
MARIA CORA
CAPÍTULO PRIMEIRO
Uma noite,
voltando para casa, trazia tanto sono que não dei corda ao relógio. Pode ser
também que a vista de uma senhora que encontrei em casa do comendador T...
contribuísse para aquele esquecimento; mas estas duas razões destroem-se.
Cogitação tira o sono e o sono impede a cogitação; só uma das causas devia ser
verdadeira. Ponhamos que nenhuma, e fiquemos no principal, que é o relógio parado, de manhã, quando me levantei, ouvindo dez
horas no relógio da casa.
Morava
então (1893) em uma casa de pensão no Catete. Já por esse tempo este gênero de residência florescia no Rio de Janeiro. Aquela era
pequena e tranqüila. Os quatrocentos contos de réis permitiam-me casa exclusiva
e própria; mas, em primeiro lugar, já eu ali residia quando os adquiri, por
jogo de praça; em segundo lugar, era um solteirão de quarenta anos, tão afeito
à vida de hospedaria que me seria impossível morar só. Casar não era menos
impossível. Não é que me faltassem noivas. Desde os fins de 1891 mais de uma
dama, — e não das menos belas, — olhou para mim com olhos brandos e amigos. Uma
das filhas do comendador tratava-me com particular atenção. A nenhuma dei
corda; o celibato era a minha alma, a minha vocação, o meu costume, a minha
única ventura. Amaria de empreitada e por desfastio. Uma ou duas aventuras por
ano bastavam a um coração meio inclinado ao ocaso e à noite.

Talvez por
isso dei alguma atenção à senhora que vi em casa do comendador, na véspera. Era uma criatura morena, robusta,
vinte e oito a trinta anos, vestida de escuro; entrou às dez horas, acompanhada
de uma tia velha. A recepção que lhe fizeram foi mais cerimoniosa que as
outras; era a primeira vez que ali ia. Eu era a terceira. Perguntei se era
viúva.
— Não; é
casada.
— Com
quem?
— Com um
estancieiro do Rio Grande.
—
Chama-se?
— Ele?
Fonseca, ela Maria Cora.
— O marido
não veio com ela?
— Está no
Rio Grande.
Não soube
mais nada; mas a figura da dama interessou-me pelas graças físicas, que eram o
oposto do que poderiam sonhar poetas românticos e artistas seráficos. Conversei
com ela alguns minutos, sobre coisas indiferentes, — mas suficientes para
escutar-lhe a voz, que era musical, e saber que tinha opiniões republicanas.
Vexou-me confessar que não as professava de espécie alguma; declarei-me
vagamente pelo futuro do país. Quando ela falava, tinha um modo de umedecer os
beiços, não sei se casual, mas gracioso e picante. Creio que, vistas assim ao pé, as feições não eram tão corretas como pareciam
a distância, mas eram mais suas, mais originais.
CAPÍTULO II
De manhã
tinha o relógio parado. Chegando à cidade, desci a Rua do Ouvidor, até à da
Quitanda, e indo a voltar à direita, para ir ao escritório do meu advogado, lembrou-me ver que horas eram. Não
me acudiu que o relógio estava parado.
— Que
maçada! exclamei.
Felizmente,
naquela mesma Rua da Quitanda, à esquerda, entre as do Ouvidor e Rosário, era a oficina onde eu comprara o
relógio, e a cuja pêndula usava acertá-lo. Em vez de ir para um lado, fui para
outro. Era apenas meia hora; dei corda
ao relógio, acertei-o, troquei duas palavras com o oficial que estava ao balcão,
e indo a sair, vi à porta de uma loja de novidades que ficava defronte, nem
mais nem menos que a senhora de escuro que encontrara em casa do comendador.
Cumprimentei-a, ela correspondeu depois de alguma hesitação, como se me não
houvesse reconhecido logo, e depois seguiu pela Rua da Quitanda fora, ainda
para o lado esquerdo.
Como
tivesse algum tempo ante mim (pouco menos de trinta minutos), dei-me a andar atrás de Maria Cora. Não digo que uma
força violenta me levasse já, mas não posso esconder que cedia a qualquer
impulso de curiosidade e desejo; era também um resto da juventude passada. Na
rua, andando, vestida de escuro, como na véspera, Maria Cora pareceu-me ainda
melhor. Pisava forte, não apressada nem
lenta, o bastante para deixar ver e admirar as belas formas, mui mais corretas
que as linhas do rosto. Subiu a Rua do Hospício, até uma oficina de oculista,
onde entrou e ficou dez minutos ou mais. Deixei-me estar a
distância, fitando a porta disfarçadamente.
Depois saiu, arrepiou caminho, e dobrou a Rua dos
Ourives, até à do Rosário, por onde subiu até ao Largo da Sé; daí passou ao de
S. Francisco de Paula. Todas essas reminiscências parecerão escusadas, senão aborrecíveis; a mim dão-me uma sensação intensa e
particular, são os primeiros passos de uma carreira penosa e longa. Demais, vereis
por aqui que ela evitava subir a Rua do Ouvidor, que todos e todas buscariam
àquela ou a outra hora para ir ao Largo de S. Francisco de Paula. Foi atravessando
o largo, na direção da Escola Politécnica, mas a meio caminho veio ter com ela
um carro que estava parado defronte da Escola; meteu-se nele, e o carro partiu.
distância, fitando a porta disfarçadamente.
Depois saiu, arrepiou caminho, e dobrou a Rua dos
Ourives, até à do Rosário, por onde subiu até ao Largo da Sé; daí passou ao de
S. Francisco de Paula. Todas essas reminiscências parecerão escusadas, senão aborrecíveis; a mim dão-me uma sensação intensa e
particular, são os primeiros passos de uma carreira penosa e longa. Demais, vereis
por aqui que ela evitava subir a Rua do Ouvidor, que todos e todas buscariam
àquela ou a outra hora para ir ao Largo de S. Francisco de Paula. Foi atravessando
o largo, na direção da Escola Politécnica, mas a meio caminho veio ter com ela
um carro que estava parado defronte da Escola; meteu-se nele, e o carro partiu.
A vida tem
suas encruzilhadas, como outros caminhos da terra. Naquele momento achei-me
diante de uma assaz complicada, mas não tive tempo de escolher direção, — nem
tempo nem liberdade. Ainda agora não sei como é que me vi dentro de um tílburi,
é certo que me vi nele, dizendo ao cocheiro que fosse atrás do carro.
Maria Cora
morava no Engenho Velho; era uma boa casa, sólida, posto que antiga, dentro de
uma chácara. Vi que morava ali, porque a tia estava a uma das janelas. Depois, saindo do carro, Maria Cora disse ao cocheiro (o
meu tílburi ia passando adiante) que naquela semana não sairia mais, e que
aparecesse segunda-feira ao meio-dia. Em
seguida, entrou pela chácara, como dona dela, e parou a falar ao feitor, que
lhe explicava alguma coisa com o gesto.
Voltei
depois que ela entrou em casa, e só muito abaixo é que me lembrou de ver as
horas, era quase uma e meia. Vim a trote largo até à Rua da Quitanda, onde me
apeei à porta do advogado.
— Pensei
que não vinha, disse-me ele.
—
Desculpe, doutor, encontrei um amigo que me deu uma maçada.
Não era a
primeira vez que mentia na minha vida, nem seria a última.
CAPÍTULO III
Fiz-me
encontradiço com Maria Cora, na casa do comendador, primeiro, e depois em
outras. Maria Cora não vivia absolutamente reclusa, dava alguns passeios e fazia
visitas. Também recebia, mas sem dia certo, uma ou outra vez, e apenas cinco a
seis pessoas da intimidade. O sentimento geral é que era pessoa de fortes
sentimentos e austeros costumes. Acrescentai a isto o espírito, um espírito
agudo, brilhante e viril. Capaz de resistências e fadigas, não menos que de
violências e combates, era feita, como dizia um poeta que lá ia à casa dela, “de
um pedaço de pampa e outro de pampeiro”. A imagem era em verso e com rima, mas
a mim só me ficou a idéia e o principal das palavras. Maria Cora gostava de
ouvir definir-se assim, posto não andasse mostrando aquelas forças a cada
passo, nem contando as suas memórias da adolescência. A tia é que contava
algumas, com amor, para concluir que lhe saía a ela, que também fora assim na
mocidade. A justiça pede que se diga que, ainda agora, apesar de doente, a tia
era pessoa de muita vida e robustez.
Com pouco,
apaixonei-me pela sobrinha. Não me pesa confessá-lo, pois foi a ocasião da
única página da minha vida que merece atenção particular. Vou narrá-la
brevemente; não conto novela nem direi mentiras.
Gostei de
Maria Cora. Não lhe confiei logo o que sentia, mas é provável que ela o percebesse ou adivinhasse, como todas as
mulheres. Se a descoberta ou adivinhação foi anterior à minha ida à casa do
Engenho Velho, nem assim deveis
censurá-la por me haver convidado a ir ali uma
noite. Podia ser-lhe então
censurá-la por me haver convidado a ir ali uma
noite. Podia ser-lhe então
indiferente
a minha disposição moral; podia também gostar de se sentir querida, sem a menor
idéia de retribuição. A verdade é que fui essa noite e tornei outras; a tia
gostava de mim e dos meus modos. O poeta que lá ia, tagarela e tonto, disse uma
vez que estava afinando a lira para o casamento da tia comigo. A tia riu-se;
eu, que queria as boas graças dela, não podia deixar de rir também, e o caso foi matéria de conversação por uma semana; mas já então o meu
amor à outra tinha atingido ao cume.
Soube,
pouco depois, que Maria Cora vivia separada do marido. Tinham casado oito anos
antes, por verdadeira paixão. Viveram felizes cinco. Um dia, sobreveio uma aventura do marido que destruiu a paz do
casal. João da Fonseca apaixonou-se por uma figura de circo, uma chilena que
voava em cima do cavalo, Dolores, e deixou a estância para ir atrás dela.
Voltou seis meses depois, curado do amor, mas curado à força, porque a
aventureira se enamorou do redator de um
jornal, que não tinha vintém, e por ele abandonou Fonseca e a sua prataria. A esposa tinha jurado não aceitar
mais o esposo, e tal foi a declaração que lhe fez quando ele apareceu na
estância.
— Tudo
está acabado entre nós; vamos desquitar-nos.
João da
Fonseca teve um primeiro gesto de acordo; era um quadragenário orgulhoso, para
quem tal proposta era de si mesma uma ofensa. Durante uma noite tratou dos
preparativos para o desquite; mas, na seguinte manhã, a vista das graças da
esposa novamente o comoveu. Então, sem tom implorativo, antes como quem lhe
perdoava, entendeu dizer-lhe que deixasse passar uns seis meses. Se ao fim de
seis meses, persistisse o sentimento atual que inspirava a proposta do
desquite, este se faria. Maria Cora não queria aceitar a emenda, mas a tia, que
residia em Porto Alegre e fora passar algumas semanas na estância, interveio
com boas palavras. Antes de três meses estavam reconciliados.
— João,
disse-lhe a mulher no dia seguinte ao da reconciliação, você deve ver que o meu
amor é maior que o meu ciúme, mas fica entendido que este caso da nossa vida é
único. Nem você me fará outra, nem eu lhe perdoarei nada mais.
João da
Fonseca achava-se então em um renascimento do delírio conjugal; respondeu à
mulher jurando tudo e mais alguma coisa. Aos quarenta anos, concluiu ele, não
se fazem duas aventuras daquelas, e a minha foi de doer. Você verá, agora é
para sempre.
A vida
recomeçou tão feliz, como dantes, — ele dizia que mais. Com efeito, a paixão da
esposa era violenta, e o marido tornou a amá-la como outrora. Viveram assim
dois anos. Ao fim desse tempo, os ardores do marido haviam diminuído, alguns
amores passageiros vieram meter-se entre ambos. Maria Cora, ao contrário do que
lhe dissera, perdoou essas faltas, que aliás não tiveram a extensão nem o vulto
da aventura Dolores. Os desgostos, entretanto, apareceram e grandes. Houve
cenas violentas. Ela parece que chegou mais de uma vez a ameaçar que se
mataria; mas, posto não lhe faltasse o preciso ânimo, não fez tentativa
nenhuma, a tal ponto lhe doía deixar a própria causa do mal, que era o marido. João da Fonseca percebeu
isto mesmo, e acaso explorou a fascinação que exercia na mulher.
Uma
circunstância política veio complicar esta situação moral. João da Fonseca era
pelo lado da revolução, dava-se com vários dos seus chefes, e pessoalmente detestava
alguns dos contrários. Maria Cora, por laços de família, era adversa aos
federalistas. Esta oposição de sentimentos não seria bastante para separá-los,
nem se pode dizer que, por si mesma, azedasse a vida dos dois. Embora a mulher,
ardente em tudo, não o fosse menos em condenar a revolução, chamando nomes crus
aos seus chefes e oficiais; embora o marido, também

excessivo,
replicasse com igual ódio, os seus arrufos políticos apenas aumentariam os domésticos, e provavelmente não passariam dessa
troca de conceitos, se uma nova Dolores, desta vez Prazeres, e não chilena nem saltimbanca,
não revivesse os dias amargos de outro tempo. Prazeres era ligada ao partido da
revolução, não só pelos sentimentos, como pelas relações da vida com um
federalista. Eu a conheci pouco depois, era bela e airosa; João da Fonseca era
também um homem gentil e sedutor. Podiam amar-se fortemente, e assim foi. Vieram incidentes, mais ou menos graves, até que um
decisivo determinou a separação do
casal.
Já
cuidavam disto desde algum tempo, mas a reconciliação não seria impossível, apesar
da palavra de Maria Cora, graças à intervenção da tia; esta havia insinuado à
sobrinha que residisse três ou quatro meses no Rio de Janeiro ou em S. Paulo. Sucedeu, porém, uma coisa triste de
dizer. O marido, em um momento de
desvario, ameaçou a mulher com o rebenque. Outra versão diz que ele tentara
esganá-la. Quero crer que a verídica é a primeira, e que a segunda foi inventada
para tirar à violência de João da Fonseca o que pudesse haver deprimente e
vulgar. Maria Cora não disse mais uma só palavra ao marido. A separação foi
imediata; a mulher veio com a tia para o Rio de Janeiro, depois de arranjados
amigavelmente os interesses pecuniários. Demais, a tia era rica.
João da
Fonseca e Prazeres ficaram vivendo juntos uma vida de aventuras que não importa
escrever aqui. Só uma coisa interessa diretamente à minha narração. Tempos
depois da separação do casal, João da Fonseca estava alistado entre os
revolucionários. A paixão política, posto que forte, não o levaria a pegar em
armas, se não fosse uma espécie de desafio da parte de Prazeres; assim correu
entre os amigos dele, mas ainda este ponto é obscuro. A versão é que ela, exasperada com o resultado de alguns
combates, disse ao estancieiro que iria, disfarçada em homem, vestir farda de
soldado e bater-se pela revolução. Era capaz disto; o amante disse-lhe que era
uma loucura, ela acabou propondo-lhe que, nesse caso, fosse ele bater-se em vez
dela; era uma grande prova de amor que lhe daria.
— Não te
tenho dado tantas?
— Tem,
sim; mas esta é a maior de todas, esta me fará cativa até à morte.
— Então
agora ainda não é até à morte? perguntou ele rindo.
— Não.
Pode ser
que as coisas se passassem assim. Prazeres era, com efeito, uma mulher
caprichosa e imperiosa, e sabia prender um homem por laços de ferro. O federalista,
de quem se separou para acompanhar João da Fonseca, depois de fazer tudo para reavê-la, passou à campanha
oriental, onde dizem que vive pobremente,
encanecido e envelhecido vinte anos, sem querer saber de mulheres nem de
política. João da Fonseca acabou cedendo; ela pediu para acompanhá-lo, e até
bater-se, se fosse preciso; ele negou-lho. A revolução triunfaria em breve,
disse; vencidas as forças do governo, tornaria à estância, onde ela o
esperaria.
— Na
estância, não, respondeu Prazeres; espero-te em Porto Alegre.
CAPÍTULO IV
Não
importa dizer o tempo que despendi nos inícios da minha paixão, mas não foi grande. A paixão cresceu rápida e forte.
Afinal senti-me tão tomado dela que não pude mais guardá-la comigo, e resolvi
declarar-lha uma noite; mas a tia,
que usava cochilar desde as nove horas
(acordava às quatro), daquela vez não pregou olho, e, ainda que o fizesse, é
provável que eu não alcançasse falar; tinha
a voz presa e na rua senti uma vertigem igual à que me deu a primeira paixão da
minha vida.
que usava cochilar desde as nove horas
(acordava às quatro), daquela vez não pregou olho, e, ainda que o fizesse, é
provável que eu não alcançasse falar; tinha
a voz presa e na rua senti uma vertigem igual à que me deu a primeira paixão da
minha vida.
— Sr.
Correia, não vá cair, disse a tia quando eu passei à varanda, despedindo-
me.
— Deixe
estar, não caio.
Passei mal
a noite; não pude dormir mais de duas horas, aos pedaços, e antes das cinco
estava em pé.
— É
preciso acabar com isto! exclamei.
De fato,
não parecia achar em Maria Cora mais que benevolência e perdão, mas era isso
mesmo que a tornava apetecível. Todos os amores da minha vida tinham sido
fáceis; em nenhum encontrei resistência, a nenhuma deixei com dor; alguma pena,
é possível, e um pouco de recordação. Desta vez sentia-me tomado por ganchos de
ferro. Maria Cora era toda vida; parece que, ao pé dela, as próprias cadeiras
andavam e as figuras do tapete moviam os olhos. Põe nisso uma forte dose de
meiguice e graça; finalmente, a ternura da tia fazia daquela criatura um anjo.
É banal a comparação, mas não tenho outra.
Resolvi
cortar o mal pela raiz, não tornando ao Engenho Velho, e assim fiz por alguns
dias largos, duas ou três semanas. Busquei distrair-me e esquecê-la, mas foi em
vão. Comecei a sentir a ausência como de um bem querido; apesar disso, resisti
e não tornei logo. Mas, crescendo a ausência, cresceu o mal, e enfim resolvi
tornar lá uma noite. Ainda assim pode ser que não fosse, a não achar Maria Cora
na mesma oficina da Rua da Quitanda, aonde eu fora acertar o relógio parado.
— É
freguês também? perguntou-me ao entrar.
— Sou.
— Vim
acertar o meu. Mas, por que não tem aparecido?
— É
verdade, por que não voltou lá à casa? completou a tia.
— Uns
negócios, murmurei; mas, hoje mesmo contava ir lá.
— Hoje
não; vá amanhã, disse a sobrinha. Hoje vamos passar a noite fora.
Pareceu-me
ler naquela palavra um convite a amá-la de vez, assim como a primeira trouxera
um tom que presumi ser de saudade. Realmente, no dia seguinte, fui ao Engenho
Velho. Maria Cora acolheu-me com a mesma boa vontade de antes. O poeta lá
estava e contou-me em verso os suspiros que a tia dera por mim. Entrei a
freqüentá-las novamente e resolvi declarar tudo.
Já acima disse
que ela provavelmente percebera ou adivinhara o que eu sentia, como todas as
mulheres; referi-me aos primeiros dias. Desta vez com certeza percebeu, nem por
isso me repeliu. Ao contrário, parecia gostar de se ver querida, muito e bem.
Pouco
depois daquela noite escrevi-lhe uma carta e fui ao Engenho Velho. Achei-a um
pouco retraída; a tia explicou-me que recebera notícias do Rio Grande que a
afligiram. Não liguei isto ao casamento, e busquei alegrá-la; apenas consegui vê-la cortês. Antes de sair, perto da varanda,
entreguei-lhe a carta; ia a dizer-lhe: “Peço-lhe que leia”, mas a voz não saiu.
Vi-a um pouco atrapalhada, e para
evitar dizer o que melhor ia escrito,
cumprimentei-a e enfiei pelo jardim. Pode imaginar-se a
noite que passei, e o dia seguinte foi naturalmente igual, à medida que a outra
noite vinha. Pois, ainda assim, não tornei à casa dela; resolvi esperar três ou quatro dias, não que ela me escrevesse logo, mas
que pensasse nos termos da resposta. Que estes haviam de ser simpáticos, era certeza
minha; as maneiras dela, nos últimos tempos, eram mais que afáveis, pareciam-me
convidativas.
evitar dizer o que melhor ia escrito,
cumprimentei-a e enfiei pelo jardim. Pode imaginar-se a
noite que passei, e o dia seguinte foi naturalmente igual, à medida que a outra
noite vinha. Pois, ainda assim, não tornei à casa dela; resolvi esperar três ou quatro dias, não que ela me escrevesse logo, mas
que pensasse nos termos da resposta. Que estes haviam de ser simpáticos, era certeza
minha; as maneiras dela, nos últimos tempos, eram mais que afáveis, pareciam-me
convidativas.
Não
cheguei, porém, aos quatro dias; mal pude esperar três. Na noite do terceiro fui ao Engenho Velho. Se disser que
entrei trêmulo da primeira comoção, não
minto. Achei-a ao piano, tocando para o poeta ouvir; a tia, na poltrona, pensava em não sei que, mas eu quase
não a vi, tal a minha primeira alucinação.
— Entre,
Sr. Correia, disse esta; não caia em cima de mim.
—
Perdão...
Maria Cora
não interrompeu a música; ao ver-me chegar, disse:
—
Desculpe, se lhe não dou a mão, estou aqui servindo de musa a este senhor.
Minutos
depois, veio a mim, e estendeu-me a mão com tanta galhardia, que li nela a resposta, e estive quase a dar-lhe um
agradecimento. Passaram-se alguns
minutos, quinze ou vinte. Ao fim desse tempo, ela pretextou um livro, que
estava em cima das músicas, e pediu-me para dizer se o conhecia; fomos ali ambos,
e ela abriu-mo; entre as duas folhas estava um papel.
— Na outra
noite, quando aqui esteve, deu-me esta carta; não podia dizer-me o que tem
dentro?
— Não
adivinha?
— Posso
errar na adivinhação.
— É isso
mesmo.
— Bem, mas
eu sou uma senhora casada, e nem por estar separada do meu marido deixo de
estar casada. O senhor ama-me, não é? Suponha, pelo melhor, que eu também o
amo; nem por isso deixo de estar casada.
Dizendo
isto, entregou-me a carta; não fora aberta. Se estivéssemos sós, é possível que
eu lha lesse, mas a presença de estranhos impedia-me este recurso. Demais, era
desnecessário; a resposta de Maria Cora era definitiva ou me pareceu tal.
Peguei na carta, e antes de a guardar comigo:
— Não quer
então ler?
— Não.
— Nem para
ver os termos?
— Não.
— Imagine
que lhe proponho ir combater contra seu marido, matá-lo e voltar, disse eu cada
vez mais tonto.
— Propõe
isto?
— Imagine.

— Não
creio que ninguém me ame com tal força, concluiu sorrindo. Olhe, que estão
reparando em nós.
Dizendo
isto, separou-se de mim, e foi ter com a tia e o poeta. Eu fiquei ainda alguns
segundos com o livro na mão, como se deveras o examinasse, e afinal deixei-o.
Vim sentar-me defronte dela. Os três conversavam de coisas do Rio Grande, de
combates entre federalistas e legalistas, e da vária sorte deles. O que eu
então senti não se escreve; pelo menos, não o escrevo eu, que não sou romancista. Foi uma espécie de vertigem, um
delírio, uma cena pavorosa e lúcida, um combate e uma glória. Imaginei-me no
campo, entre uns e outros, combatendo os federalistas, e afinal matando João da
Fonseca, voltando e casando-me com a viúva. Maria Cora contribuía para esta
visão sedutora; agora, que me recusara a carta, parecia-me mais bela que nunca,
e a isto acrescia que se não mostrava zangada nem ofendida, tratava-me com
igual carinho que antes, creio até que maior. Disto podia sair uma impressão
dupla e contrária, — uma de aquiescência tácita, outra de indiferença, mas eu
só via a primeira, e saí de lá completamente louco.
O que
então resolvi foi realmente de louco. As palavras de Maria Cora: “Não creio que
ninguém me ame com tal força” — soavam-me aos ouvidos, como um desafio. Pensei
nelas toda a noite, e no dia seguinte fui ao Engenho Velho; logo que tive
ocasião de jurar-lhe a prova, fi-lo.
— Deixo
tudo o que me interessa, a começar pela paz, com o único fim de lhe mostrar que
a amo, e a quero só e santamente para mim. Vou combater a revolta.
Maria Cora
fez um gesto de deslumbramento. Daquela vez percebi que realmente gostava de
mim, verdadeira paixão, e se fosse viúva, não casava com outro. Jurei novamente
que ia para o Sul. Ela, comovida, estendeu-me a mão. Estávamos em pleno
romantismo. Quando eu nasci, os meus não acreditavam em outras provas de amor,
e minha mãe contava-me os romances em versos de cavaleiros andantes que iam à
Terra Santa libertar o sepulcro de Cristo por amor da fé e da sua dama. Estávamos em pleno
romantismo.
CAPÍTULO V
Fui para o
sul. Os combates entre legalistas e revolucionários eram contínuos e sangrentos,
e a notícia deles contribuiu a animar-me. Entretanto, como nenhuma paixão
política me animava a entrar na luta, força é confessar que por um instante me
senti abatido e hesitei. Não era medo da morte, podia ser amor da vida, que é
um sinônimo; mas, uma ou outra coisa, não foi tal nem tamanha que fizesse durar
por muito tempo a hesitação. Na cidade do Rio Grande encontrei um amigo, a quem
eu por carta do Rio de Janeiro dissera muito reservadamente que ia lá por
motivos políticos. Quis saber quais.
—
Naturalmente são reservados, respondi tentando sorrir.
— Bem; mas
uma coisa creio que posso saber, uma só, porque não sei absolutamente o que
pense a tal respeito, nada havendo antes que me instrua. De que lado estás,
legalistas ou revoltosos?
— É boa!
Se não fosse dos legalistas, não te mandaria dizer nada; viria às escondidas.
— Vens com
alguma comissão secreta do marechal?

— Não.
Não me
arrancou então mais nada, mas eu não pude deixar de lhe confiar os meus
projetos, ainda que sem os seus motivos. Quando ele soube que aqueles eram
alistar-me entre os voluntários que combatiam a revolução, não pôde crer em
mim, e talvez desconfiasse que efetivamente eu levava algum plano secreto do
presidente. Nunca da minha parte ouviu nada que pudesse explicar semelhante
passo. Entretanto, não perdeu tempo em despersuadir-me; pessoalmente era legalista e falava dos
adversários com ódio e furor. Passado o espanto, aceitou o meu ato, tanto mais
nobre quanto não era inspirado por sentimento de partido. Sobre isto disse-me
muita palavra bela e heróica, própria a levantar o ânimo de quem já tivesse
tendência para a luta. Eu não tinha nenhuma, fora das razões particulares;
estas, porém, eram agora maiores. Justamente
acabava de receber uma carta da tia de Maria Cora, dando-me notícias delas, e
recomendações da sobrinha, tudo com alguma generalidade e certa simpatia
verdadeira.
Fui a
Porto Alegre, alistei-me e marchei para a campanha. Não disse a meu respeito
nada que pudesse despertar a curiosidade de ninguém, mas era difícil encobrir a
minha condição, a minha origem, a minha viagem com o plano de ir combater a
revolução. Fez-se logo uma lenda a meu respeito. Eu era um republicano antigo,
riquíssimo, entusiasta, disposto a dar pela República mil vidas, se as tivesse,
e resoluto a não poupar a única. Deixei dizer isto e o mais, e fui. Como eu
indagasse das forças revolucionárias com que estaria João da Fonseca, alguém
quis ver nisto uma razão de ódio pessoal; também não faltou quem me supusesse
espião dos rebeldes, que ia por-me em comunicação secreta com aquele. Pessoas
que sabiam das relações dele com a Prazeres imaginavam que era um antigo amante
desta que se queria vingar dos amores dele. Todas aquelas suposições morreram,
para só ficar a do meu entusiasmo político; a da minha espionagem ia-me
prejudicando; felizmente, não passou de duas cabeças e de uma noite.
Levava
comigo um retrato de Maria Cora; alcançara-o dela mesma, uma noite, pouco antes
do meu embarque, com uma pequena dedicatória cerimoniosa. Já disse que estava
em pleno romantismo; dado o primeiro passo, os outros vieram de si mesmos. E
agora juntai a isto o amor-próprio, e compreendereis que de simples cidadão
indiferente da capital saísse um guerreiro áspero da campanha rio-grandense.
Nem por
isso conto combates, nem escrevo para falar da revolução, que não teve nada
comigo, por si mesma, senão pela ocasião que me dava, e por algum golpe que lhe
desfechei na estreita área da minha ação. João da Fonseca era o meu rebelde. Depois de haver tomado parte no
combate de Sarandi e Cochila Negra, ouvi que o marido de Maria Cora fora morto,
não sei em que recontro; mais tarde deram-me a notícia de estar com as forças
de Gumercindo, e também que fora feito prisioneiro e seguira para Porto Alegre;
mas ainda isto não era verdade. Disperso, com dois camaradas, encontrei um dia
um regimento legal que ia em defesa da Encruzilhada, investida ultimamente por
uma força dos federalistas; apresentei-me ao comandante e segui. Aí soube que
João da Fonseca estava entre essa força; deram-me todos os sinais dele,
contaram-me a história dos amores e a separação da mulher.
A idéia de
matá-lo no turbilhão de um combate tinha algo fantástico; nem eu sabia se tais duelos eram possíveis em
semelhantes ocasiões, quando a força de cada homem tem de somar com a de toda
uma força única e obediente a uma só direção. Também me pareceu, mais de uma
vez, que ia cometer um crime pessoal, e a sensação que isto me dava, podeis
crer que não era leve nem doce; mas a figura de Maria Cora abraçava-me e
absolvia com uma bênção de felicidades. Atirei-me de vez. Não conhecia João da Fonseca;
além dos sinais que me haviam dado,
tinha de memória um retrato dele que vira no Engenho Velho;
se as feições não estivessem mudadas, era
provável que eu o reconhecesse entre
muitos. Mas, ainda uma vez, seria este encontro possível? Os combates em que eu
entrara, já me faziam desconfiar que não era fácil, ao menos.
se as feições não estivessem mudadas, era
provável que eu o reconhecesse entre
muitos. Mas, ainda uma vez, seria este encontro possível? Os combates em que eu
entrara, já me faziam desconfiar que não era fácil, ao menos.
Não foi
fácil nem breve. No combate da Encruzilhada creio que me houve com a necessária
intrepidez e disciplina, e devo aqui notar que eu me ia acostumando à vida da
guerra civil. Os ódios que ouvia eram forças reais. De um lado e outro batiam-se com ardor, e a paixão que eu sentia
nos meus ia-se pegando em mim. Já lera o meu nome em uma ordem do dia, e de
viva voz recebera louvores, que comigo
não pude deixar de achar justos, e ainda agora tais os declaro. Mas vamos ao
principal, que é acabar com isto.
Naquele
combate achei-me um tanto como o herói de Stendhal na batalha de Waterloo; a
diferença é que o espaço foi menor. Por isso, e também porque não me quero
deter em coisas de recordação fácil, direi somente que tive ocasião de matar em
pessoa a João da Fonseca. Verdade é que escapei de ser morto por ele. Ainda
agora trago na testa a cicatriz que ele me deixou. O combate entre nós foi
curto. Se não parecesse romanesco demais, eu diria que João da Fonseca adivinhara
o motivo e previra o resultado da ação.
Poucos
minutos depois da luta pessoal, a um canto da vila, João da Fonseca caiu prostrado.
Quis ainda lutar, e certamente lutou um pouco; eu é que não consenti na
desforra, que podia ser a minha derrota, se é que raciocinei; creio que não. Tudo
o que fiz foi cego pelo sangue em que o deixara banhado, e surdo pelo clamor e
tumulto do combate. Matava-se, gritava-se, vencia-se; em pouco ficamos senhores do campo.
Quando vi
que João da Fonseca morrera deveras, voltei ao combate por instantes; a minha
ebriedade cessara um pouco, e os motivos primários tornaram a dominar-me, como
se fossem únicos. A figura de Maria Cora apareceu-me como um sorriso de
aprovação e perdão; tudo foi rápido.
Haveis de
ter lido que ali se apreenderam três ou quatro mulheres. Uma destas era a
Prazeres. Quando, acabado tudo, a Prazeres viu o cadáver do amante, fez uma cena que me encheu de ódio e de inveja.
Pegou em si e deitou-se a abraçá-lo; as lágrimas que verteu, as palavras que
disse, fizeram rir a uns; a outros, se não enterneceram, deram algum sentimento
de admiração. Eu, como digo, achei-me tomado de inveja e ódio, mas também esse
duplo sentimento desapareceu para não ficar nem admiração; acabei rindo. Prazeres,
depois de honrar com dor a morte do amante, ficou sendo a federalista que já
era; não vestia farda, como dissera ao desafiar João da Fonseca, quis ser
prisioneira com os rebeldes e seguir com eles.
É claro
que não deixei logo as forças, bati-me ainda algumas vezes, mas a razão principal dominou, e abri mão das armas.
Durante o tempo em que estive alistado, só escrevi duas cartas a Maria Cora,
uma pouco depois de encetar aquela vida nova, — outra depois do combate da
Encruzilhada; nesta não lhe contei nada do marido, nem da morte, nem sequer que
o vira. Unicamente anunciei que era provável acabasse brevemente a guerra
civil. Em nenhuma das duas fiz a menor alusão aos meus sentimentos nem ao
motivo do meu ato; entretanto, para quem soubesse deles, a carta era
significativa. Maria Cora só respondeu à primeira das cartas, com serenidade,
mas não com isenção. Percebia-se, — ou percebia-o eu, — que, não prometendo
nada, tudo agradecia, e, quando menos, admirava. Gratidão e admiração podiam
encaminhá-la ao amor.
Ainda não
disse, — e não sei como diga este ponto, — que na Encruzilhada, depois da morte
de João da Fonseca, tentei degolá-lo; mas nem queria fazê-lo, nem realmente o
fiz. O meu objeto era ainda outro e romanesco. Perdoa-me tu, realista sincero, há
nisto também um pouco de realidade, e foi o que pratiquei,
de acordo com o estado da minha alma: o que
fiz foi cortar-lhe um molho de cabelos. Era o recibo da morte que eu levaria à
viúva.
de acordo com o estado da minha alma: o que
fiz foi cortar-lhe um molho de cabelos. Era o recibo da morte que eu levaria à
viúva.
CAPÍTULO VI
Quando
voltei ao Rio de Janeiro, tinham já passado muitos meses do combate da Encruzilhada. O meu nome figurou não só em partes oficiais como em
telegramas e correspondências, por mais
que eu buscasse esquivar-me ao ruído e desaparecer na sombra. Recebi cartas de
felicitações e de indagações. Não vim logo para o Rio de Janeiro, note-se;
podia ter aqui alguma festa; preferi ficar em S. Paulo. Um dia, sem ser esperado, meti-me na
estrada de ferro e entrei na cidade. Fui
para a casa de pensão do Catete.
Não
procurei logo Maria Cora. Pareceu-me até mais acertado que a notícia da minha
vinda lhe chegasse pelos jornais. Não tinha pessoa que lhe falasse; vexava-me
ir eu mesmo a alguma redação contar o meu regresso do Rio Grande; não era
passageiro de mar, cujo nome viesse em lista nas folhas públicas. Passaram dois
dias; no terceiro, abrindo uma destas, dei com o meu nome. Dizia-se ali que
viera de S. Paulo e estivera nas lutas do Rio Grande, citavam-se os combates,
tudo com adjetivos de louvor; enfim, que voltava à mesma pensão do Catete. Como
eu só contara alguma coisa ao dono da casa, podia ser ele o autor das notas;
disse-me que não. Entrei a receber visitas pessoais. Todas queriam saber tudo;
eu pouco mais disse que nada.
Entre os
cartões, recebi dois de Maria Cora e da tia, com palavras de boas-vindas. Não
era preciso mais; restava-me ir agradecer-lhes, e dispus-me a isso; mas, no
próprio dia em que resolvi ir ao Engenho Velho, tive uma sensação de... De quê?
Expliquem, se podem, o acanhamento que me deu a lembrança do marido de Maria
Cora, morto às minhas mãos. A sensação que ia ter diante dela encheu-me
inteiramente. Sabendo-se qual foi o móvel principal da minha ação militar, mal
se compreende aquela hesitação; mas, se considerares que, por mais que me
defendesse do marido e o matasse para não morrer, ele era sempre o marido,
terás entendido o mal-estar que me fez adiar a visita. Afinal, peguei em mim e
fui à casa dela.
Maria Cora
estava de luto. Recebeu-me com bondade, e repetiu-me, como a tia, as
felicitações escritas. Falamos da guerra civil, dos costumes do Rio Grande, um pouco
de política, e mais nada. Não se disse de João da Fonseca. Ao sair de lá, perguntei a mim mesmo se Maria Cora estaria
disposta a casar comigo.
“Não me
parece que recuse, embora não lhe ache maneiras especiais. Creio até que está
menos afável que dantes... Terá mudado?”
Pensei
assim, vagamente. Atribuí a alteração ao estado moral da viuvez; era natural. E
continuei a freqüentá-la, disposto a deixar passar a primeira fase do luto para
lhe pedir formalmente a mão. Não tinha que fazer declarações novas; ela sabia
tudo. Continuou a receber-me bem. Nenhuma pergunta me fez sobre o marido, a tia
também não, e da própria revolução não se falou mais. Pela minha parte,
tornando à situação anterior, busquei não perder tempo, fiz-me pretendente com
todas as maneiras do ofício. Um dia, perguntei-lhe se pensava em tornar ao Rio
Grande.
— Por ora,
não.
— Mas irá?
— É
possível; não tenho plano nem prazo marcado; é possível.

Eu, depois
de algum silêncio, durante o qual olhava interrogativamente para ela, acabei
por inquirir se antes de ir, caso fosse, não alteraria nada em sua vida.
— A minha
vida está tão alterada...
Não me
entendera; foi o que supus. Tratei de me explicar melhor, e escrevi uma carta
em que lhe lembrava a entrega e a recusa da primeira e lhe pedia francamente a mão. Entreguei a carta, dois dias depois, com estas
palavras:
— Desta
vez não recusará ler-me.
Não
recusou, aceitou a carta. Foi à saída, à porta da sala. Creio até que lhe vi certa comoção de bom agouro. Não me respondeu por escrito, como
esperei. Passados três dias, estava tão
ansioso que resolvi ir ao Engenho Velho. Em caminho imaginei tudo; que me
recusasse, que me aceitasse, que me adiasse, e já me contentava com a última
hipótese, se não houvesse de ser a segunda. Não a achei em casa; tinha ido
passar alguns dias na Tijuca. Saí de lá aborrecido. Pareceu-me que não queria
absolutamente casar; mas então era mais simples dizê-lo ou escrevê-lo. Esta
consideração trouxe-me esperanças novas.
Tinha
ainda presentes as palavras que me dissera, quando me devolveu a primeira
carta, e eu lhe falei da minha paixão: “Suponha que eu o amo; nem por isso
deixo de ser uma senhora casada”. Era claro que então gostava de mim, e agora
mesmo não havia razão decisiva para crer o contrário, embora a aparência fosse
um tanto fria. Ultimamente, entrei a crer que ainda gostava, um pouco por vaidade, um pouco por simpatia, e não sei se
por gratidão também; tive alguns vestígios disso. Não obstante, não me deu
resposta à segunda carta. Ao voltar da
Tijuca, vinha menos expansiva, acaso mais triste. Tive eu mesmo de lhe falar na matéria; a resposta foi que, por ora,
estava disposta a não casar.
— Mas um
dia...? perguntei depois de algum silêncio.
— Estarei
velha.
— Mas
então... será muito tarde?
— Meu
marido pode não estar morto.
Espantou-me
esta objeção.
— Mas a
senhora está de luto.
— Tal foi
a notícia que li e me deram; pode não ser exata. Tenho visto desmentir outras
que se reputavam certas.
— Quer
certeza absoluta? perguntei. Eu posso dá-la.
Maria Cora
empalideceu. Certeza. Certeza de quê? Queria que lhe contasse tudo, mas tudo. A
situação era tão penosa para mim que não hesitei mais, e, depois de lhe dizer
que era intenção minha não lhe contar nada, como não contara a ninguém, ia
fazê-lo, unicamente para obedecer à intimação. E referi o combate, as suas
fases todas, os riscos, as palavras, finalmente a morte de João da Fonseca. A
ânsia com que me ouviu foi grande, e não menor o abatimento final. Ainda assim,
dominou-se, e perguntou-me:
— Jura que
me não está enganando?
— Para que
a enganar? O que tenho feito é bastante para provar que sou sincero. Amanhã,
trago-lhe outra prova, se é preciso mais alguma.
Levei-lhe
os cabelos que cortara ao cadáver. Contei-lhe, — e confesso que o meu fim foi irritá-la contra a memória do defunto, — contei-lhe o
desespero da Prazeres. Descrevi essa mulher e as suas lágrimas. Maria Cora
ouviu-me com os olhos grandes e perdidos; estava ainda com ciúmes. Quando lhe
mostrei os cabelos do marido, atirou-se a eles, recebeu-os, beijou-os,
chorando, chorando, chorando... Entendi melhor sair e sair para sempre. Dias
depois recebi a resposta à minha carta; recusava
casar.
Na resposta
havia uma palavra que é a única razão de escrever esta narrativa: “Compreende
que eu não podia aceitar a mão do homem que, embora lealmente, matou meu marido”. Comparei-a àquela outra que me
dissera antes, quando eu me propunha sair a combate, matá-lo e voltar: “Não
creio que ninguém me ame com tal força”. E foi essa palavra que me levou à
guerra. Maria Cora vive agora reclusa; de costume manda dizer uma missa por
alma do marido, no aniversário do combate da Encruzilhada. Nunca mais a vi; e,
coisa menos difícil, nunca mais esqueci
dar corda ao relógio.
---
Nota:
Texto-fonte: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar,
Rio de Janeiro, 1994. Publicado originalmente pela Editora Garnier, Rio de
Janeiro, 1906. Disponível digitalmente no site: Domínio Público
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