
QUESTÃO DE VAIDADE
CAPÍTULO PRIMEIRO
Suponha o
leitor que somos conhecidos velhos. Estamos ambos entre as quatro paredes de
uma sala; o leitor sentado em uma cadeira com as pernas sobre a mesa, à moda americana, eu a
fio comprido em uma rede do Pará, que se
balouça voluptuosamente, à moda brasileira, ambos enchendo o ar de leves e
caprichosas fumaças, à moda de toda gente.
Imagine
mais que é noite. A janela aberta deixa entrar as brisas aromáticas do jardim, por entre cujos arbustos
se descobre a lua surgindo em um límpido horizonte.
Sobre a
mesa ferve em aparelho próprio uma pouca de água para fazer uma tintura de chá. Não sei se o leitor adora
como eu a deliciosa folha da Índia. Se
não, pode mandar vir café e fazer com a mesma água a bebida de sua predileção.
Não se
obriga, nem se constrange ninguém nestas práticas imaginadas. Se estivéssemos na vida real, eu começaria por
querer até privar-me do chá, e por sua parte o leitor dispensava o café, para
ser do meu agrado. Felizmente não é
assim.
Ora, como
é noite, e como não hajam cuidados para nós, temos ambos percorrido toda a planície do passado,
apanhando a folha do arbusto que secou ou a ruína do edifício que abateu.
Do passado
vamos ao presente, e as nossas mais íntimas confidências se trocam com aquela
abundância de coração própria dos moços, dos namorados e dos poetas.
Finalmente,
nem o futuro nos escapa. Com o mágico pincel da imaginação traçamos e colorimos
os quadros mais grandiosos, aos quais damos as cores de nossas esperanças e da
nossa confiança.
Suponha o
leitor que temos feito tudo isto e que nos apercebemos de que, ao terminar a nossa viagem pelo tempo, é
já meia-noite. Seriam horas de dormir se
tivéssemos sono, mas cada qual de nós, avivado o espírito pela conversação,
mais e mais deseja estar acordado.
Então, o
leitor, que é perspicaz e apto para sofrer uma narrativa de princípio a fim, descobre
que eu também me entrego aos contos e novelas,
e pede que lhe forje alguma coisa do gênero.
E eu para
ir mais ao encontro dos desejos do leitor imaginoso, não lhe forjo nada, alinhavo alguns episódios de uma
história que sei, história verdadeira, cheia de interesse e de vida. E para
melhor convencer o meu leitor vou tirar de uma gaveta algumas cartas em papel amarelado,
e antes de começar a narrativa, leio-as, para orientá-lo no que lhe contar.
O leitor
arranja as suas pernas, muda de charuto, e tira da algibeira um lenço para o
caso de ser preciso derramar algumas lágrimas. E, feito isto, ouve as minhas
cartas e a minha narrativa.
Suponha o
leitor tudo isto e tome as páginas que vai ler como uma conversa à noite, sem
pretensão nem desejo de publicidade.
CAPÍTULO II
EDUARDO AO SEU AMIGO PEDRO ELOY
“Meu amigo,
“Acendo duas
velas para
escrever-te. É
como se eu
confiasse diante
de um altar as
minhas penas e
as minhas
felicidades. Tens
sido para mim o
santo milagroso
por excelência;
nada desejo que
por influxo teu
não seja
cumprido. E mais
ainda: nas
minhas
atribulações é a
tua palavra que
me sustenta,
como a voz da
verdade e da
justiça. Não te
admires, pois, da
precaução que
tomei de iluminar
este papel como o
faria à pedra de
um altar.
“Ora, ainda assim
não é tanto ao
santo, como ao
filósofo, que eu
me dirijo desta
vez. Talvez
amanhã te vá
pedir
consolações, mas
agora o que
desejo é a
solução de um
fenômeno moral.
“Sabes do meu
amor por Maria
Luiza, a
interessante
viuvinha que eu
encontrei há dois
meses e a quem
parece que
inspirei algum
amor. Pouco falta
para que este
amor seja
coroado de um
feliz sucesso,
substituindo eu o
finado marido,
que, seja dito
neste papel,
parece que era
suficientemente
prosaico.
“Quando te
comuniquei esta
paixão mandaste-me
bons conselhos de
prudência que eu
li com a maior
veneração. Dizias
que me não fosse
enganar e tomar
por amor aquilo
que não passava
de capricho.
Acrescentavas
que a tua dúvida
nascia dos termos
de minha carta.
“Pesei as tuas
palavras e graveias
na memória. O
resultado foi que
estavas em puro
engano. Eu
amava deveras
Maria Luiza.
“Mas vamos ao
fenômeno. Antes
de entrar em
outros
pormenores,
insisto em dizer
que amava e amo
a viúva. Já te
disse qual a força
deste amor e o
que me havia
inspirado. Não
quero fazer
repetições inúteis,
mas insisto nesta
observação.
“Ouve agora o
que me acaba de
acontecer há oito
dias.
“Tinha eu ido
passar uma noite
em S. Domingos
em casa de dois
amigos. No dia
seguinte, seriam
cinco horas,
acordei
sobressaltado
com os
preparativos que
se faziam em
casa para ir aos
banhos de mar.
Os meus
hóspedes ficaram
pesarosos de me
terem acordado
tão cedo; mas eu,
que já de longa
data tenho a
minha aurora às
onze horas da
manhã, não fiquei
descontente de
poder fazer
exceção à regra.
“Vesti-me, como
eles, e fui com
eles à praia das
Flechas, lugar
usual dos banhos.
“Diversas
barracas se
levantavam na
praia, contra a
qual se quebrava
o mar agitado.
“Algumas moças
já andavam à flor
das águas,
enfronhadas nas
suas camisolas do
costume. Outras
iam saindo, de
quando em
quando, do
interior das
barracas e
tomando o
caminho do mar.
“Um ou outro
grito, soltado no
meio do susto
produzido por
uma vaga mais
alta ou mais
violenta, unia-se
ao sussurro do
mar.
“Os maridos, pais
e irmãos, que não
tomavam banho,
ou conversavam,
ou liam, ou
olhavam o ar,
enquanto as
graças humanas
brincavam com o
elemento a que
Shakespeare as
comparou.
“Armou-se a
nossa barraca e
prepararam-se os
meus
companheiros
para o banho. Eu
de mim,
confesso, preferia
ver as damas
banharem-se e rir
do susto pueril
que elas
tivessem.
Demais, apesar
de estarmos no
verão, fazia nesse
dia um tal frio
que me arredava
da água
cinqüenta léguas.
“Os meus
companheiros
apresentavam-me
o exemplo das
damas que tão
destemidamente
afrontavam o
tempo e o mar.
Mas eu, depois de
citar Shakespeare
no que tocava à
identidade das
mulheres e do
mar, citei-me a
mim próprio,
acrescentando
que a maioria das
senhoras que se
banhavam o
faziam por moda
ou por bom tom.
“Enfim, consegui
não ir à água.
Enquanto os
outros se
banhavam fui
sentar-me em
uma pedra que ali
estava perto.
Estive
contemplando as
banhistas alguns
minutos. Mas,
como sempre
acontece, os
meus olhos,
depois de correr
todo o grupo
voltavam aos
primeiros, e
assim via eu duas
ou três vezes as
mesmas caras,
graciosas ou
assustadiças,
arrecearem-se ou
brincarem com a
água revolta.
“Ora, uma dessas
figuras, a terceira
vez que passou
sob o meu olhar,
deteve-o alguns
minutos.
Estávamos a
certa distância
que me não
permitia
distinguir-lhe as
feições, mas
havia na
temeridade, na
graça, no recato
com que ela se
banhava, uma tal
diferença das
outras, que eu
não pude deixar
de examiná-la
com mais
interesse.
“Não podendo
distinguir-lhe,
como disse, as
feições, esperei
que ela estivesse
em terra para
procurar admirá-
la ou correr-me
de uma ilusão.
“Nisto estava,
quando a moça,
que parecia nada
temer e arredava-se
da praia mais
do que era
conveniente, foi
engolida por uma
vaga. Só
flutuavam à flor
d’água os longos
cabelos negros.
“Houve um grito,
um só, mas de
todos quantos se
achavam na praia
e presenciavam o
fato.
“Alguns dos
banhistas
dirigiam-se para o
lugar do desastre.
Mas estavam um
pouco longe. Eu
vi que a demora
era fatal.
Correndo pela
praia, atirei fora o
paletó e lancei-me
à água.
“Não te conto
todas as
peripécias desta
cena. Na praia, a
família da pobre
moça ajoelhara-se
involuntariamente
e todos pareciam
depender de mim.
“Ao cabo de
algum tempo
e de alguns esforços
salvei a moça.
“Avalia como fui
recebido pela
família.
Afagavam-na com
abraços e beijos.
“Voltando a si do
desmaio que
tivera, a moça foi
conduzida para
casa dentro de
um carro.
“O que motivara
a catástrofe não
foi a violência
com que a onda
se arremessara,
foi ter a pobre
moça desmaiado.
Uma vez
desmaiada, caiu e
não soube mais
de si.
“O pai da moça
obrigou-me a ir à
casa dele. Não
tive remédio.
Avisei os meus
companheiros e
parti.
“Trataram-me
muito bem.
Pediram-me que
voltasse lá
algumas vezes. A
moça não tirou as
minhas mãos de
entre as suas
nem os seus
olhos dos meus,
dizendo-me que a
mim devia a vida
e que eu era o
seu salvador.
“Voltei lá algumas
vezes. Trataram-me
sempre muito
bem. Mas que
pensas tu que me
aconteceu?
Aquela franca
alegria, aquela
gratidão tão
claramente
manifestada pela
moça, tudo isso
fez-me
apaixonado!
“Mas o
fenômeno?
perguntas tu. O
fenômeno é que,
se amo a esta,
não esqueci a
viúva. Amo a
viúva como
antes: o
fenômeno é que
amo as duas do
mesmo modo,
com o mesmo
ardor. Explica-me
isto.
“Estou de tal
modo, que não
posso pensar em
uma só, hei de
pensar em
ambas; sei o que
sofro, encolerizo-me
comigo mesmo.
“Que será isto?
Escreve-me
depressa, dá-me
a luz e o bálsamo
de que necessita
o teu amigo.”
“Eduardo T.B.”
A resposta
desta carta, escrita dois dias depois, é assim concebida:
PEDRO ELOY
AO SEU AMIGO EDUARDO
“Meu
amigo,
“Recebi a
tua carta, e desde o dia em que a li até hoje não tenho feito mais do que pensar no teu
fenômeno.
“Não é que
eu esteja convencido, como tu, de que é verdadeiramente um fenômeno. Pelo
contrário, vejo que o que
sentes é uma coisa muito natural.
“Insistes
em dizer que amas a viúva. Eu insisto em dizer que não a amas. E a prova está
nesta dualidade de amor, falsa e
impossível, verdadeiro erro de um espírito enfermo e de um coração indiscreto.
“Queres tu
saber o que existe na verdade? Existe um simples desejo, uma aspiração toda sensual,
comum nos rapazes da tua idade e de tua educação, mas imprópria de quem quer que compreenda a elevação e
castidade dos sentimentos.
“Pensas
que cortas toda a dificuldade pronunciando a palavra fenômeno? Repara, meu Eduardo, onde
vai dar a ampliação deste sofisma. Deste modo, todos os vícios se legitimam,
todos os desvios se aceitam.
“É
engraçada a história do banho e do desmaio no mar. Afigura-se-te que depois deste episódio
romanesco só se pode sentir amor, e concluis que estás apaixonado. E como uma
insaciável volúpia reúne em teu pensamento as duas mulheres em questão,
concluis que estás apaixonado por ambas.
“Ora,
sério. Admites em toda a sua pureza moral a reunião de dois amores? Pois o amor, isto é, a
mais
completa
fusão de duas almas, pode ter por objeto dois objetos?
“Reflete,
entra em ti mesmo, envergonha-te do erro em que estás. Vê bem que não amas nem a viúva,
nem a donzela. Amas a uma só criatura, és tu mesmo. É o amor dos sentimentos
que se pode dividir, que se divide, que se prostitui, que se desvaira.
“Se queres
uma explicação aí a tens; se queres um conselho, não perturbes a constância
dessas duas mulheres, a menos que não queiras a todo o transe ser ator
principal em um drama perigoso. — Adeus. Desculpa a franqueza; é a minha. Cá
fico para explicar-te quantos fenômenos
te apareçam e varrer-te da cabeça quantas idéias más o vento da maldade aí
depuser. Adeus”.
CAPÍTULO III
Eduardo
leu esta carta com avidez, e releu-a para compreendê-la melhor, visto ser a primeira leitura demasiado
rápida.
Quinze
minutos gastou nesta operação, e outros quinze em meditar as palavras do amigo
Pedro Eloy. No fim de meia hora, fechou a carta e guardou-a na gaveta da
secretária. Não estava convencido, estava abalado.
— Ora, por
fim de contas, pensava ele, Pedro Eloy não é um papa; pode enganar-se. É talvez
certo que se engane. Sou eu uma criança ou um ignorante? Não sinto eu o contrário do que
ele me escreve?
Fazendo
estas reflexões e outras no mesmo sentido, Eduardo vestiu-se e saiu.
Esquecia-me
dizer que Eduardo residia no Rio de Janeiro e Pedro Eloy em Petrópolis.
Eduardo
era um dos moços mais elegantes da sociedade fluminense. Era ao mesmo tempo um roué de
primeira força. Faltava-lhe o calção, o
sapato raso e os mil enfeites do tempo de Luís XV. Durante os primeiros anos das suas correrias amatórias
foi sempre remisso aos sentimentos de ordem elevada. Era vaidoso como um tolo e
tolo como um vaidoso. Acreditava todas
as mulheres mortas por ele, e algumas tiveram
a desgraça de o confirmarem nessa idéia.
Um dia,
levantou-se da cama
com a crença
original de estar apaixonado.
Tinha conversado na véspera com a viúva Maria Luiza, e no dia seguinte, como
tivesse sonhado com ela, julgou-se influenciado pelo deus do amor.
Feita a
descoberta, correu a todos os amigos para dar-lhes conta da novidade. Receberam-na a gargalhadas. Foi esse
o aguilhão maior para o espírito do nosso namorado. Declarou-se
irremissivelmente apaixonado e jurou por Júpiter, como faria Alcibíades, que se
havia de casar com Maria Luiza.
Depois de
muitos dias de uma corte continuada e crescente, conseguiu Eduardo fazer-se amado. Mas fez-se deveras.
Maria Luiza entregou-se toda àquele amor que a procurava na viuvez e achou da
parte de sua velha mãe o beneplácito necessário.
Estavam as
coisas neste pé quando se deu o episódio dos banhos de S. Domingos. Já havia
dois dias que Eduardo não via Maria Luiza, e nos dez dias que se seguiram ao
referido episódio apenas lá foi uma vez.
Saindo à
rua, lembrou-se Eduardo de que devia visitar a viúva, não se dispensando de visitar a donzela. A primeira
residia na Corte, devia ter a
preferência. Eduardo encaminhou-se para a Rua do Lavradio, onde morava Maria
Luísa.
No Rocio,
encontrou dois amigos.
— Por onde
andas tu? perguntou um deles.
— Eu sei!
— Ora,
este simulado Antony não nos anda a fazer crer que se apaixonou pela tal viúva?
acrescentou o outro amigo. É supor que comemos araras. Aquilo naturalmente é
alguma destas uniões morganáticas que
costumas contrair. Adeus, sê feliz!
— Zombem!
zombem! exclamou Eduardo. O que fariam se soubessem de outras coisas! Há um fenômeno.
— Há dois,
acudiu o primeiro que falara; é a paciência de cada um de nós em ouvir-te essas patranhas. Vai, vai!
Eduardo
despediu-se dos amigos e foi caminho. Estava contente de si. Produzia o efeito
que desejava. Era em não ser acreditado que estava a originalidade. Não é que ele estivesse
absolutamente fingindo. À força de dizer que amava, convenceu-se disso. Mas, a
convicção não era o amor.
Maria
Luiza estava em casa com sua mãe. Estavam ambas na sala. Maria Luiza tocava e
cantava ao piano. Ao subir os degraus do primeiro lanço da escada, chegaram aos ouvidos de
Eduardo as palavras daquela ária deliciosa da Favorita: Ó mio Fernando...
A vaidade
do rapaz era mais forte que o amor. Subindo as escadas dizia ele mentalmente: — Aquele mio Fernando quer dizer mio Eduardo.
Não quis
bater palmas. A porta estava entreaberta. Adiantou a cabeça e deu com os olhos na viúva e na velha. A
primeira não podia vê-lo. À velha, que logo o viu, fez Eduardo um sinal para
que se calasse. Quando Maria Luiza
terminou a ária, Eduardo bateu palmas e deu um bravo. Ela voltou-se e correu a recebê-lo.
Maria
Luiza era realmente digna de um grande amor, mas da parte de outro homem que
não fosse Eduardo. Amava-se nela tudo, até o amor que se lhe entornava dos olhos como bálsamo de
um vaso demasiado cheio. Adivinhava-se que o primeiro marido não conhecera
nunca o tesouro que possuíra e tomara aquela mulher pela razão que fez Abraão
tomar a escrava Agar.
Era de
estatura mediana. O rosto, antes cheio que magro, tinha a expressão dessas
almas enérgicas e violentas que não transigem nem se sujeitam senão com a condição de se lhes
dar em troca a felicidade e o bem. Os olhos eram castanhos como os cabelos.
Tinha o nariz ligeiramente aquilino. A
boca era das mais corretas e graciosas. Quanto ao resto do corpo,
adivinhavam-se, através de um vestido de seda cor de pérola, as formas mais
perfeitas que jamais sonhara Praxíteles.
Se Eduardo
não estivesse tão atento a ver o efeito que produzia, poderia enxergar, quando
Maria Luiza se levantou do piano, o mais delicado pé depois do da Cendrilon, meio
escondido em um sapatinho raso de cetim.
Concebe-se
que Maria Luiza, tal como a esbocei, inspirasse a Eduardo, não o amor, em que só ele acreditava, mas os
desejos de que falava Pedro Eloy. Para os espíritos medíocres é fácil confundir
uma e outra coisa. Diante de Maria Luiza, Eduardo perguntava a si mesmo se não era
realmente amor o que sentia pela viúva. Já sabemos qual era a resposta que ele
mesmo dava a esta íntima interrogação.
A mãe de
Maria Luiza era desses tipos de velhice respeitável e afável a um tempo, com quem, sem perder a devida
veneração, pode-se usar da mais franca familiaridade.
A recepção
de Eduardo foi a melhor possível. A velha cumprimentou-o como se fora seu filho. Maria Luiza, com uma
alegria a que se misturava certa dose de censura, disse-lhe:
— Graças a
Deus! Estivemos ansiosas por vê-lo. Mamãe dizia que já se havia esquecido de nós; mas eu, não querendo
acreditar isso, acreditei a verdade: melhores distrações que a nossa companhia
o detiveram de certo.
— Não há
tal, disse Eduardo aceitando a cadeira que a mãe de Maria Luiza lhe oferecia, e
sentando-se defronte desta. Estive meio adoentado. Quis sair, apesar de tudo,
mas o médico proibiu-me expressamente.
Uma
mentira desta natureza e neste sentido, mesmo que se conheça, é ouvida com
agrado. A humanidade é feita deste modo. Dispensa a verdade, uma vez que lhe preguem uma mentira
lisonjeira.
Em honra
de Maria Luiza, devo dizer que ela aceitou as palavras de Eduardo como se foram
textos evangélicos.
Eduardo,
tendo feito passar a invenção da moléstia, indagou da saúde e do bem estar das
duas senhoras. A conversa demorou-se meia hora sobre assuntos indiferentes ao
nosso. Finalmente, como viessem chamar a mãe de Maria Luiza, esta pôde ficar
uns quinze minutos a sós com Eduardo.
Houve um
instante de silêncio. Da parte de Maria Luiza era natural enleio. Da parte de
Eduardo, não era natural, mas era enleio; provinha da paixão que ele acreditava
em si.
A bela
viúva rompeu o silêncio:
— Sabe que
lamentei a sua falta?
— Chorou?
— Não
acredita, mas chorei.
— Devo
crer tamanha felicidade?
— Por que
não?
— Não
posso. Quando me lembro, em meus sonhos de ambição, que a Providência podia
dar-me a mais invejável das felicidades, ocorre-me sempre que era preciso merecê-la; e eu não
mereço, desta a que aludo, nem a décima
parte.
Trocou-se
entre ambos um olhar. Maria Luiza levantou-se. Eduardo seguiu-a com os olhos.
Ela foi a uma jarra e tirou duas pequenas rosas brancas.
— Quer
uma? perguntou a Eduardo, encaminhando-se para ele.
Eduardo
estendeu a mão para aceitar a flor. Tocaram-se os dedos, e nesse contacto Maria
Luiza estremeceu. Eduardo segurou a mão da viúva e levou-a à boca. Maria Luiza,
abandonando a mão a Eduardo, inclinou a cabeça
e deixou-se possuir da felicidade que aquele beijo, dado tão ardentemente, lhe fazia entrar no
coração.
Depois,
passado o primeiro enlevo, a viúva retirou a mão, foi para o piano, e começou a cantar com mais viva
expressão a ária da Favorita.
Eduardo
levantou-se e foi encostar-se ao piano.
Tinham
ambos os olhos confundidos, e nesse enlevo cantou Maria Luiza e Eduardo ouviu.
Às últimas
notas, entrou na sala a dona da casa.
— É uma
singular predileção a tua por esta ária, minha filha.
— É realmente
deliciosa, disse Eduardo.
— De
poucas coisas gosto tanto como disto, acrescentou Maria Luiza.
Eduardo,
depois de algumas palavras mais, declarou que ia sair.
- Já! disse a viúva.
— É
verdade, tenho uma visita para fazer.
— Não
janta conosco?
—
Desculpe, não posso.
— Ao
menos, virá tomar chá, não?
— Venho.
— Com
certeza?
— Com
certeza.
— Olhe,
não falte, acrescentou a velha, olhando com certa inteligência para a filha.
— Não
falto.
Eduardo
apertou a mão à velha e a Maria Luiza. Esta tinha os olhos rasos de lágrimas de
felicidade, de saudade, de amor, de tudo. Eduardo olhou para ela a última vez e
disse, procurando a expressão mais terna de sua voz:
— Até
logo!
— Até
logo! respondeu a moça.
Eduardo
saiu.
Maria
Luiza foi à janela vê-lo ainda. Depois, voltando para dentro, deitou-se aos braços de sua mãe.
— Amas-lo,
não, minha filha?
— Oh!
muito! muito!
— Pois eu
creio que ele também te ama. Juro-te que hão de ser felizes. Ele é só. Tu
podias ter obstáculo em mim, mas eu só desejo a tua felicidade.
CAPÍTULO IV
Deixando a
casa de Maria Luiza, Eduardo tomou um tílburi e mandou tocar para a ponte das barcas de S. Domingos.
Dentro de
dez minutos estava lá.
Apeou,
pagou o tílburi e entrou na estação. Ali esperou a primeira barca que devia partir e que era a das duas e
meia horas. Entre os passageiros que esperavam houve um que mereceu desde logo
a atenção e os cumprimentos de Eduardo.
Era um
homem de quarenta e cinco anos, baixo, meio gordo, fisionomia insinuante, destas que, mesmo
sérias, trazem impresso inconstante
sorriso.
Eduardo
dirigiu-se para ele e cumprimentou-o afetuosamente, dizendo:
— O Sr.
Almeida dá-me um grande prazer. Não contava desde já o prazer de
cumprimentá-lo.
— Por quê?
perguntou o indivíduo, dando a Eduardo lugar ao pé de si.
— Porque
só daqui a três quartos de hora contava estar em sua casa.
— Ah!
tanto melhor! tanto melhor!
— Toda a
família está boa?
— Tudo vai
indo, obrigado. Há quantos dias não vai lá?
— Creio
que há dois.
— Ainda
ontem Sara falou em seu nome. Ontem não, creio que foi hoje de manhã.
— Deveras?
perguntou Eduardo sem dissimular a alegria que lhe dava esta notícia.
Neste
momento chegava a barca, os dois tomaram passagem, e daí a três quartos de hora
estavam à porta da chácara de Almeida.
Sara, a
filha deste, o objeto do segundo amor de Eduardo, veio recebê- los à porta.
Mais atrás vieram o filho e o irmão de Almeida. Eduardo foi recebido por todos
com verdadeiro regozijo.
Em duas
palavras apresento a família de Almeida ao leitor.
Almeida,
na época em que se passam estes acontecimentos, vivia do que ganhara durante
uma vida laboriosa de longos anos. Não vivia com parcimônia, mas também não era pródigo. Tinha
a ciência da economia doméstica, mediante a qual sabia despender
utilmente, sem faltas nem sobras.
Era viúvo.
No fim de oito anos de casado, morrera-lhe a mulher, deixando dois filhos, um rapaz e uma menina.
A menina
era mais velha que o rapaz; contava este seis e aquela sete anos quando morreu
a mulher de Almeida.
Almeida
completou por si a educação tão zelosamente começada por sua mulher. Sara
cresceu sob os melhores auspícios. Aumentou em beleza e conservou até à idade de dezessete
anos a inocência e a graça da infância.
Era um bom coração em toda a pureza da palavra. Nenhuma nuvem negra perturbara o céu sempre
claro do seu espírito.
Quanto à
beleza física, imagine o leitor o que podia fazer contraste com a beleza da viúva Maria Luiza. Esta, como
disse já, acusava em suas feições uma
alma dada à violência das paixões, uma rara energia moral. Sara não era assim!
Parecia uma criatura de outro mundo, caída por engano no mundo dos Eduardos. Era um
alfenim, uma delicadeza que não parecia natural. Delgada e um tanto alta, olhos
negros, cabelos alourados, porte
senhoril sem altivez, elegante sem artifício, graciosa sem afetação: tal era
Sara.
Se a
compararmos à viúva, teremos, conforme a respectiva presença, a disposição do gênio de cada uma. Maria Luiza
amava como as italianas: era ardente, apaixonada, violenta. Sara amava como as
alemãs: era meiga, resignada,
sentimental.
Estas duas
mulheres diversas na índole, no gênio, talvez no coração, ligavam-se em um ponto: no amor por Eduardo,
em quem viam, cada uma pelo prisma do
seu espírito, o ideal sonhado em suas doces aspirações.
Disse
acima que, após Sara, tinham ido receber Eduardo um irmão e um filho de Almeida. Não têm estas duas
figuras máxima importância na nossa história, mas devo designá-las como partes
integrantes da família de uma das heroínas.
O tio de
Sara tinha por nome Silvério. Era um aposentado da atividade. Em moço, e até certa idade madura, fora
incansável trabalhador. Agora descansava à sombra da fortuna e da amizade
fraterna do pai de Sara.
Tinha sido
solicitador de causas, e deste emprego, exercido por longos anos, trouxera até
à velhice um espírito chicaneiro e discutidor. Era, além disso, uma inteligência acanhadíssima,
frívola, tola, rasteira. Dava-se à apreciação de quantas anedotas e dictérios
ouvia ou lia. Fazia a autópsia das
necessidades escritas em jornais com o mesmo espírito com que outrora redigia
um embargo ou uma assinação de dez dias.
Era
aturado, estimado mesmo, em virtude de sua velhice, de seu grau de parentesco e de algumas virtudes que tinha.
Um
espírito daquela natureza não podia fugir às seduções do jogo do xadrez, do
qual dizia, creio eu a divina Staël, que para jogo era demasiado sério, e para
negócio demasiado frívolo. Cito de memória.
Era, com
efeito, um grande jogador de xadrez o tio Silvério. Por desgraça, Eduardo não o
era menos, de modo que mal se anunciou a visita deste, correu Silvério para a
porta com os braços abertos.
O filho de
Almeida era um rapaz de dezesseis anos. Estudava direito em S. Paulo. Durante
os acontecimentos que estou narrando estava ele em férias no Rio de Janeiro.
A família
Almeida recebeu Eduardo, como disse, com o mais cordial acolhimento.
Parecia um
filho que chegava de longa viagem.
E para
aquela gente, que estremecia tanto a formosa Sara, não era um filho aquele que a
salvara da morte?
Enquanto
Eduardo e Almeida descansavam do pequeno caminho que tinham feito, tratou-se
dos preparativos do jantar. Sara ia e vinha com uma graça encantadora. Dizia duas palavras a
Eduardo, uma ao tio Silvério, duas a seu
pai, sempre com aquele recato e modéstia que tanto agradam quando são verdadeiros e tanto
enjoam quando são artificiais.
Na sala,
sobre a mesa, estava um livro aberto. Eduardo procurou ler o que era;
levantou-se e foi saciar a curiosidade. Era Paulo e Virgínia. Um lenço marcado com a firma de Sara, atirado
sobre as folhas abertas, para marcar a
página, indicava quem estivera lendo a obra-prima de Saint-Pierre.
Eduardo
pegou no livro e no lenço e foi sentar-se junto de uma janela. Sua vaidade impava de contente. Tinha diante
de si um coração virgem, completamente virgem; um coração que ainda podia ler Paulo e Virgínia. Amar, conquistar, possuir esta menina, era surpreender a flor no
botão; era ensinar o catecismo do amor, soletrar o credo do coração, a uma
ignorante, a uma pura, a uma ingênua. Que mais podia ambicionar o caprichoso
namorado?
Se alguma
das pessoas da família tivesse olhar mais perspicaz poderia de certo descobrir
no olhar e no sorriso com que Eduardo folheou o volume toda a satisfação de sua
alma egoísta.
Pedro
Eloy, esse com certeza adivinharia tudo e diria tudo quanto pensasse. De longe,
Eduardo podia desdenhar os conselhos prudentes do amigo, a quem chamava
filósofo e santo milagroso; mas, de perto, não seria assim. Pedro Eloy tinha, de fato, certo
ascendente sobre Eduardo, ao qual seria de maior proveito se lhes fosse
possível conviver.
Depois de
alguma espera, Sara mandou anunciar que o jantar se achava na mesa, e foi ela
mesma buscar Eduardo, o pai e o tio.
— Que está
lendo aí? perguntou ela a Eduardo, entrando na sala.
— Ah!
perdão! respondeu este. Foi uma ousadia de que me arrependo; mas este livro
aberto por suas mãos, lido por seus olhos, devia ter adquirido
uma virtude nova e eu quis aspirar-lha antes que outro o fizesse. Perdoa-me?
Almeida
sorriu-se ouvindo estas palavras de Eduardo; Sara tomou-lhe o livro docemente,
tocando com os seus dedos nos dele, e lançando-lhe um olhar
da mais franca
e pura satisfação; Silvério contentou-se em
tomar uma
pitada dizendo:
— E
contudo este moço joga bem o xadrez!
A palavra xadrez fez
estremecer Eduardo. Era o sinal de um perigo iminente. Todavia, como fino cavalheiro que
era, ofereceu o braço a Sara, e seguiu acompanhado de todos para a mesa do
jantar.
Até aquela
hora um só minuto não pudera falar a sós com Sara. Durante o jantar era
impossível. O jantar foi demorado, mais que de costume. Aproximou-se a noite. Finalmente
levantaram-se todos e foram dar um
passeio pelo jardim.
Aí, graças
à circunstância de dar o braço a Sara, pôde Eduardo falar-lhe mais livremente, apressando ou demorando o
passo, conforme as necessidades.
— Soube
que tem pensado em mim, disse Eduardo a Sara, caminhando ao longo de uma cerca
de roseiras. É verdade?
— Não sei,
respondeu a moça.
— Vejo que
é uma confirmação.
— Quem foi
o indiscreto?
— Foi seu
pai, mas é verdade?
— É sim;
creio que não faz mal.
— Mal? Oh!
nenhum! Fez a minha felicidade.
— Só em
pensar?
— Pensar é
interessar-se, interessar-se é... sabe o que é?
— Não sei,
respondeu Sara corando.
Eduardo
queria que a confissão viesse da moça. Esta, para disfarçar a sua perturbação,
voltou-se e falou ao pai acerca de algumas necessidades do jardim.
Daí a
cinco minutos a conversação entre Eduardo e Sara continuou.
— Sara...
A moça
estremeceu ouvindo este modo de falar.
Depois, erguendo os
olhos para Eduardo, pareceu dizer-lhe naturalmente:
continue!
— Sara,
continuou Eduardo, não posso, não quero, não devo ocultar- lhe por mais tempo o
sentimento que a sua beleza me inspirou. Amo-a, Sara. Amo-a muito, muito. Desde que eu tive a
ventura de salvá-la das ondas, senti que tinha achado o objeto dos meus sonhos.
O ideal da minha imaginação. Para ser completamente feliz, basta que o seu coração responda aos sentimentos do meu;
basta, para dizer-me desgraçado, a sua recusa ou a sua indiferença. Diga, Sara,
ama-me também?
A moça
estava embriagada ouvindo esta linguagem. Houve um silêncio em que ela se deleitava com a música das
palavras de Eduardo.
Este
repetiu a pergunta.
— Sim,
respondeu a moça, sim!
As duas
mãos se procuraram. Pararam um instante; tinham os olhos embebidos. Assim se
passou algum tempo, até que Silvério os foi chamar.
— Então,
que é isso? É o jogo do sério?
Os dois
voltaram à vida.
Caindo a
noite, voltaram todos para a casa. Eduardo ia despedir-se, quando lhe surgiu, armado de um tabuleiro de
xadrez, o tio Silvério. Não havia meio
de recusar, não já porque o exigisse a delicadeza, mas ainda porque Silvério
era dos tais que, em pedindo qualquer coisa, punha a gente num suplício.
Eduardo
viu-se obrigado a aceitar a partida de xadrez.
Para a
filha de Almeida era isto uma grande felicidade. A conversa do jardim decidira-lhe o coração. O que podia
haver de incerto naquela natureza fraca, indecisa, naquele espírito simples e ingênuo,
desaparecia diante dos sentimentos que as palavras de Eduardo despertaram. Até
então, a moça sentia alguma coisa que a arrastava para aquele homem, mas nem o
dizia, nem mesmo interrogava a si própria a razão do novo estado.
Agora,
tinha-se-lhe clareado o horizonte. Era amor, que sentia, e amor aqueles
que só as almas elevadas são capazes de sentir. O admirável instinto de mulher
dera-lhe o resto do que não pudera interpretar das palavras de Eduardo.
Quando
Eduardo declarou aceitar a partida de xadrez a moça sentiu que o coração lhe palpitava com mais força.
Ela própria foi dispor o necessário para o jogo, não sem levantar muitas vezes
os olhos para Eduardo, cujo olhar, pregado nela, exercia uma como fascinação.
Adivinha-se
o resto. Entre a paixão do jogo, dominante em Silvério, e os olhares instantes
de Sara, viu Eduardo correr as horas sem arredar pé. O jogo deu-se por terminado à meia-noite.
Apenas tinham jogado duas partidas, em
que Silvério ganhou sempre. Isto, porque ele não estava apaixonado, e Eduardo, se não o estava,
acreditava estar, o que não deixa de produzir algum efeito, como a moléstia
imaginária fazia Órgon conservar-se na cama.
Silvério
apertou afetuosamente a mão de Eduardo, prometendo-lhe ficar pronto para dar-lhe a desforra.
À
despedida, Sara, em quem já dominava mais o amor que a ingenuidade infantil,
colheu no jardim uma flor das roseiras loucas, ao pé das quais tivera a conversa com Eduardo, e
ofereceu-a.
Eduardo
aceitou, sorrindo a um remoque paternal do velho Almeida, que ainda não calculava o estado do coração de
sua filha.
Mas como
fosse saindo sem nada dizer, Sara fê-lo parar, e disse-lhe em voz alta, visto não poder ser de outro
modo:
— Eu
cuidava que me devia retribuir a dádiva com outra... com essa flor que traz aí
no peito.
Eduardo
olhou a casa do paletó, viu a rosa que lhe fora dada por Maria Luiza. Tirou a
flor e deu-lha.
Depois
saiu.
Na rua
ocorreu-lhe a lembrança que tinha prometido ir tomar chá com Maria Luiza. Lembrara-se dela algumas vezes em
casa de Almeida, mas a promessa do chá
varrera-se-lhe inteiramente da memória.
CAPÍTULO V
Nas cenas
que até aqui tenho esboçado, tentei mostrar a leviandade e a vaidade de um
homem que fazia jogo com as paixões e os sentimentos ingênuos de duas criaturas. Não há
inverossimilhança nos fatos, todos concordarão, mas também não há
inverossimilhança nos sentimentos de
Eduardo, atendendo-se a que era um espírito para o qual nada havia fora do culto da própria
personalidade.
Acreditando-se
sinceramente apaixonado e não podendo distinguir a natureza do amor e a
natureza dos desejos, Eduardo servia de algum modo aquele culto, armava à
incredulidade; mas o assombro da novidade, os comentários, a fé que começaria a
entrar nos espíritos e que se robusteceria quando ele pudesse passar do estado
de solteiro para o de casado, tudo isto eram os aguilhões com o que o seu amor-próprio
se sentia brioso e compelido a prosseguir na conquista.
Sara veio
complicar as coisas no que dizia respeito ao casamento de Eduardo; e por esse
lado afastou-o do alvo a que pretendia chegar; mas se o afastou, não foi senão para dar lugar
a nova e maior extravagância, essa do amor por duas mulheres, a donzela e a
viúva, na mesma intensidade e no mesmo grau.
Perguntará
o leitor como é que um homem de tão bom senso como Pedro Eloy parecia tão amigo de Eduardo. A
resposta está contida nas duas cartas
que eu já li. Pedro Eloy, com um olhar de filósofo, via que não era impossível
trazer Eduardo ao bom caminho. Os defeitos morais podem levar a conseqüências
grandes, mas com a austeridade da lição e da prática são suscetíveis de
desaparecer e tornar-se melhor o espírito
em que eles existem. Pedro Eloy tentava isto de longa data; e, como vemos, era
um santo e um filósofo. Tinha conseguido tudo quanto desejara? A este respeito o
procedimento de Eduardo desmente a submissão
afetada da carta. Que alguma coisa tivesse feito, acredita- se; mas não fez
tudo, nem muito. Vejamos agora como continuaram os dois episódios amorosos que Eduardo entretinha
com tanto cuidado.
Em casa de
Maria Luiza, no dia seguinte, foi Eduardo mal recebido. A viúva mostrava uma
frieza e uma indiferença que não eram mais do que os véus com que se cobriam o
despeito contido e a dor sufocada.
A promessa
não cumprida ligava-se a outras faltas de Eduardo, e para um coração amante, sobretudo para um coração
como o de Maria Luiza, não eram essas faltas facilmente desculpáveis.
Maria
Luiza sentia naquilo um desdém, um sintoma de resfriamento do amor, e
pressentia não sei que más novas para o futuro.
Eduardo
explicou-se como pôde. Alegou a doença de um amigo, acrescentando que pouco lhe
importaria perder o amigo por amor dela, mas que, instado por dois outros em
tom imperativo, tivera de ceder-lhes.
Maria
Luiza acreditou ou fingiu acreditar na desculpa. De um ou outro modo, é certo
que ainda derramou algumas lágrimas. Não sei que haja alguém que possa resistir às lágrimas de uma
mulher. Falo das lágrimas sinceras. É o que há mais poderoso para desarmar a
cólera ou comover o egoísmo. É como que um protesto de fraqueza; e resistir- lhes
não é de alma nobre, nem de consciência elevada.
As
lágrimas tiveram efeito, mas um efeito excepcional; faltavam a Eduardo as qualidades delicadas para apreciar
o valor de uma lágrima sincera. Era o
amor-próprio que se comprazia em ver chorar aqueles olhos e comover-se aquela alma. Seguiram-se
protestos descarados, velhos respeitos, sem sentimento nem valor.
Dizia
Maria Luiza, enxugando os olhos:
— Vejo que
me não ama; vejo que me não compreende. Ah! se me compreendesse e amasse...
A isto
respondeu Eduardo:
— O
quê?... Não a amo? Eu?! Não diga isso! mais que a vida... etc.
O leitor
conhece o resto.
Enfim, a
tempestade serenou. Despontou um sorriso nos lábios de Maria Luiza, como um
sinal de aliança. Eduardo mostrou-se satisfeito com o desenlace e disse:
— Vê? A
dor de a ver em lágrimas retinha as minhas próprias. A alegria é mais
expansiva; agora, que a vejo alegre e me perdoa, sou eu quem chora!
Este rasgo
tinha suas dificuldades; a maior era que chorar sem lágrimas não convencia, e
Eduardo tinha os olhos secos como os do leitor,
que ainda não teve, nesta história, motivo de chorar. Por isso tirou da
algibeira um lenço e levou aos olhos, conservando-se algum tempo nessa posição.
Foi
despertado por um pequeno grito de exclamação de Maria Luiza. Tirou, ou antes, foi-lhe tirado o lenço da
mão. Maria Luiza, depois de olhar para o
lenço, fitou os olhos em Eduardo, e perguntou-lhe:
— Quem é
esta Sara?
Eduardo
estremeceu, olhou para o lenço, depois para Maria Luiza, depois para o teto.
— É uma
prima.
— Nunca me
falou nela, disse Maria Luiza.
— Isso que
prova? É de uma prima. Fui ontem visitá-la e trouxe este lenço. Está com
ciúmes?
— Não,
respondeu a viúva.
E
entregou-lhe o lenço.
Como o
leitor adivinha, era o lenço de Sara, que marcava a página de Paulo e Virgínia.
Houve um
silêncio entre ambos.
Maria
Luiza refletia: — É bem possível que o lenço seja da prima; por que não?
Realmente, sou exigente demais. Ele não parece mentir. Por que havia de mentir?
Depois
levantou-se e disse sorrindo a Eduardo:
— Vou
tocar piano!
Eduardo
levantou-se e foi sentar-se ao pé do piano. Ela começou a preludiar e depois a
cantar aquela canção francesa tão conhecida e que parecia adequada à situação.
J’ai peur de croire en toi.
Pourtant, malgré moi-même,
Ah! je le sens, je t’aime,
Toi, toi,
Toi, le seul bien pour moi!
J’ai peur, car
dans mon coeur
Mon amère
souffrance,
Toujours dans ton
absence,
Vient flétrir mon bonheur!
Etc. etc.
Deixo ao
leitor calcular quanta paixão a bela viúva empregou na execução do canto. O
próprio Eduardo pareceu um tanto convencido.
Enfim, o
dia passou-se sem maior novidade no céu de amor de Maria Luiza. Dissipadas as primeiras dúvidas, Maria
Luiza sentia-se feliz como dantes.
Eduardo estava contente de si.
CAPÍTULO VI
Três meses
decorreram depois dos fatos que acabo de contar. Durante esse tempo houve a
reprodução das mesmas visitas, alternadamente a Maria Luiza e a Sara.
Nem uma
nem outra suspeitou nunca a felicidade de Eduardo. O episódio do lenço foi
esquecido pela viúva, em cujo coração o amor crescia tanto como no de Sara, sem
que entretanto o espírito de Eduardo se
apercebesse de que uma tal bigamia moral podia levar a sérias conseqüências.
Duas
vezes, no espaço dos três meses, Maria Luiza, em conversa com Eduardo, procurou
encetar o assunto do casamento. O silêncio de Eduardo parecia-lhe timidez e a coitadinha
cuidava adiantar alguma coisa iniciando uma conversação a esse respeito.
Enganara-se.
Eduardo,
mal pressentia que o espírito de Maria Luiza se voltava para a igreja, mudava
de assunto com tão rara habilidade que a própria moça não percebia a trama.
Das
apreensões às incertezas, das incertezas ao desânimo, Maria Luiza não podia atinar, nem com a natureza do amor
de Eduardo, nem com os fins de sua paixão.
Quanto a
Sara, sentia-se feliz e nada ousava indagar nem saber. Aquele amor eram as primícias do seu coração.
Julgava-se uma Virgínia e pensava ter encontrado o seu Paulo! A pobre menina
não tinha nem o tato nem o contato do mundo; o tato para conhecer o espírito de
Eduardo, o contato para saber da opinião que faziam dele. Vivia isolada, no
meio de sua família, julgando o resto do mundo pela vida que levava e pelos
afagos sinceros que recebia.
No fim do
tempo de que acima falei, em uma quinta-feira, preparava-se Eduardo para um
baile que dava o conselheiro C... Não sei por que motivo ou por que pretexto,
Sara devia ir, e Eduardo, cuja fome de amor
por Maria Luiza já era conhecida, queria, coram populo, mostrar a nova paixão ou, antes, a paixão concorrente da
menina Sara.
Preparava-se,
disse eu, mas não era bem isso, visto que eram apenas dez horas da manhã. Preparava-se para saborear
as delícias que a admiração e a inveja
lhe haviam de fornecer.
— Não há
dúvida, pensava ele, sou amado por aquelas duas mulheres. Ambas me querem; adoram-me ambas. Mas por que
motivo, eu, a quem tantas fortunas coube em sorte, estarei tão orgulhoso com o amor
destas mulheres? É que as amo? Não há dúvida, amo-as; estremeço-as do mesmo modo. Diga lá o filósofo
o que quiser, este duplo amor não é impossível; tanto não é, que existe. Oh! se
existe...
Eduardo
fazia estas reflexões contemplando os novelos de fumaça de um charuto havana. Tinha almoçado bem e fazia
o quilo com aquele descanso dos homens
que não têm cuidado no que há de ser a refeição seguinte. Estava em uma
completa embriaguez dos sentidos.
Naquelas e
em outras reflexões estava, quando o criado lhe trouxe uma carta que o correio
acabava de entregar.
Abriu-a e
leu-a rapidamente. Era de Pedro Eloy. Dizia o filósofo de Petrópolis:
“Meu caro
Eduardo,
“Resolvi
mandar-te novas minhas, já que não me mandas as tuas. Esperei o que podia
esperar. De duas uma: ou esqueceste o
velho amigo, ou continuas embriagado nessa fatal paixão dos sentidos, dupla, segundo dizes e eu acredito.
“Em
qualquer caso, interessa-me escrever-te.
“Ah! Quem
me dera ter-te
agora no meu chalet, preso, atado,
amordaçado, vendado, inofensivo, para descanso da humanidade e para a
felicidade do meu coração!
“Estou
certo que os meus conselhos, o meu exemplo e até o meu olhar bastariam para dar-te aquela
regra de conduta, própria dos homens que aspiram e têm o direito de aspirar.
“Mas,
enfim, deixemos lamúrias e falemos, conciso e preciso, do que importa saber.
“Vou
apostar que as tuas duas paixões estão extintas, como já estão extintas as
fogueiras que arderam no último São
João. Há de ser assim. É de natureza desses assomos sensuais irem tão súbito como aparecem.
“Se não é
assim, deixa que te considere o mais infeliz dos homens. Dirás que não é assim que te
parece. Com efeito, aos espíritos jovens, mais ou menos gastos, o futuro é nada, o presente é tudo. Não lhes
falem do que pode ser conseqüência dos atos de hoje. O que desejam é a satisfação dos prazeres, a realização dos
caprichos, sem cuidar no desenlace das coisas, nem na lógica forçada do crime.
“Escrevi a
palavra crime, e não foi por engano. É preciso dizer-te a verdade nua e crua.
Ocultá-la, é ser de algum modo cúmplice
nos teus atos, e eu não quero para mim semelhante
papel.
“Dizes que
amas a essas duas mulheres. Acreditem ou não acreditem, é certo que lhes fazes
compreender a tua paixão. Supõe que elas te acreditem, e, por tuas maneiras e
graças, consegues convencê-las, e mais, fazeres-te
amado.
“O que
resulta daqui? Resulta não uma iludida, mas duas; porque, não amando nenhuma, e tendo a
tua paixão mui
estreito limite, ambas se acham despojadas das ilusões do futuro e da fé que as
alimentava.
“Que
acontecerá? Qual será a conseqüência desse desencanto? Sabes tu a profundeza das duas
almas, a quem iludes? Sabes de que serão capazes? Pressentes o fogo em que vais
queimando as mãos?
“Falo-te
uma linguagem em vez de outra; mas é a única que podes ouvir agora. A que eu
devera falar era a linguagem do dever; em vez de indicar-te as conseqüências dos teus atos, eu devera dizer simplesmente que os teus
atos eram criminosos diante da moral
eterna. Mas far-me-ia ouvir?
“Se, em
vez dos magníficos cabelos pretos que me adornam a cabeça, e dos olhos
vivíssimos com que neste
momento
olho para este papel, eu tivesse honradas cãs e olhos moribundos, sei o que dirias ao ler esta
carta. Sou moço, como tu; sou apto, como tu, para as paixões; mas há uma diferença: eu as domino, porque as
paixões não são invencíveis, e só uma moral interesseira e egoísta pode dá-las como tais. Tenho, portanto, além
do meu conselho, o meu exemplo.
“Olha, por
que não vens passar uns dias comigo? Eu te prometo que começarei a cura do modo
mais suave.
“Se não
vieres, sou eu que vou, mas conforme a tua resposta. E repara bem: comigo é
inútil o disfarce. Falta-
te o
talento de iludir a homens experimentados. Se mentires, eu cá sei como te hei
de ler.
“Em
qualquer caso, escreve-me: terei ao menos o prazer de ver letras de um amigo.
“Ah! se
compreendesses bem o valor desta palavra!
“Adeus. Sê
prudente. O Espírito Santo te ilumine.
Pedro
Eloy.”
O tom
decisivo, a linguagem nua desta carta não convenceram Eduardo. Não direi que o
não abalassem. Custou-lhe engolir algumas expressões duras de Pedro Eloy. Mas o
que era aquilo senão o que ele próprio
pedira?
Eduardo
pensou na resposta. Devia negar ou dizer a verdade? A prevenção de Pedro Eloy
quanto à veracidade dos fatos indicara claramente que era inútil a mentira. Não
havia senão isto: ou dizer a verdade ou
não escrever. Eduardo refletiu alguns minutos; resolveu escrever dizendo a
verdade, porém mais tarde.
Deitou a
carta na secretária, e ia sair quando lhe foi anunciada a visita de Silvério.
Mandou
entrar e daí a pouco o valente jogador de xadrez aparecia à porta, com ar
risonho e gesto afetuoso.
Era a
primeira vez que Silvério visitava Eduardo. Por isso, levou longos minutos a examinar e admirar a casa e a mobília,
não se escondendo para dizer o que achava de mais gosto ou de mais delicado.
— Isto é
propriamente uma casa de solteiro, dizia ele; mas, ainda casando, não sei que
haja muita mudança a fazer. Basta substituir estes quadros...
— Que
quadros? perguntou Eduardo.
— Estes,
respondeu Silvério apontando para umas gravuras que pendiam na parede,
representando cópias de várias estátuas célebres.
— Não me
dirá por que, Sr. Silvério? perguntou Eduardo, atirando-se a uma cadeira de
junco.
— Não são
próprias, respondeu modestamente o antigo solicitador.
— Mas sabe
o que representam esses quadros?
— Pois não
estou vendo?
Eduardo
contentou-se em sorrir.
—
Substituídos os quadros, creio que não há mais nada, continuou Silvério. Ah!... sim, ainda há. É retirar esta
caixa de fumo, estes cachimbos, estes
charutos, enfim tudo quanto diz respeito ao vício de fumar.
— Isto é,
se eu casar devo renunciar às obras-primas da arte e às
obras-primas
da indústria.
— Eu lhe
digo. Sara não gosta de fumo...
— Sara!
disse Eduardo, levantando-se da cadeira.
— Ah! lá
pronunciei o nome... Não precisa vexar-se, maganão; já sabemos das suas
artes... Fez-se amado!... Oh! e muito! Pois é assim! Ela não gosta de fumo, não gosta nada, mesmo
nada, nada!
Eduardo
estava espantado com as palavras de Silvério. Não atinava ainda com o fim daquilo. Viria sondá-lo? Viria
repreendê-lo? Na dúvida, sentou-se vagarosamente na mesma cadeira e esperou que
o ex-solicitador continuasse.
Silvério
puxou outra cadeira e sentou-se defronte de Eduardo.
— Pois,
meu caro Eduardo, é como lhe digo. Estão sabidas as suas travessuras. Sei que se amam com fervor e
creio que só um receio pueril e inexplicável tem retardado, de sua parte, um
pedido que só pode ser aceito com o maior alvoroço.
Eduardo,
ouvindo estas palavras, calculou o pior; calculou que Silvério era comissário do pai de Sara. Em tal caso,
cumpria-lhe responder de modo que nada sacrificasse. Ia falar, mas Silvério
continuou:
— Não
cuide, disse ele, que venho aqui por inspiração de terceiro. Venho por minha
própria resolução. Mal soube do fato, corri a procurá-lo.
— E como
soube? perguntou Eduardo.
— Muito
simplesmente, por boca de Sara.
— Ah! ela
contou...
— Contou
tudo a mim e ao pai. Oh! é um anjo aquela menina. Se visse a simplicidade com
que ela referiu os episódios do namoro, a franqueza com que se exprimiu no que tocava à paixão de
que estava dominada, finalmente a
sinceridade com que acreditava no seu amor! Era de fazer verter lágrimas... Oh!
é um anjo... Ora diga-me; ter uma sobrinha assim não é uma ventura? E ter, além
disso, um sobrinho como o senhor, não é uma bem-aventurança? Que belos dias não
passaremos! Ela reclinada em seu ombro, e nós dois, em face um do outro,
lutando palmo a palmo, peão a peão, uma daquelas partidas que de um simples paisano se faz um general consumado!
Eduardo
sorriu-se a estas palavras de Silvério. Depois, procurando dar à sua voz alguma
comoção, respondeu:
— É
verdade que eu amo sua sobrinha. Era impossível vê-la sem amá-la. Contudo, foi-me
difícil declarar-lhe a minha paixão. Poderia parecer a exigência de uma paga de
um serviço que eu fiz como faria a outra
qualquer
pessoa.
— Oh!...
interrompeu Silvério.
Eduardo
continuou:
— Amo-a,
sim, e toda a minha ventura seria poder chamá-la minha
mulher.
— Mas isso
é o que há de mais fácil.
— Sei. Se
até agora não tenho dado um passo para isto, é porque espero que se ultimem certos negócios...
— Mas que
negócios?
— Certos
negócios... Não está longe, posso afiançar-lhe, e nem eu deixaria passar uma hora, apenas, sem munir-me
do competente consentimento dela, e do
pai. Creio que já tenho o seu.
— Tem o de
todos, disse Silvério em voz de Estentor.
— Muito
bem! Vejo que a minha felicidade é completa!
— Pois,
senhor, não sei que negócios sejam esses, mas creio que se não dependesse disso
a decisão, já há muito estaria a menina pedida e concluído o casamento.
— Ah! com
certeza!
— Não sabe
que mulher leva...
— Sei.
— É um
serafim em alma e corpo.
Aqui
começou uma ode à beleza e à candura de Sara, perfeitamente dividida em
estrofes, antístrofes e epodos. Meia hora depois, Silvério saia de casa de
Eduardo, depois de abraçá-lo e instar com ele para que não deixasse passar a ocasião de uma fortuna.
E mal saía
o ex-solicitador, entrava um moleque de Maria Luiza com uma cartinha para
Eduardo. Dizia a cartinha:
“Eduardo,
— vou ao baile do conselheiro C... Disseste-me que estavas convidado. Não
faltes...
Tua Maria
Luiza”
Eduardo
ficou alguns momentos sem pensar coisa alguma. Depois, relendo o bilhete, pôde refletir sobre o caso.
As duas mulheres iam achar-se em
presença. Poderiam não saber nada uma da outra, mas era possível que um nada lhes derramasse a luz
no espírito. Como evitá-lo?
Eduardo
pensou em não ir ao baile; mas, além do resultado que isso trazia, ocorreu-lhe
que sua presença era até necessária, visto ser já conhecido o seu amor por
Maria Luiza e por Sara.
Não
comparecer ao baile era fazer supor que a afeição por aquelas duas mulheres,
descendo à condição dos afetos comuns, tinha acabado como acabam os afetos comuns.
E depois,
se alguma coisa pudesse acontecer, não era melhor que ele lá estivesse para desfazer uma impressão má ou
desmentir uma suspeita?
Tais
razões e outras mais decidiram Eduardo a afrontar as conseqüências de um encontro entre as duas
mulheres debaixo do mesmo teto.
Em
conseqüência, preparou-se para ir ao baile.
Às nove
horas da noite entrava ele nos salões do conselheiro C..., meio receoso, meio tranqüilo, em todo caso
orgulhoso com a circunstância especial de achar-se diante das duas mulheres que
se tinham apaixonado por ele.
Depois de
fazer os cumprimentos devidos aos donos da casa, indagou Eduardo se as duas
tinham já chegado ao baile. Disseram-lhe que não.
Com
efeito, correu toda a casa sem encontrar vestígios de nenhuma pessoa das duas
famílias.
Em uma das
viagens que fazia em busca de Sara e Maria Luiza, Eduardo encontrou os dois
amigos que tinham aparecido no Rocio, no dia em que, acompanhado por mim e pelo
leitor, fizera uma visita à viúva da Rua
do Lavradio.
— Oh! tu
por aqui! disse um deles. É a primeira vez que apareces depois de tamanha ausência... Bem-vindo
sejas!... Mas aposto que a viúva está por cá?
— Não,
respondeu secamente Eduardo.
— Não?
Então é que há de vir. Muito bem... Estão mesmo uma corda e uma caçamba.
—
Disseram-me no outro dia, disse o segundo moço, brincando com a corrente do
relógio, — que tinhas uma segunda namorada. Não quis crer...
— Por que
não quiseste crer? perguntou Eduardo.
— Ora,
porque de duas uma: ou não amas deveras, e então não terás duas, terás cem; ou amas deveras, e então amar
a duas é absurdo.
— Absurdo!
disse Eduardo.
— Pois
não!
— Não
achas? perguntou o primeiro.
— Não
acho. É coisa muito possível.
— Aposto
que amas realmente as duas e deveras?
— Deixemos
o terreno dos fatos. Teoricamente, posso provar...
—
Teoricamente, prova-se muita coisa...
— Por
exemplo...
— Por
exemplo, prova-se que estás corrigido, que mudaste de sistema de vida, enfim
que és quase um santo; ora, não há maior falsidade...
— Por quê?
perguntou Eduardo meio sério.
— Porque
essa aparência de vida modesta e honesta desculpa a dureza do coração. És o mesmo. Estás mudando o ponto
de vista e os meios de ação.
Eduardo
sorriu-se e perguntou, pondo a mão no ombro de ambos:
— Dar-se-á
caso que vocês também se tornassem filósofos?
—
Filósofos como Epicuro. Somos o que éramos dantes; somente, somos e dizemos que o somos. Tu és e dizes que
não és. Eis toda a diferença.
— Deveras?
disse Eduardo.
— É certo.
Anda tomar um copo de Xerez. Dizem que o conselheiro oferece desse vinho
delicioso aos seus convidados conhecedores. Olha que é Xerez; é o vinho de
Francisco I, o conhecedor de mulheres como tu, lembras-te? Souvent femme varie...
— Salta
gaiato! disse alegremente Eduardo apartando-se dos dois
amigos.
— Anda cá,
disse um deles. Olha!
Apontando
com a mão para a escadaria que ficava próxima, chamou a atenção de Eduardo para duas senhoras que
entravam. Eram Maria Luiza e a mãe.
— Ah!
disse Eduardo.
E voltando-se
para os amigos:
— Adeus,
até logo!
Os dois
rapazes afastaram-se rindo. Eduardo foi ao encontro das duas senhoras.
Maria
Luiza estava radiante. Tinha na verdade um porte de grandeza natural, e
quando os seus
olhos se voltaram
em roda dos
que a cercavam parecia uma castelã antiga
contemplando os cavaleiros preparados
para as justas. Trazia um vestido de seda cor de violeta com enfeites da mesma
cor. Os cabelos, penteados à Stuart, moda então muito em voga, faziam realçar
um fio de pérolas, cujo fecho de brilhantes em forma de estrela ficava-lhe no
meio da cabeça. Trazia na mão um ramalhete de violetas. Quando Maria Luiza
entrou no salão, onde as mais belas toilettes chamavam a atenção dos olhos
masculinos e seus apêndices, — as lunetas, — houve uma espécie de rumor admirativo.
Todas as
belezas foram um momento esquecidas por aquela que entrava vestida com tanta
simplicidade e tão bom gosto. Maria Luiza, com aquele instinto admirável das
mulheres, reparou no efeito que produzia
e não deixou de gozar amplamente o prazer que lhe dava a geral admiração.
Os que a
não conheciam indagavam do seu nome e os que a conheciam respondiam aos
interpelantes, repetindo-se às vezes o nome de Eduardo como o senhor e possuidor daquele
coração viúvo.
Eduardo,
orgulhoso e radiante, olhava para todos do alto de seus olhos e da sua
felicidade, com certo arzinho de quem mofava dos outros por serem menos
venturosos ou menos lestos.
Enfim, a
vida do baile começou. Anunciou-se uma valsa. Eduardo e Maria Luiza tomaram
lugar entre os valsistas. Dentro de poucos minutos, pares retiravam-se para dar lugar à
valsa doida, entusiasta do moço e da
viúva.
Conversava
eu um dia com um dos meus amigos poetas, que a morte levou, um talento que
todos admiravam, um coração que muitos conheceram.
— Não sei,
dizia-me Casimiro de Abreu, como se pode inventar a valsa, a melhor de todas as danças, para dançá-la em
um salão diante de cem olhos. A valsa é
realmente a mais graciosa, a mais natural, a mais bela das
danças, mas nenhum olho humano deve presenciá-la. Então, os dois valsantes, que
se amam, que vivem um pelo outro, podem embriagar-se na valsa, viver, não a
vida do mundo, mas a vida dos anjos, a
vida dos sonhos, a vida do céu!
—
Casimiro, objetava eu, para dois corações que se amam, a multidão não é
isolamento? E quando um par se atira à sala, aos primeiros compassos de uma valsa, não lhes desaparece
tudo, não ficam eles sós, ermos, confundidos?
Casimiro
adorava a valsa. Todos conhecem a bela poesia das Primaveras que traz este título.
A minha
objeção, no caso de Eduardo e Maria Luiza, tinha meia aplicação ao fato: a
viúva corria nos braços de Eduardo, e no meio dos cem olhos que os acompanhavam, como se
estivesse em um deserto. Esqueceu-lhe tudo por Eduardo. Mas este não.
Lembrou-se, e muito, que estava entre
gente; calculava, adivinhava, redigia consigo mesmo os ditos, as observações,
os olhares invejosos de toda aquela multidão.
Foi
exatamente no fim da valsa que chegou a família de Almeida. Os rumores que sucederam à valsa de Eduardo e
Maria Luiza foram dobrados com a presença de Sara.
Com
efeito, se Maria Luiza tinha direito a excitar a admiração geral, não menos
tinha a filha de Almeida.
Vestia de
um modo simples e elegante. Um vestido de seda cinzento-pérola ocultava-lhe o
corpo flexível e delgado. Os cabelos, penteados em ondas, não tinham outro enfeite mais que
uma rosa branca, presa do lado esquerdo. No seio, que ondulava pelo cansaço e
pela comoção, fulgurava uma simples
cruzinha de ouro, enfeite que Sara usava em todas as solenidades, por ter-lhe sido dado
por sua mãe.
Graças à
vida retirada da família de Sara, ninguém ou muito pouca gente a conhecia. A
dona da casa encarregou-se das necessárias apresentações.
Foram as
duas proclamadas as rainhas do baile. Os cavalheiros dividiram-se em partidos, uns preferiam Maria
Luiza, em quem viam a expressão mais completa da mulher; outros davam a palma a
Sara, cuja beleza virginal e angélica
inspirava idéias puramente do céu. Para uns,
Maria Luiza era a estátua descida do pedestal; para outros, Sara era um anjo
foragido da habitação divina.
No meio de
tão divididas opiniões, Eduardo era o único que as admitia ambas, e por ambas se bateria se necessário
fosse. Eduardo foi procurar Almeida, de cuja demora indagou com o maior
interesse, ouvindo aliás as razões dadas por aquele com a maior indiferença. Eduardo
pôde falar a Sara, fê-lo com todo o interesse de um amante saudoso. A moça
parecia triste. Vinha imaginando encontrar Eduardo aflito com a sua ausência e achou-o no
turbilhão de uma valsa, tão alegre ou
mais que os outros. Mas este ressentimento no coração da moça era passageiro.
Nem ela procurava indagar mais nada. Sabia ela acaso que Eduardo pudesse valsar
com outra com a mesma efusão com que
valsaria com ela? A pobre menina notava o fato, mas não tirava dele nenhum corolário. E depois, as
maneiras de Eduardo convenciam tanto! No fim de dez minutos de conversação,
Sara esquecera tudo, e estava feliz. Como Maria Luiza, na valsa, deixou-se ir na embriaguez da conversação e só se lembrou
de que estava diante do homem que era escolhido pelo seu coração. Tinha uma
singeleza adorável que Eduardo não sabia
admirar, nem como amante, nem como
poeta.
Não
ocuparei o espírito do leitor com a narração do que se passou durante a noite
do baile, e corro já ao melhor episódio, ao que importa saber em nossa história. Bem depressa se
espalhou que as duas raparigas amavam
Eduardo e que este parecia amá-las do mesmo modo. Aos que o interrogavam Eduardo
respondia com o ar de homem que nega
aquilo de que deseja convencer a todos.
Chegou a
passear com ambas, uma em cada braço, conversando simbolicamente com ambas sem
que elas se apercebessem de nada. Enfim,
seria uma hora da noite, já o baile chegara ao ponto culminante, em que as cerimônias, sem desaparecerem de
todo, dão lugar a uma respeitosa intimidade.
Sara e
Maria Luiza, ou por simpatia, ou por força da fatalidade, davam-se já como duas
amigas. O conselheiro convidou Sara para cantar alguma coisa. Sara estava
cansada e pediu um quarto de hora. Durante este tempo retirou-se para o gabinete que
servia de toilette das senhoras.
Maria Luiza acompanhou-a.
—
Precisava bem de um momento de descanso, disse Maria Luiza. Como está fatigada, meu Deus!
— A falta
de hábito, respondeu Sara. Vivo sempre metida dentro de casa...
— Pois faz
mal... As flores fizeram-se para o ar livre.
Sara
sorriu.
— Diga-me.
Isto é entre moças, pode dizer-se. De quantos rapazes tem visto hoje, nenhum
lhe faz palpitar o coração?
A moça
olhou para Maria Luiza e respondeu:
— Oh! sim!
Um!
— Ainda
bem!
— Por que
se alegrou tanto?
— Por
nada...
— Oh!
— Porque,
se já começa a amar, deve compreender-me... Também eu amo e muito!...
— Amar é
tão bom, não é? disse Sara, com uma adorável singeleza.
— Oh! se
é! suspirou Maria Luiza.
Calaram-se
ambas. No fim de alguns minutos de contemplação recíproca, as duas deitavam-se
nos braços uma da outra.
— É o mais
belo, mais gentil de quantos homens estão hoje nesta sala... Oh! eu excetuo o
outro...
Dizendo
estas palavras Maria Luiza deu um beijo em Sara.
Sara
respondeu.
— Não sei
se este é o mais belo e o mais gentil, sei que o amo. Se o não amasse, devia estimá-lo, porque me salvou
a vida vai para quatro meses...
— Ah! temos
romance?
— Não é
romance, é realidade.
— E
casam-se?
— Não sei,
mas não penso nisso. Eu só faço o que ele quiser. Meu amor é um amor que não manda, nem eu creio que haja
outros.
Maria
Luiza estava pensativa.
Sara
continuou:
— Estará
na sala?
— Quem? O
meu?
— Sim.
— Está,
creio eu.
E Maria
Luiza foi à porta. Abriu uma fresta entre as cortinas e procurou Eduardo com os olhos.
— Lá está
ele... Olhe!
— Onde
está? perguntou Sara.
— Ali
encostado ao piano, do lado de lá, brinca com a luneta. Vê?
Sara, com
os olhos colados à fresta, acompanhava a indicação de Maria Luiza.
Repentinamente
deram as duas um grito.
Sara tinha
reconhecido Eduardo; Maria Luiza viu na mão de Sara um lenço igual, com igual
firma, ao que surpreendera na mão de Eduardo. As duas mulheres olharam-se, mudas, alguns
segundos. Sara levou a mão ao peito. Parecia que se lhe quebrava o coração.
Maria Luiza, com o lenço nos olhos, foi cair sobre o sofá, dizendo:
— Oh! que
fatalidade!
Sara,
depois de alguns segundos, foi procurar uma cadeira e sentou-se. Não pôde
conter-se; as lágrimas rebentaram-lhe dos olhos. Houve um grande silêncio entre
ambas. Fora batiam palmas ao pianista que acabava de entusiasmar o auditório
tocando um coro de D. Juan, de Mozart.
Maria
Luiza foi a primeira que se levantou e falou a Sara.
— Faz bem
em chorar, disse ela. Era inocente, acreditou no amor dele. Sei quanto sofre
pelo que eu mesma sofro. Foi uma fatalidade. Ambas púnhamos nele a nossa esperança com a nossa
alma, ele enganava as coitadas de nós!
Sara não
respondeu. Estava pálida como a morte. Maria Luiza pensou que fosse desmaiar.
Foi buscar água-de-colônia e prestou-lhe os mais fraternais cuidados.
—
Obrigada, não é nada, passou, disse Sara.
Depois,
enxugou os olhos e levantou-se.
Na sala,
procurava-se a filha de Almeida para cantar. A dona da casa dirigiu-se ao gabinete.
— Aí vem
gente, disse Maria Luiza, vêm procurá-la para cantar. Deve ir. Devemos sair
juntas, para que nada desconfiem.
Abriram-se
as cortinas e viu-se saírem as duas moças, pálidas como duas estátuas, com os
olhos vermelhos. Sara mal podia ter-se em pé. Obrigada a cumprir a promessa, Sara cantou.
Mas que canto! Não eram notas, eram palavras d’alma que saíam da menina
desiludida e infeliz.
Quando
acabou, corriam-lhe as lágrimas.
Ao pé
dela, Maria Luiza a acompanhava no sentimento e nas lágrimas silenciosas.
As duas
infelizes saíram da sala no meio de aplausos comovidos.
CAPÍTULO VII
Passaram-se
quinze dias depois das cenas que acabo de contar.
No dia seguinte
ao do baile, Eduardo foi visitar Maria Luiza; encontrou- a na sala com a mãe.
Eduardo, como sempre, entrou com o sorriso nos lábios. Maria Luiza estava magra e tinha os
olhos pisados. Ia perguntar o motivo daquele abatimento, quando a viúva,
dizendo-se incomodada, pediu licença e retirou-se.
Eduardo
esteve meia hora na sala conversando com a mãe de Maria Luiza, que lhe
respondia por monossílabos. Finalmente, despediu-se e saiu.
Estava
humilhado.
— Que
aconteceria? perguntava ele. Ontem saíram do baile sem me falarem. Hoje
tratam-me deste modo. Que haverá?
De
reflexão em reflexão, de recordação em recordação, Eduardo pôde atinar com o motivo do desdém que recebera em
casa de Maria Luiza.
Lembrou-se
de ter visto a viúva e a donzela saírem do toilette, lívidas e abatidas. Lembrou-se das lágrimas derramadas
durante o canto no piano. Descobriu
tudo.
— Que
diabo! pensava ele. Como hei de desenlaçar esta meada? Convencê-las é
impossível; o melhor é iludir a questão. Mas como? Irei a Sara... Mas terei lá
a mesma recepção? Oh! É demais! Não! isso não! Maria Luiza não pode recusar uma
carta minha. É isto. Escrevo-lhe. No papel posso dizer mais facilmente aquilo
que convier; tenho a faculdade de
rabiscar, alterar, adoçar, enfeitar, como me parecer, as palavras...
Eduardo
entrou em casa disposto a escrever três cartas. Uma à mãe da viúva, endereçando-lhe outra para a filha, de
cujo amor ela estava ciente. A terceira carta era a Pedro Eloy, contando-lhe a
ocorrência e pedindo-lhe um conselho. Ao mesmo tempo respondia à carta
anterior.
O conteúdo
das duas primeiras era uma série de frases ocas, habilmente grupadas, em que
Eduardo protestava o mais respeitoso amor por Maria Luiza; quanto ao episódio
do baile e ao amor de Sara, foi o mais
sucinto que pôde, dando uma desastrada explicação ao sentimento alegado pela
filha de Almeida.
Era, dizia
ele, um serviço que prestava a uma menina, cujo coração inexperiente se deixara
apaixonar por ele. Não queria desenganá-la; entretinha, por sua aquiescência,
um amor sem alcance.
Mandou as
cartas, mas nenhuma resposta obteve nesse dia nem nos dias seguintes.
Desesperou. Passava muitas vezes em frente da casa de Maria Luiza; mas não via
ninguém; as janelas estavam, as mais das vezes, cerradas.
Quanto a
Sara, Eduardo com o receio de sofrer a mesma recepção, não foi lá, esperando
uma visita do pai ou do tio Silvério. Embalde esperou. Era demasiado o desdém para que um coração
vaidoso como o de Eduardo se resignasse.
Doía-lhe o desdém, ardiam-lhe desejos de vingança. A vaidade, que até ali se
empavesara com o amor das duas mulheres,
doía-se, agora, ressentia-se, pedia desforra. Ora, a vaidade quando domina o
coração do homem (e na maioria dos homens acontece assim) não deixa atender a
nenhum sentimento mais, a nenhuma razão
de justiça.
Era,
assim, atado a esta fogueira interior, como Eurico atado ao próprio cadáver, que Eduardo passava os dias e as
horas, sem ver nem procurar ninguém.
Quanto à
carta escrita a Pedro Eloy, resume-se em pouco. Ei-la:
“Meu amigo,
“Turba-se
o horizonte. Aconteceu o que previas e eu não previa. As duas sabem hoje do meu amor por
ambas. Zangaram-se! Era bom se fosse só isso. Creio que adoeceram. Tamanho
desencanto não as podia conservar no estado normal.
“E isto
tudo por um diabo, como eu. Diabo, sim; não digo brincando; mas um diabo
compassivo que ainda as estima e
deplora.
“Que
queres? Sou feito assim. Tenho um coração evangélico; e não posso ver sofrer, e
sobretudo sofrer por minha
causa.
“Foi o
caso. Não sei que fatalidade as levou ambas ao baile do conselheiro C... Aí,
deram-se, comunicaram uma à outra os
seus sentimentos e naturalmente foram além do que deviam ir, descobrindo a coroa. A coroa
sou eu. E demitiram-se os meus ministros...
“Falemos
sério; penalizam-me estas ocorrências.
“São duas
mulheres dignas do respeito e do amor que eu lhes votava. Tenho a culpa de que as adorasse
do mesmo modo e no mesmo grau? Se há
culpa nisto, é da natureza.
“O que é
certo é que não me querem receber e curvam-se a uma dor que me lisonjeia, mas
que me entristece.
“Que devo fazer? Como reconciliar
estes dois sentimentos e o meu
orgulho, porque enfim eu não quero esquecer, no meio de tais fatalidades, que
recebi do berço um dever de zelar a
minha própria dignidade.
“Aconselha-me
e acredita-me.
Teu
Eduardo”.
Esta
carta, como as outras, não teve resposta.
Vejamos
agora o que se passou nas duas mulheres a quem Eduardo bafejara com o hálito da desgraça.
Maria
Luiza chorou muito durante o resto da noite do baile.
E quando a
manhã rompeu, Maria Luiza estava à janela, chorando ainda em silêncio.
Sentia-se duas vezes viúva; legal e moralmente. Os sonhos do futuro, as esperanças de sua
felicidade sem igual, fora tudo um castelo de cartas que desabou ao sopro de
uma criança.
Era dia
claro. Maria Luiza julgou dever curtir a sua dor e mostrou-se alegre.
Não queria
magoar a mãe. Banhou os olhos o mais que pôde e deixou o quarto. Sua mãe a esperava para almoçar.
Vendo-a triste, perguntou-lhe se estava doente. Respondeu que se sentia
fatigada. A mãe não insistiu. Durante o almoço, a boa velha, para alegrar a
filha, e distraí-la dos incômodos que
dizia ter, falou-lhe de Eduardo, das comoções que ambos deviam ter tido na
noite anterior, dos projetos do futuro.
O assunto
não era próprio para alegrar Maria Luiza. Respondendo por monossílabos, e interrompendo a conversa com
assuntos diferentes, Maria Luiza procurava desviar o espírito de sua mãe.
Enfim, algumas vezes não podia deixar de enxugar furtivamente uma lágrima. A
velha reparou e perguntou-lhe por que
chorava.
— Por
nada, respondeu a viúva.
— Não é
possível.
— Por
nada, afirmo-lhe.
— Não é
possível. Ah! não estás cansada, estás triste; tens alguma coisa que te faz
sofrer. Dize o que é... Não sou tua mãe?
— Minha
mãe!
E Maria
Luiza escondeu o rosto no seio da velha.
— Vamos
lá! disse esta. O que é?
— Ah!
tenho vergonha...
— Vergonha
de quê?
— Eduardo
não me ama!
— Ah!
— Não me
ama, porque ama a outra.
— Quem?
— Sara,
aquela que cantou ontem, ao pé de mim, e que a todos comoveu. Ambas nos confessamos.
Maria
Luiza repetiu tudo quanto acontecera no baile. A pobre mãe estava comovida,
triste, desesperada, ouvindo a narração que Maria Luiza lhe fazia entre lágrimas de desespero e
de dor.
Mas, que
podia fazer a mãe da pobre moça? Uma só coisa: dar-lhe uma consolação maternal
e auxiliá-la em esquecer o ingrato. Quando veio a carta de Eduardo achou ela que devia
responder, sobretudo porque nos termos da carta parecia estar provada a
inocência de Eduardo. Maria Luiza foi inflexível; disse que não se devia dar
resposta alguma. Ah! É que naquele coração, ao lado de um grande amor e de um
grande desespero, havia um grande orgulho!
Quanto a
Sara, eis o que passara. Não temos necessidade de ir até à casa de Almeida; o tio
Silvério nos instruirá de tudo.
Um dia, de
tarde, justamente quinze dias depois do baile, Eduardo estava à janela de sua
casa quando viu passar o tio de Sara.
Chamou-o e
fê-lo subir, apesar dos protestos de ir apressado.
— Ora
tinha que ver! disse Eduardo indo receber Silvério. Não vê que o deixava passar
sem dar dois dedos de conversa!...
— Mas é
que tenho pressa.
— Qual
pressa! Sente-se um pouco. Em descansando, ganha novas forças, e ei-lo que aí
vai mais lesto ao seu destino.
— Vou para
casa, disse Silvério aceitando a cadeira que Eduardo lhe oferecia, e fazendo
uma careta à parte como homem contrariado.
— Toda a
família está boa?
— Está.
— É o que
se quer. Vai então tudo bem?...
— Tudo,
não é exato...
— Pois há
alguém doente?
— Há.
— Quem é?
— Minha
sobrinha...
— Deveras?
— É
verdade.
— Que
doença?
— Eu sei!
Adoeceu no dia seguinte ao do baile; veio um médico e a primeira coisa que fez
foi obrigá-la a conservar-se de cama.
— Depois?
— Depois,
examinou-a e deu não sei que nome à moléstia, mas afirmou que não era aquela a
principal.
— Então há
outra?
— Há.
— Qual é?
— Diz o
médico que é uma doença moral. Lá levaram tempo imenso a consultá-lo. Ela nada disse, isto é, não sei;
não sei; não sei; só sei que aquilo é a nossa desgraça, porque, se ela nos
morre, é como se nos fosse a vida, a alegria da casa... Adeus, Sr. Eduardo, não
posso demorar.
Eduardo
ouvira estas palavras com certa comoção. Quando Silvério se levantou e se
preparava para sair, Eduardo balbuciou algumas palavras. Era um anjo que o
inspirava; ia talvez sanar tudo com uma promessa.
Em um
instante viu ele que se constituía o remédio supremo para a enfermidade moral de Sara. Mas, enfim, o ente gredin, que,
como diz A. Karr, todo o homem tem em
si, desfez a obra do ente honesto, Eduardo estendeu a mão a Silvério e pediu
que o recomendasse à família.
Silvério
desceu cabisbaixo e triste as escadas da casa de Eduardo. Quando se viu só,
Eduardo refletiu na situação em que se achava. Das duas mulheres que ele requestara
tão seriamente e cujas esperanças honestas
alimentara com tanta perseverança, uma tinha morta a alma, a outra tinha morta a alma e o corpo. Em seu
coração, travou-se uma grande luta,
entre o remorso e a vaidade. O dever dizia-lhe que reparasse o maior mal, se
não podia reparar todos os males, mas um sentimento de amor-próprio, vão, cruel,
imoral, retinha-lhe os sentimentos bons
e os impulsos generosos.
Nesta luta
esteve toda a noite. Quis dormir, não pôde; mal fechava os olhos surgia-lhe o
espectro de Sara pedindo contas do coração que iludira e da vida que
estrangulara.
Enfim,
sobre a madrugada pôde conciliar o sono. Eram nove horas, quando se levantou. Quem olhasse para ele, daí
a meia hora, reconheceria que o sentimento do dever triunfara, ao menos momentaneamente.
Eduardo
vestiu-se e saiu. Tomou um tílburi e dirigiu-se para a ponte das barcas.
Destinava-se
a S. Domingos. Ia decidido a falar à moça, mesmo à custa do seu amor-próprio.
A demora
do vapor o contrariou. Tardava-lhe ver-se junto do leito da moribunda para dizer-lhe:
— Vive!
Ora, a
moribunda estava realmente moribunda.
Mas quem a
visse não suporia que a morte se avizinhava tanto dela. Tinha o rosto e os
olhos serenos. Sorria mesmo ao pai, ao irmão e ao tio, mas com o sorriso de quem entrevê as
glórias eternas e já as compara às glórias perecíveis desta vida.
O
cortinado branco do leito parecia que amparava da luz um ente que chegava ao
mundo e não um ente que se ia dele, desgostoso e desiludido.
Em uma
pequena mesa ao pé da cama havia um copo d’água, uma cruz de ouro, a do baile,
e uma rosa branca seca. Esta rosa era a que Eduardo dera a Sara em troca de
outra à porta do jardim. Sara, de tempos em tempos, voltava os olhos para a
flor, ficava muda e entrava a
contemplá-la. Nessas ocasiões, o pai da doente procurava distraí-la com algum
outro objeto, temendo que na contemplação da flor se lhe avivassem as
lembranças do amor que a matava.
Foi em uma
dessas ocasiões, que Almeida se lembrou de uma notícia e disse a Sara:
— Minha
filha, vais ter uma visita.
— Quem é?
—
Adivinha...
— Não sei,
disse Sara sorrindo.
— D. Maria
Luiza.
Este nome
fez estremecer Sara. O pai dava-lhe maior sofrimento procurando tirar-lhe outro
menor. Com efeito, a flor lembrava a Sara o tempo feliz dos seus amores; o nome
de Maria Luiza lembrava-lhe a traição de Eduardo. Reconhecendo o que fizera,
Almeida procurou diminuir o efeito.
— Verás
como ela soube resignar-se... Espero que o exemplo te sirva, e que das suas palavras colhas uma lição e um
conforto, e finalmente que vivas... Ouviste? que vivas!
Sara
sorriu-se.
Houve um
silêncio.
Depois,
passando a mão pela cabeça, pediu água.
Deram-lha.
— Estás
melhor, não, Sara? perguntou Almeida. Olha, é preciso, é preciso; fazes anos
amanhã. Quero que presidas à mesa... sim?
— Estou
melhor, estou, meu pai. Mas, diga-me, como sabe da visita de Maria Luiza?
— Passei
ontem lá e subi. Não sabia ainda que estavas doente. Quando lho disse, ficou muito pesarosa. Depois,
disse-me que viria cá fazer-te uma visita.
O resto do
dia passou-se sem novidade. Sara não saía daquela serenidade, mas realmente não
era para a vida, era para a morte que caminhava.
Enfim, no
dia seguinte, isto é, no dia em que Eduardo resolvera ir salvar a moça,
aparecem, à porta de Almeida, Maria Luiza com sua mãe.
Sara
recebeu a sua rival, ou antes a sua co-mártir, como se fora uma irmã querida,
por quem se espera para morrer. Maria Luiza chorou muito; e, por uma inversão dolorosa dos
papéis, era Sara quem consolava a viúva.
— Mas é
por ti que eu choro, meu anjo! dizia Maria Luiza.
— Por mim?
— Sim, por
ti, que não tens coragem, que te quebraste ao primeiro embate da vida...
— Não
digas isso... Eu estou boa... Nada tenho... Sofri, é certo; mas passou... Olha,
faço hoje anos... Hás de jantar comigo... Vou levantar- me logo... Verás...
Verás... Senta-te...
Maria
Luiza olhou com olhos rasos de lágrimas para a pobre moça.
— Ainda
bem, minha filha, disse Almeida procurando sorrir, ainda bem que te mostras
assim. Isso é que eu quero. Não te importes com os males da vida; todos sofrem;
mas faze como fazem muitos: fica sobranceira a tudo.
—
Dezessete anos! murmurava a viúva... É a aurora da vida...
As duas
conversaram largamente. A mãe de Maria Luiza e o pai de Sara deixaram o quarto;
as duas podiam folgadamente falar do que as tornara infelizes. Era assim mais
fácil a Maria Luiza inspirar a Sara os sentimentos
de coragem e sobranceria a que ela própria devera não ter sucumbido. Chegou
mesmo a aventurar uma idéia de vingança com satisfação do coração ofendido.
Mas
aqueles dois corações, que concordavam em um ponto, não se entendiam naquele.
Sara não
era feita para resistir a uma comoção como a que a prostrara. Ouvia sorrindo
Maria Luiza, mas abanava a cabeça a tudo. E quando a viúva, para decidi-la mais, lembrava-lhe que
poderia sucumbir deveras, Sara respondia que estava perfeitamente boa e
não podia inspirar cuidados a ninguém. Esta resistência aos que a chamavam à
vida comovia ainda mais. Só havia um meio, talvez, de salvar Sara: era a
presença e
o amor de Eduardo.
Esta idéia
passou rápida pelo espírito de Maria Luiza. A nobre mulher não discutiu consigo nem o ato, nem as
conseqüências, nem o seu coração. Adotou
o pensamento como se fora inspiração do céu.
Maria
Luiza amava realmente Eduardo. Desiludida, sofreu muito, e só deveu ao orgulho
e à energia do seu coração não ter, como Sara, sucumbido ao desespero. Mas os grandes
sentimentos do seu coração não eram só o do amor e o do ciúme. O ato que ia
praticar era de uma alma nobre, educada
no culto do dever e do sacrifício. Naquele instante, ela via diante de si uma
pobre menina que sofria, e morria por aquele mesmo que a fizera sofrer.
Compreendia bem a medida desse
sofrimento. A viúva procurou sondar o espírito da enferma:
— Ora,
dize-me, se visses Eduardo, o que farias?
— Se o
visse? É impossível.
—
Impossível, por quê?
— É
impossível.
— Ora, não
digas isso. Mas se o visses, se ele viesse agora, hoje, e te dissesse: Vive?
— Não vem
e não diz...
— Por quê?
— Por que
não me ama.
— Quem
sabe?
— Oh! Nem
me ama, nem te ama.
— Só por
isso?
— E também
porque nós o amamos.
— Eu não.
— Não?
— Não.
A moça
abanou a cabeça murmurando:
— É
inútil.
Maria
Luiza procurou meio de escrever a Eduardo; e conseguiu traçar à pressa, em um
quarto de papel, as seguintes palavras:
“Quer o
perdão que me pede? Sara está às portas da morte; venha, diga-lhe que a ama,
peça-a e case daqui a um mês. Está perdoado.
Maria
Luiza.”
O portador
que levou este bilhete encontrou Eduardo na ponte das barcas da corte.
Eduardo,
ao ler o bilhete da viúva, sentiu-se humilhado. Enganara duas mulheres; uma
morria de pesar, outra pedia-lhe que a salvasse, sacrificando-se; entre aquelas nobres almas, a
alma de Eduardo sentia-se abatida. Não se deteve mais; tomou a barca, que
partiu dali a cinco minutos.
Logo
depois de partir o portador do bilhete, entrou o médico na casa da doente.
Achou-a muito pior, e disse-o francamente à família.
Que fazer?
Tudo o que foi preciso, fez-se. Maria Luiza, ajoelhada diante de um oratório,
pedia a Deus duas coisas: que prolongasse a vida de Sara por algumas horas e
apressasse a chegada de Eduardo.
Foi
inútil. Sobreveio uma crise à enferma, e após a crise o médico desesperou.
Entretanto,
Sara, com o sorriso nos lábios e o olhar sereno, dizia alguma palavra em voz já
muito fraca, mas com a segurança de quem está certa de ir para uma morada melhor.
Maria
Luiza pedia-lhe que vivesse; dizia-lhe que Eduardo não tardaria; o pai a um canto não tinha forças para ver,
para pedir, nem chorar; estava atônito.
— Não,
dizia ela, ele não vem. E que venha, sei que não me ama, e sem me amar não o
quero.
O médico
fez vir o sacerdote.
Quando
este chegou, Sara, com os olhos fitos, como que vendo já abrir-se-lhe o céu, pediu a Maria Luiza que
lhe desse a rosa seca que estava sobre a
mesa.
Maria
Luiza deu-lha.
— Desejo
esta flor, porque me lembra o amor que eu supunha ter achado; é o homem de ontem que eu choro! é por
ele que morro; o de hoje não é senão a
sepultura do de outrora, que morreu.
Houve um
silêncio.
Almeida
chegou-se à filha, a fim de prepará-la para a confissão.
Sara
estremeceu.
Depois,
voltando-se para Almeida, disse:
— Meu pai,
abençoe-me. E tu também, minha irmã.
Depois,
estava no céu.
CAPÍTULO VIII
Meia hora
depois entrava Eduardo à porta de Almeida. Viu tudo fechado; correu-lhe um calafrio por todo o
corpo. Será tarde? perguntava ele. Vacilou; entraria ou não? Se entrasse e
achasse tudo perdido? Enfim, fazendo um esforço, Eduardo passou o portão que se
achava perto. Atravessou a alameda das
roseiras, onde pela primeira vez falara de amor à pobre Sara. O remorso começou
então a aguilhoá-lo. Aquele silêncio, aquele ar fúnebre, que a casa e o jardim respiravam,
incutiam-lhe certo terror. Chegou à porta e bateu.
Veio
abri-la o pai de Sara.
— Sara?
perguntou ele.
— Sara
morreu!
O moço
tornou-se lívido. Sentiu uma vertigem; os olhos se lhe escureceram, ia cair. Segurou-se a uma
cadeira.
O pai de
Sara olhava fixo para Eduardo. Este não podia suportar-lhe o olhar, e baixava
os olhos. Naquele momento, o pai de Sara era o remorso vivo.
Depois de
um pequeno silêncio, Almeida falou:
— Era
inútil tê-la salvado do mar há quatro meses, para matá-la agora. Se tal devia ser o desenlace destas coisas,
melhor fora que a minha pobre filha
tivesse sucumbido à primeira vez; iria assim para o outro mundo sem conhecer as
misérias deste...
— Oh!
basta! interrompeu Eduardo. Sei quanto sou culpado, não aumente a minha
angústia com as suas exprobrações, aliás justas.
O velho
sorriu-se tristemente, como quem ouvia duvidoso as palavras do outro.
Depois:
— Vem
dar-me os pêsames, não é? continuou ele; muito obrigado. E foi sentar se no sofá, derramando silenciosas
lágrimas.
Eduardo
esteve alguns momentos contemplando aquela dor muda e respeitável. Depois,
dirigiu os olhos para a porta do quarto mortuário. Ouviu que partiam de dentro
soluços abafados. Dirigiu-se para a porta.
Maria
Luiza, ajoelhada aos pés da cama, contemplava, chorando, o cadáver de Sara. A
morta parecia sorrir ainda: dissera-se que sonhava um sonho cor-de-rosa.
Eduardo
sentiu rebentarem-lhe dos olhos as lágrimas. Ajoelhou-se silenciosamente ao pé
da porta e olhou para Maria Luiza.
Não lhe
viu o rosto, mas conheceu-a.
Durou muitos
minutos esta cena muda. Finalmente, Eduardo levantou-se e dirigiu-se para o
leito da finada. Aí, com os olhos rasos de lágrimas, disse para o cadáver:
—
Perdoa-me! Adeus!
E saiu da
casa, louco, desesperado.
CAPÍTULO IX
Eduardo
andou muitas horas sem saber de si. Acompanhava-o o espectro de Sara. Ouvia-lhe
as palavras; parecia vê-la morrer esperando embalde por ele.
De um
triste jogo, em que a sua vaidade entrara por muito, resultaram tão funestas conseqüências. Sua dor era
sincera; seu terror verdadeiro. Até ali,
de seus caprichos dom-juanescos só resultaram, quando muito, desgostos
passageiros que o tempo ou outras circunstâncias atenuavam e faziam desaparecer. Mas no dia em
que se deitara a amar deveras, ou antes, no dia em que desejou amar, as vítimas
do seu capricho sucumbiram. Via-se autor
de uma morte; e os espíritos da ordem de
Eduardo podem cometer todas as ações covardes, mas não resistem a um espetáculo
destes. Fazer perder-se uma donzela ou separar
um casal, é uma façanha mais ou menos celebrada, mais ou menos aceita; mas impelir para a sepultura um
ente a quem se enganou, eis o que faz estremecer os audazes. Eduardo, preso de remorso,
apreciava toda a extensão do abismo em que caíra.
Os
sentimentos vivos da dor e do remorso, as idéias tumultuárias e cruéis,
encheram por longo tempo o espírito e o coração de Eduardo. Ora parecia-lhe
dever fugir à vida e ir alcançar a donzela no caminho da eternidade, para
pedir-lhe perdão. Ora julgava que devia ficar neste mundo, para purgar em longo
sofrimento o crime que cometera.
Nesta
incerteza, neste suplício moral, andou até que se achou diante do mar.
Sentou-se pensativo em uma pedra. Era quase noite. Muita gente que o viu
supô-lo doido.
Estava
ali, havia já alguns longos minutos, quando um homem parou e procurou
descobrir-lhe as feições. Eduardo tinha o rosto fechado nas mãos. Depois de alguns instantes o homem
exclamou:
— Eduardo!
— Que é?
disse o moço, estremecendo.
Voltou e
reconheceu o interlocutor:
— Pedro
Eloy!
Eduardo
caiu-lhe nos braços.
Depois de
alguns momentos, Pedro Eloy perguntou:
— Que há?
— Sara
morreu!
— A
donzela?
— Sim!
—
Desgraçado! É obra tua!
— Ah! não
aumentes a minha dor e o meu terror, bem sei o que fiz;
vejo a
enormidade do meu crime.
E o moço derramava
sinceras lágrimas.
Pedro Eloy
continuou:
— Se
tivesses atendido aos meus conselhos, tinhas poupado este desgosto e este remorso. Bem te dizia eu que
não iriam a bons resultados as tuas paixões simuladas. Não quiseste crer, ou
antes a tua vaidade recusou-se a crer. Enfim, vê se eu tinha razão!
Houve um
silêncio entre ambos.
— Está
acabado tudo; agora só resta uma coisa; é seres o carrasco de ti mesmo, como
aquele pai do teatro latino. Eia! se alguma coisa pode agora levantar-te aos olhos do mundo e aos
teus é a volta aos deveres morais. Sirva-te a morte de Sara, tua vítima, como
ponto de partida para a tua regeneração.
E dizendo
isto, Pedro Eloy arrastou Eduardo.
Pedro
Eloy, recebendo em Petrópolis a carta de Eduardo, receou pelos resultados dos acontecimentos narrados nesta
carta. Logo que pôde pôs-se a caminho para ver se ainda podia fazer alguma
coisa. Chegando à cidade foi procurar Eduardo; disseram lhe que partira para S. Domingos.
Como
saberia ele a casa de Sara? Ninguém podia dizer-lhe em casa de Eduardo. Apesar
de tudo, tomou o caminho da barca de S. Domingos e dirigiu-se para lá. Foi
quando encontrou Eduardo.
No sétimo
dia ao da
morte de Sara,
Pedro Eloy conseguiu
levar Eduardo para Petrópolis.
Eduardo não quis deixar de ir orar pela vítima, a um canto da igreja, na missa do sétimo dia.
Todos viram o moço ajoelhado, com o resto coberto; foi o primeiro que entrou e
o último que saiu.
CAPÍTULO X
A obra de
Pedro Eloy teve feliz resultado. Eduardo converteu-se ao dever, depois de um
longo suplício.
Maria
Luiza, cuja alma também morrera, refugiou-se no mais completo isolamento.
Quanto à
família de Sara, nunca mais teve um momento das alegrias puras que a presença
da querida menina lhe dava.
Eduardo,
inteiramente outro do homem que fora antes, pôde desligar- se da companhia do
amigo Pedro Eloy sem perigo para si.
De oito em
oito dias fazia uma peregrinação ao cemitério de Maruí, onde repousavam os
restos daquela que o amara até à morte.
Impôs-se
esta visita, não só como dever, mas até para ter sempre à memória a tragédia
doméstica em que fora protagonista.
De quando
em quando, os dois amigos visitavam-se, mas comunicavam-se sempre por cartas, em que um
mostrava toda a sua satisfação em ter convertido um homem e o outro a maior
saudade do bem que pudera ter e a esperança de que a sua conversão teria em paga
na eternidade a vista eterna da alma bem-aventurada de Sara.
CONCLUSÃO
Depois de
contar esta história, o leitor e eu tomamos a nossa última gota de chá ou café,
e deitamos ao ar a nossa última fumaça do charuto.
Vem
rompendo a aurora e esta vista desfaz as idéias, porventura melancólicas, que a minha narrativa tenha
feito nascer.
---
Nota:
Texto Fonte:
Histórias Românticas, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,
1938. Publicado originalmente em Jornal das Famílias, novembro de 1864.
Disponível digitalmente no site: Domínio
Público
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