abriu-se uma portinha que dava para um vão escuro onde
se achavam cinco ou seis caixinhas de ferro.
— Nessas
caixas, disse o major, tenho eu cem contos de réis: são seus.
Os olhos
do dr. Antero faiscaram; via diante de si uma fortuna, e só dependia dele possuí-la.
O velho
mandou que fechasse outra vez o esconderijo, processo que lhe ensinou também.
— Fique
sabendo, acrescentou o major, que é o primeiro a quem mostro isto. Mas é
natural; já o considero como filho.
Com
efeito, foram para a sala da sesta, aonde Celestina foi ter pouco depois; a vista
da moça produziu no rapaz a boa impressão de fazer-lhe esquecer as caixas de ferro
e mais os cem contos.
Ali mesmo
se marcou o dia do casamento, que devia ser um mês depois.
O doutor
estava disposto a tudo de tão boa vontade, que a reclusão forçada terminou
logo; o major permitiu-lhe sair; mas o doutor declarou que não sairia dali senão depois de casado.
— Depois
será mais difícil, disse o velho major.
— Pois
bem, não sairei.
A intenção
do rapaz era sair depois de casado, e para isso inventaria algum meio; por
enquanto, não queria comprometer a sua felicidade.
Celestina
estava contentíssima com o casamento; era uma diversão na monotonia de sua
vida.
Separaram-se
depois do jantar, e já então o doutor não encontrou o criado para o conduzir ao
quarto; tinha a liberdade de ir aonde quisesse. O doutor foi direito ao quarto.
A sua situação
tomava um novo aspecto; não se tratava de um crime nem de uma emboscada;
tratava-se de um monomaníaco. Ora, por felicidade do moço, esse monomaníaco
exigia dele exatamente aquilo que ele estava disposto a fazer; tudo bem considerado, entrava-lhe pela porta uma
felicidade inesperada, que nem era lícito sonhar quando se está à beira do
túmulo.
No meio de
belos sonhos o rapaz adormeceu.
VIII
O dia
seguinte era um domingo.
O rapaz,
depois de ler as notícias dos jornais e alguns artigos políticos, passou aos folhetins.
Ora, aconteceu que um deles tratava precisamente do suicídio do dr. Antero da
Silva. A carta póstuma servia de assunto para as considerações galhofeiras do
folhetinista.
Um dos
períodos dizia assim:
Se não
fosse o suicídio do homem, eu não tinha assunto ameno para tratar hoje. Felizmente lembrou-se de morrer a
tempo, coisa que nem sempre acontece a um marido, nem a um ministro de Estado.
Mas morrer
era nada; morrer e deixar uma carta desfrutável como a que o público leu, isso
é que é ter compaixão de um escritor aux abois.

Desculpe o
leitor o termo francês; vem do assunto; eu estou convencido que o dr. Antero
(que pelo nome não perca) leu algum romance
parisiense em que viu o original daquela carta.
Salvo se
nos quis provar que não era simplesmente um espírito medíocre, mas também um
formidável tolo.
Tudo é
possível.
O doutor
amarrotou o jornal quando acabou de ler o folhetim; mas depois sorriu filosoficamente; e acabou achando razão no
autor do artigo.
Com
efeito, aquela carta, que ele escrevera com tanta alma, e que contava fizesse impressão no público, parecia-lhe agora uma
famosa tolice.
Dera
talvez uma das caixas de ferro do major para não tê-la escrito.
Era tarde.
Mas o
desgosto do folhetim não foi o único; adiante encontrou um convite para uma missa por sua alma. Quem convidava para a
missa? os seus amigos? Não; o criado Pedro, que, ainda comovido com a dádiva
dos cinqüenta mil-réis, achou que cumpria um dever sufragando a alma do amo.
— Bom
Pedro! disse ele.
E assim
como tinha tido naquela casa o primeiro amor, e o primeiro remorso, teve ali a
primeira lágrima, uma lágrima de gratidão pelo fiel criado.
Chamado
para almoçar, o doutor foi ter com o major e Celestina. Já então a chave do
quarto ficava com ele mesmo.
Sem saber
por que, achou Celestina mais celeste que nunca, e também mais séria do que
costumava. A seriedade quereria dizer que o rapaz já lhe não era indiferente? O
dr. Antero pensou que sim, e eu, na qualidade de romancista, direi que pensava
bem.
Contudo a
seriedade de Celestina não excluía a sua afabilidade, nem ainda o seu estouvamento;
era uma seriedade intermitente, uma espécie de enlevo e cisma, a primeira
aurora do amor, que enrubesce a face e cerca a fronte de uma espécie de auréola.
Como já
houvesse liberdade e confiança, o doutor pediu a Celestina, no fim do almoço,
que fosse tocar um pouco. A mocinha tocava deliciosamente.
Encostado
ao piano, com os olhos postos na moça, e a alma embebida nas harmonias que os
dedos dela desferiam do teclado, o dr. Antero esquecia-se do resto do mundo
para viver só daquela criatura que dentro de pouco tempo ia ser sua mulher.
Durante
esse tempo o major passeava, com as mãos cruzadas sobre as costas, e gravemente
pensativo.
O egoísmo
do amor é implacável; diante da mulher que o seduzia e atraía, o moço nem tinha
um olhar para aquele pobre velho demente que lhe dava mulher e fortuna.
O velho de
quando em quando parava e exclamava:
— Bravo!
bravo! Assim tocarás um dia nas harpas do céu!
— Gosta de
me ouvir tocar? perguntou a moça ao doutor.
— Valia a
pena morrer ouvindo esta música.
No fim de
um quarto de hora, o major saiu, deixando os dois noivos na sala.
Era a
primeira vez que ficavam a sós.
O rapaz
não ousava reproduzir a cena da outra tarde; podia haver um novo grito da moça
e tudo estava perdido para ele.
Mas os
seus olhos, esquecidamente embebidos nos da moça, falavam melhor que todos os
ósculos deste mundo. Celestina olhava para ele com essa confiança da inocência
e do pudor, essa confiança de quem não suspeita o mal e só conhece o bem.
O doutor
compreendeu que era amado; Celestina não compreendeu, sentiu que estava presa
àquele homem por alguma coisa mais forte que a palavra do pai. A música
cessara.
O doutor
sentou-se defronte da moça, e disse-lhe:
— Casa-se
comigo por vontade?
— Eu?
respondeu ela; certamente que sim; gosto do senhor; além disso, meu pai quer, e
quando um anjo quer...
— Não
zombe assim, disse o doutor; não é culpa...
— Zombar
de quê?
— De seu
pai.
— Ora
essa!
— É um
desgraçado.
— Não
conheço anjos desgraçados, respondeu a moça com uma graça tão infantil e um ar
de tanta convicção que o doutor franziu a testa com um gesto de espanto.
A moça
continuou:
— Bem
feliz que ele é; quem me dera ser anjo como ele! é verdade que filha dele devo
ser também... e, na verdade, sou também angélica...
O doutor
ficou pálido, e levantou-se com tanta precipitação, que Celestina não pôde
reprimir um gesto de susto.
— Ah! que
tem?
— Nada,
disse o rapaz passando a mão pela testa; foi uma vertigem.
Nesse
momento entrou o major. Antes que tivesse tempo de perguntar nada, a filha
correu a ele e disse que o doutor se achava incomodado.
O moço
declarou achar-se melhor; mas pai e filha foram de opinião que devia ir descansar
um pouco. O doutor obedeceu.
Quando
chegou ao quarto atirou-se à cama e esteve alguns minutos sem
movimento, mergulhado em reflexões. As
palavras incoerentes da moça diziam-lhe que não havia naquela casa só um doido;
tanta graça e beleza nada valiam; a infeliz estava nas condições do pai.
movimento, mergulhado em reflexões. As
palavras incoerentes da moça diziam-lhe que não havia naquela casa só um doido;
tanta graça e beleza nada valiam; a infeliz estava nas condições do pai.
— Coitada!
também é louca! Mas por que singular acordo de circunstâncias ambos eles estão
de acordo nesta monomania celestial?
O doutor
fazia esta e mil outras perguntas a si mesmo, sem achar resposta plausível. O
que havia de certo é que o edifício da sua ventura acabava de esboroar-se.
Só lhe
restava um recurso; aproveitar a licença concedida pelo velho e sair daquela casa, que parecia encerrar uma
história sombria.
Com
efeito, ao jantar o dr. Antero declarou ao major que tinha intenção de ir à cidade ver uns papéis, no dia seguinte de
manhã; voltaria de tarde.
No dia
seguinte, logo depois do almoço, preparou-se o rapaz para ir embora, não sem
ter prometido a Celestina que voltaria o mais cedo que pudesse. A moça pedia-lhe
com alma; ele hesitou por um momento; mas que fazer? era melhor fugir dali quanto antes.
Estava já
pronto, quando sentiu bater-lhe à porta muito ao de leve; foi abrir; era a criada
de Celestina.
IX
Esta
criada, que se chamava Antônia, representava ter quarenta anos de idade. Não
era feia nem bonita; tinha umas feições comuns e irregulares. Mas bastava olhá-la
para ver nela o tipo da bondade e da dedicação.
Antônia
entrou precipitadamente, e ajoelhou-se aos pés do doutor.
— Não vá!
sr. doutor! não vá!
—
Levante-se, Antônia, disse o rapaz.
Antônia
levantou-se e repetiu as mesmas palavras.
— Que eu
não vá? perguntou o doutor; mas por quê?
— Salve
aquela menina!
— Pois
quê! ela está em perigo?
— Não; mas
é preciso salvá-la. Pensa que eu não adivinhei o seu pensamento? O senhor quer
ir-se embora de uma vez.
— Não;
prometo...
— Quer, e
eu lhe peço que não vá... pelo menos até amanhã.
— Mas não
me explicará...
— Agora, é
impossível; pode vir gente; mas esta noite; olhe, à meia-noite, quando ela já
estiver dormindo, eu virei aqui e lhe explicarei tudo. Mas promete que não vai?
O rapaz
respondeu maquinalmente.

— Prometo.
Antônia
saiu precipitadamente.
No meio
daquela constante alternativa de boas e más impressões, naquele desenrolar de
emoções diversas, de mistérios diferentes, era de admirar que o espírito do
rapaz não ficasse abalado, tão abalado como o do major. Parece que chegou a
recear de si.
Logo depois que saiu Antônia, sentou-se o doutor, e entrou a conjecturar que perigo seria aquele de que
era preciso salvar a pequena. Mas não atinando com ele, resolveu ir ter com ela
ou com o major, e já se preparava para isso, quando o futuro sogro lhe entrou
pelo quarto.
Vinha
alegre e lépido.
— Ora,
guarde-o Deus, disse ele ao entrar; é a primeira vez que o visito no seu quarto.
— É
verdade, respondeu o doutor. Queira sentar-se.
— Mas
também o motivo que me traz aqui é importante, disse o velho assentando-se.
— Ah!
— Sabe
quem morreu?
— Não.
— O diabo.
Dizendo
isto deu uma gargalhada nervosa que fez estremecer o doutor; o velho continuou:
— Sim,
senhor, morreu o diabo; o que é grande fortuna para mim, porque me dá a maior
alegria da minha vida. Que lhe parece?
—
Parece-me que é uma felicidade para nós todos, disse o dr. Antero; mas como soube
da notícia?
— Soube
por carta que recebi hoje do meu amigo Bernardo, também amigo de seu pai. Não vejo o Bernardo há doze anos;
chegou agora do Norte, e apressou-se a
escrever-me para dar esta agradável notícia.
O velho
levantou-se, passeou pelo quarto sorrindo, murmurando algumas palavras sozinho, e parando de quando em quando para
contemplar o hóspede.
— Não
acha, disse ele numa das vezes que parou, não acha que esta notícia é a melhor
festa que posso ter por ocasião de casar minha filha?
— Com efeito,
assim é, respondeu o rapaz levantando-se; mas, visto que o inimigo da luz
morreu, não falemos mais nele.
— Tem
muita razão; não falemos mais nele.
O doutor
dirigiu a conversa para assuntos diversos; falou de campanhas, de literatura,
de plantações, de tudo quanto afastasse o major dos assuntos angélicos ou
diabólicos.

Finalmente
saiu o major dizendo que esperava o coronel Bernardo, seu amigo, para jantar, e
que teria sumo prazer em apresentar-lhe.
Mas a hora
do jantar chegou sem que chegasse o coronel, de maneira que o doutor ficou
convencido de que o coronel, a carta e o diabo não passavam de criações do
major. Devia estar convencido desde princípio; e se estivesse convencido
estaria em erro, porque o coronel Bernardo apresentou-se em casa às ave-marias.
Era um
homem cheio de corpo, robusto, vermelho, olhos vivos, falando apressadamente,
um homem sem cuidados nem remorsos. Representava quarenta anos e tinha cinqüenta e dois; vestia
uma sobrecasaca militar.
O major
abraçou o coronel com uma satisfação ruidosa, e apresentou-o ao dr. Antero como
um dos seus melhores amigos. Apresentou o doutor ao coronel declarando ao mesmo
tempo que ia ser seu genro; e finalmente mandou chamar a filha, que não tardou muito a chegar à sala.
Quando o
coronel pôs os olhos em Celestina arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas; tinha-a visto pequena e achava-a
moça feita, e moça bonita. Abraçou-a paternalmente.
Durou a
conversa entre os quatro uma meia hora, tempo em que o coronel, com uma
volubilidade que contrastava com a frase pausada do major, contou mil e uma
circunstâncias da sua vida de província.
No fim
desse tempo, o coronel declarou que queria falar em particular ao major; o doutor
retirou-se para o seu quarto, deixando Celestina, que poucos minutos depois
retirou-se também.
O coronel
e o major fecharam-se na sala; ninguém ouvia a conversa, mas o criado viu que
só à meia-noite saiu da sala o coronel, dirigindo-se para o quarto que lhe haviam
preparado.
Quanto ao
doutor, apenas entrou no quarto viu sobre a mesa uma carta, com sobrescrito
para ele. Abriu e leu o seguinte:
— Meu
noivo, escrevo-lhe para dizer que não se esqueça de mim, que sonhe comigo, e
que goste de mim como eu gosto do senhor. — Sua noiva, Celestina.
Nada mais.
Era uma
cartinha de amores pouco parecida com as que se escrevem em casos tais, uma
carta simples, ingênua, audaz, sincera.
O rapaz
releu-a, beijou-a e levou-a ao coração.
Depois
preparou-se para receber a visita de
Antônia, que, como
os leitores se devem
lembrar, estava marcada para a meia-noite.
Para matar
o tempo o rapaz abriu um dos livros que estavam sobre a mesa. Acertou de ser Paulo e Virgínia; o doutor
nunca havia lido o celeste romance; o seu ideal e a sua educação o afastavam
daquela literatura. Mas agora tinha o espírito preparado para apreciar páginas
tais; sentou-se e leu rapidamente metade da obra.
X
A
meia-noite ouviu bater à porta; era Antônia.
A boa
mulher entrou com preparação; receava que o menor ruído a comprometesse. O
rapaz fechou a porta, e fez com que Antônia se sentasse.
—
Agradeço-lhe o ter ficado, disse ela sentando-se, e vou dizer-lhe que perigo ameaça
a minha pobre Celestina.
— Perigo
de vida? perguntou o doutor.
— Mais do
que isso.
— De
honra?
— Menos
que isso.
— Então...
— O perigo
da razão; eu receio que a pobre moça fique louca.
— Receia?
disse o doutor sorrindo tristemente; está certa de que ela já o não está?
— Estou.
Mas pode vir a ficar, tão louca como o pai.
— Esse...
— Esse
está perdido.
— Quem
sabe?
Antônia
abanou a cabeça.
— Deve
estar, porque há doze anos que perdeu a razão.
— Sabe o
motivo?
— Não sei.
Eu vim para esta casa há cinco anos; a menina tinha dez; era, como hoje, uma criaturinha viva, alegre e boa. Mas
nunca tinha saído daqui; é provável que não tenha visto em sua vida mais de dez
pessoas. Ignora tudo. O pai, que já então estava convencido de que era o anjo
Rafael, como ainda hoje diz, repetia-o à filha constantemente, de maneira que
ela acredita firmemente ser filha de um anjo. Tentei dissuadi-la disso; mas ela foi
contar ao major, e este ameaçou-me de mandar-me embora se eu inculcasse más
idéias à filha. Era má idéia dizer à menina que ele não era o que dizia e
simplesmente um desgraçado doido.
— E a mãe
dela?
— Não
conheci; perguntei por ela a Celestina; e soube que ela também a não conhecera,
pela razão de que não tivera mãe. Referiu-me ter sabido, por boca de seu pai,
que ela viera ao mundo por obra e graça do céu. Bem vê que a menina não está
louca; mas aonde irá ter com estas idéias?
O doutor
estava pensativo; compreendia agora as palavras incoerentes da moça ao piano. A
narração de Antônia era verossímil. Cumpria salvar a moça levando-a para fora
dali. Para isso o casamento era o melhor meio.
— Tens
razão, boa Antônia, disse ele, salvaremos Celestina; descansa em mim.

— Jura?
— Juro.
Antônia
beijou a mão ao rapaz, derramando algumas lágrimas de contentamento. É que
Celestina era para ela mais do que ama, era uma espécie de filha criada na solidão.
Saiu a
criada, e o doutor deitou-se, não só porque a hora era adiantada, como porque o
seu espírito pedia algum repouso ao cabo de tantas e novas emoções.
No dia
seguinte falou ao major na necessidade de abreviar o casamento, e por conseqüência
na de arranjar os papéis.
Concordou-se
que o casamento seria na capela de casa, e o major concedeu licença para que um
padre os casasse; isto pela consideração de que, se Celestina, como filha de um
anjo, estava acima de um padre, não acontecia o mesmo com o doutor, que era
simplesmente um homem.
Quanto aos
papéis, levantou-se uma dúvida relativamente à declaração do nome da mãe da
moça. O major declarou peremptoriamente que Celestina não tinha mãe.
Mas o
coronel, que estava presente, interveio no debate, dizendo ao major estas palavras,
que o doutor não compreendeu, mas que lhe fizeram impressão:
— Tomás!
lembra-te de ontem à noite.
O major
calou-se imediatamente. Quanto ao coronel, voltando-se para o dr. Antero
disse-lhe:
— Tudo se
há de arranjar: descanse.
A conversa
ficou nisto.
Mas houve
quanto bastasse para que o doutor descobrisse nas mãos do coronel Bernardo o
fio daquela meada. O rapaz não hesitou em aproveitar a primeira ocasião para
entender-se com o coronel a fim de o informar acerca dos mil e um pontos
obscuros daquele quadro que há dias tinha diante dos olhos.
Celestina
não assistira à conversa; estava na outra sala tocando piano. O doutor lá foi ter com ela, e achou-a triste.
Perguntou-lhe por quê.
— Eu sei!
respondeu a moça; está-me parecendo que o senhor não gosta de mim; e se me
perguntar por que [3] a gente gosta dos outros, não sei.
O moço
sorriu, pegou-lhe na mão, apertou-a entre as suas, e levou-a aos lábios. Desta
vez, Celestina não gritou, nem resistiu; ficou a olhar embebida para ele, pendente
dos seus olhos, pode-se dizer que pendente da sua alma.
XI
Na noite
seguinte, o dr. Antero passeava no jardim, justamente por baixo da janela de
Celestina. A moça não sabia que ele se achava ali, nem o rapaz quis por modo
nenhum chamar a atenção dela. Contentava-se em olhar de longe, vendo de quando em quando desenhar-se na parede a
sombra daquele delicado corpo.
Havia lua
e o céu estava sereno. O doutor, que até ali não conhecia nem apreciava
os mistérios da noite, aprazia-se agora em
conversar com o silêncio, a sombra e a solidão.
os mistérios da noite, aprazia-se agora em
conversar com o silêncio, a sombra e a solidão.
Quando se
achava mais embebido com os olhos na janela, sentiu que alguém lhe batia no ombro.
Estremeceu,
e voltou-se rapidamente.
Era o
coronel.
— Olá, meu
caro doutor, disse o coronel, faz um idílio antes do casamento?
— Estou
tomando fresco, respondeu o doutor; a noite está magnífica e lá dentro está
calor.
— Isto é
verdade; eu também vim tomar fresco. Passeamos, se lhe não interrompo as
reflexões.
— Pelo
contrário, e eu até estimo...
— Ter-me
encontrado?
— Justo.
— Pois
então melhor.
O rumor
das palavras trocadas pelos dois foi ouvido no quarto de Celestina. A moça
chegou à janela e procurou ver se descobria de quem eram as vozes.
— Lá está
ela, disse o coronel. Olhe!
Os dois
homens aproximaram-se, e o coronel disse para Celestina:
— Somos
nós, Celestina; eu e o teu noivo.
— Ah! que
andam fazendo?
— Bem vês;
tomando fresco.
Houve um
silêncio.
— Não me
diz nada, doutor? perguntou a moça.
—
Contemplo-a.
— Faz bem,
respondeu ela; mas como o ar pode fazer-me mal, boa noite.
— Boa
noite!
Celestina
entrou, e pouco depois fechou-se a janela.
Quanto aos
dois homens, dirigiram-se para um banco de pau que ficava na outra extremidade do jardim.
— Diz
então que estimava encontrar-me?
— É
verdade, coronel; peço-lhe uma informação.
— E eu vou
dar-lhe.

— Sabe o
que é?
—
Adivinho.
— Tanto
melhor; evita-me um discurso.
— Quer
saber quem é a mãe de Celestina?
— Em
primeiro lugar.
— Pois que
mais?
— Quero
saber depois qual a razão desta loucura do major.
— Não sabe
nada?
— Nada. Eu
estou aqui em conseqüência de uma aventura singularíssima que lhe vou narrar.
O doutor
repetiu ao coronel a história da carta e do recado que o chamara ali, sem ocultar
que o convite do major chegara justamente na ocasião em que ele se achava
disposto a romper com a vida.
O coronel
ouviu atentamente a narração do moço; ouviu também a confissão de que a entrada
naquela casa fizera do doutor um bom homem, quando não passava de um homem
inútil e mau.
—
Confissão por confissão, disse o doutor; venha a sua.
O coronel
tomou a palavra.
— Fui
amigo de seu pai e do major; seu pai morreu há muito; ficamos eu e o major como
dois sobreviventes dos três irmãos Horácios, nome que nos davam os homens do
nosso tempo. O major era casado, eu solteiro. Um dia, por motivos que não vêm
ao caso, o major suspeitou que sua mulher lhe era infiel, e expulsou-a de casa.
Eu também acreditei na infidelidade de Fernanda, e aprovei, em parte, o ato do
major. Digo-lhe em parte, porque a pobre mulher no dia seguinte não tinha de
comer; e foi de minha mão que recebeu alguma coisa. Protestou ela por sua
inocência com as lágrimas nos olhos; eu não acreditei nas lágrimas nem nos protestos.
O major ficou louco, e veio para esta casa com a filha, e nunca mais saiu.
Acontecimentos imprevistos me obrigaram a ir pouco depois para o Norte, onde
estive até há pouco. E não teria voltado se...
O coronel
estacou.
— Que é?
perguntou-lhe o doutor.
— Não vê
um vulto ali?
— Aonde?
— Ali.
Com efeito
encaminhava-se um vulto para os dois interlocutores; a alguns passos reconheceram
ser o criado José.
— Sr.
Coronel, disse o criado, ando à sua procura.
— Por quê?

— O amo
quer falar-lhe.
— Bem; lá
vou.
O criado
retirou-se, e o coronel continuou:
— Não
teria voltado se não adquirisse a certeza de que as suspeitas do major eram
todas infundadas.
— Como?
— Fui
encontrar, depois de tantos anos, na província em que me achava, a esposa do
major servindo de criada em uma casa. Tinha tido uma vida exemplar; as informações
que obtive confirmavam as asseverações dela. As suspeitas fundavam-se numa
carta achada em poder dela. Ora, essa carta comprometia uma mulher, mas não era
Fernanda; era outra, cujo testemunho ouvi no ato de morrer. Compreendi que era
talvez o meio de chamar o major à razão vir contar-lhe isso tudo. Vim, com
efeito, e expus-lhe o que sabia.
— E ele?
— Não
acredita; e quando parece ir-se convencendo das minhas asseverações, volta-lhe
a idéia de que ele não é casado, porque os anjos não casam; enfim, o mais que o
senhor sabe.
— Então está
perdido?
— Creio
que sim.
— Nesse
caso cumpre salvar-lhe a filha.
— Por quê?
— Porque o
major educou Celestina na mais absoluta reclusão possível, e desde pequena
incutiu-lhe a idéia de que anda possuído, de maneira que eu tenho medo de que a
pobre moça sofra igualmente.
—
Descanse; o casamento será feito quanto antes; e o senhor a levará daqui; em último
caso, se não pudermos convencê-lo, sairão sem que ele o saiba.
Levantaram-se
os dois, e ao chegarem perto da casa, saiu-lhes ao encontro o criado, trazendo
um novo recado do major.
—
Parece-me que está doente, acrescentou o criado.
— Doente?
O coronel
apressou-se a ir ter com o amigo, enquanto o doutor foi para o quarto esperar
notícias dele.
XII
Quando o
coronel entrou no quarto do major achou-o muito aflito. Passeava de um lado
para outro, agitado, proferindo palavras incoerentes, com o olhar desvairado.
— Que
tens, Tomás?

— Ainda
bem que vieste, disse o velho; sinto-me mal; veio aqui há pouco um anjo buscar-me;
disse-me que eu estava fazendo falta no céu. Creio que me vou embora desta vez.
— Deixa-te
disso, respondeu o coronel; foi caçoada do anjo; descansa, tranqüiliza-te.
O coronel
conseguiu fazer com que o major se deitasse. Apalpou-lhe o pulso, e sentiu-lhe
febre. Entendeu que era conveniente mandar buscar um médico, e deu ordem ao
criado nesse sentido.
Acalmou-se
a febre do major, que conseguiu dormir um pouco; o coronel mandou preparar uma
cama no mesmo quarto, e depois de ir dar parte ao doutor do que acontecera,
voltou para o quarto do major.
No dia
seguinte o doente levantou-se melhor; o médico, tendo chegado sobre a madrugada,
não chegou a aplicar-lhe nenhum remédio, mas lá ficou para o caso de ser
preciso.
Quanto a
Celestina, nada soube do que havia acontecido; e acordou alegre e viva como
nunca.
Mas sobre
a tarde voltou a febre ao major, e desta vez de um modo violento. Dentro de
pouco tempo declarou-se a proximidade da morte.
O coronel
e o doutor tiveram cuidado de afastar Celestina, que não sabia o que era
morrer, e podia sofrer com a vista do pai moribundo.
O major,
cercado pelos dois amigos, pedia-lhes com instância que lhe fossem buscar a
filha; mas eles não consentiram nisso. Então, o pobre velho instou com o doutor
que não deixasse de casar com ela, e ao mesmo tempo repetiu a declaração de que
lhe deixava uma fortuna. Enfim sucumbiu.
Ficou
assentado entre o coronel e o doutor que a morte do major seria participada à
filha depois de feito o enterro, e que este teria lugar com a maior discrição possível.
Assim se fez.
A ausência
do major ao almoço e ao jantar do dia seguinte foi explicada a Celestina como
proveniente de uma conferência em que ele estava com pessoas de sua amizade.
De maneira
que, ao passo que do outro lado da casa se achava o cadáver do pai, a filha ria e conversava à mesa como nos seus
melhores dias.
Mas feito
o enterro era preciso dizê-lo à filha.
—
Celestina, disse-lhe o coronel, tu vais casar brevemente com o dr. Antero.
— Mas
quando?
— Daqui a
dias.
— Dizem-me
isso há que tempo!
— Pois agora
é de uma vez. Teu pai...
— Que tem?
— Teu pai
não volta por enquanto.

— Não
volta? disse a moça. Pois onde foi ele?
— Teu pai
foi para o céu.
A moça
ficou pálida ouvindo a notícia; não lhe ligava nenhuma idéia fúnebre; mas o
coração adivinhava que por trás daquela notícia havia uma catástrofe.
O coronel
procurou distraí-la.
Mas a
moça, vertendo duas lágrimas, duas só, mas que valiam por cem, disse com
profunda amargura:
— Papai
foi para o céu e não se despediu de mim!
Depois
recolheu-se ao quarto até o dia seguinte.
O coronel
e o doutor passaram a noite juntos.
Declarou o
doutor que a fortuna do major estava por trás de uma estante, na biblioteca, e
que ele sabia o meio de abri-la. Assentaram os dois no meio de apressar o
casamento de Celestina sem prejuízo dos atos da justiça.
Cumpria,
porém, antes de tudo, arrancar a moça daquela casa; o coronel indicou a casa de
uma parenta sua, para onde a levariam no dia seguinte. Assentados estes
pormenores, o coronel perguntou ao doutor:
— Ora,
diga-me; não crê agora que haja uma providência?
— Sempre
acreditei.
— Não
minta; se acreditasse não teria recorrido ao suicídio.
— Tem
razão, coronel; dir-lhe-ei até: eu era um pouco de lodo, hoje sinto-me pérola.
—
Compreendeu-me bem; eu não queria aludir à fortuna que veio encontrar aqui, mas
a essa reforma de si mesmo, a essa renovação moral, que obteve com este ar e na
contemplação daquela formosa Celestina.
— Diz bem,
coronel. Quanto à fortuna, estou pronto a...
— A quê? a
fortuna é de Celestina; não deve desfazer-se dela.
— Mas
podem supor que o casamento...
— Deixe
supor, meu amigo. Que lhe importa ao senhor que suponham? Não tem a sua
consciência, que lhe não argüe coisa nenhuma?
— É
verdade; mas a opinião...
— A
opinião, meu caro, não é mais do que uma opinião; não é a verdade. Acerta às
vezes; outras calunia, e quer a desgraça que mais vezes calunie do que acerte.
O coronel
em matéria de opinião pública era um perfeito ateu; negava-lhe a autoridade e a
supremacia. Umas das suas máximas era esta: “A opinião pública é um muro em
branco: aceita tudo quanto lhe escrevem em cima, quer venha da mão de um
garoto, quer da de um homem de bem”.
Foi
difícil ao doutor e ao coronel convencer a Celestina de que deveria sair
daquela casa; mas enfim alcançaram levá-la para a cidade de noite. A parenta do
coronel,
prevenida a tempo, recebeu-a em casa.
prevenida a tempo, recebeu-a em casa.
Arranjadas
as coisas de justiça, tratou-se de realizar o casamento.
Antes
porém de chegar a esse ponto tão almejado pelos dois noivos, foi preciso habituar
Celestina à vida nova que começava a viver e que ela não conhecia. Educada
entre as paredes de uma casa isolada, longe de todo o rumor, e sob direção de
um homem enfermo da razão, Celestina entrou num mundo que jamais sonhara, nem dele tinha notícia.
Tudo para
ela era objeto de curiosidade e espanto. Cada dia trazia-lhe uma emoção nova.
Admirava a
todos que, apesar da singular educação que tivera, soubesse tocar tão bem; ela
tivera com efeito um mestre chamado pelo major, que desejava, dizia ele,
mostrar que um anjo, e principalmente o anjo Rafael, sabia fazer as coisas como
os homens. Quanto à leitura e escritura, foi ele mesmo quem lhe ensinou.
XIII
Logo
depois que voltou à cidade, o dr. Antero teve cuidado de escrever a seguinte carta
aos seus amigos:
O dr.
Antero da Silva, recentemente suicidado, tem a honra de participar a V. que
voltou do outro mundo, e se acha ao seu dispor no hotel de ***.
Encheu-se-lhe
a sala de gente que correra a vê-lo; alguns incrédulos supuseram simples
caçoada de algum homem amigo de pregar peças aos outros. Foi um concerto de
exclamações:
— Não
morreste!
— Pois
quê! estás vivo!
— Mas que
foi isto!
— Aqui
houve milagre!
— Qual
milagre, respondia o doutor; foi simplesmente um meio engenhoso de ver a
impressão que causaria a minha morte; já soube quanto quisera saber.
— Oh!
disse um dos presentes, foi profunda; pergunta ao César.
— Quando
soubemos do desastre, acudiu César, não quisemos crer; corremos à tua casa; era
infelizmente verdade.
— Que
marreco! exclamava um terceiro, fazer-nos chorar por ele, quando talvez se achasse perto de nós... Nunca te hei de
perdoar aquelas lágrimas.
— Mas,
disse o doutor, a polícia parece que chegou a reconhecer o meu cadáver.
— Disse
que sim, e eu acreditei.
— Eu
também.
Nesse
momento entrou na sala um novo personagem; era o criado Pedro.
O doutor
rompeu por entre os amigos e foi abraçar o criado, que entrou a derramar
lágrimas de contentamento.
Aquela
efusão em relação a um criado, comparada à frieza relativa com que o doutor os recebera, incomodou aos amigos que
ali se achavam. Era eloqüente. Saíram os amigos pouco depois declarando que o
contentamento de vê-lo lhes inspirava a idéia de lhe dar um jantar. O doutor
recusou o jantar.
No dia
seguinte, os jornais declararam que o dr. Antero da Silva, que se julgava morto,
se achava vivo e aparecera; e logo nesse dia recebeu o doutor a visita dos credores,
que, pela primeira vez, viam ressuscitar uma dívida já sepultada.
Quanto ao
folhetinista de um dos jornais que tratara da morte do doutor e da carta que
ele deixara, encabeçou o seu artigo do próximo sábado assim:
— Dizem
que reapareceu o autor de uma carta com que me ocupei ultimamente. Será verdade? Se voltou não é
autor da carta; se é autor da carta não voltou.
A isto respondeu
o ressuscitado:
Voltei do
outro mundo, e apesar disso sou o autor da carta. Do mundo de que venho trago
uma boa filosofia: ter em nenhuma conta a opinião dos meus contemporâneos, e em
menos ainda a dos meus amigos. Trouxe mais alguma coisa, mas isso importa pouco
ao público.
XIV
Efetuou-se
o casamento três meses depois.
Celestina
estava outra; perdera aquele estouvamento ignorante que era o principal traço
do seu caráter, e com ele as idéias extravagantes que o major lhe incutira.
O coronel
assistiu ao casamento.
Um mês
depois o coronel foi despedir-se dos noivos, voltava para o Norte.
— Adeus,
meu amigo, disse-lhe o doutor; nunca esquecerei o que fez por mim.
— Eu não
fiz nada; ajudei a boa sorte.
Celestina
despediu-se do coronel com lágrimas.
— Por que
choras, Celestina? disse o velho, eu volto breve.
— Sabe por
que ela chora? perguntou o doutor; eu já lhe disse que sua mãe estava no Norte;
ela sente não poder vê-la.
— Ve-la-á,
porque eu vou buscá-la.
Quando o
coronel saiu, Celestina pôs os braços à roda do pescoço do marido, e disse com
um sorriso entre lágrimas:
— Ao pé de
ti e de minha mãe, que mais quero eu na terra?
No ideal
da felicidade da moça já não entrava o coronel. Ó amor! ó coração! ó
egoísmo humano!
egoísmo humano!
---
Nota:
Texto-fonte: Publicado
originalmente em Jornal das
Famílias, 1869. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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