quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Machado de Assis: "Três Tesouros Perdidos"

Três tesouros perdidos

Uma tarde, eram quatro horas, o Sr. X... voltava à sua casa para  jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolet que  estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e... dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma interna aflição.

Cumprimentou-o polidamente; mas o homem lançou-se sobre ele e  com uma voz alterada, diz-lhe:

— Senhor, eu sou F..., marido da senhora Dona E...

— Estimo muito conhecê-lo, responde o Sr. X...; mas não tenho a honra de conhecer a senhora Dona E...

— Não a conhece! Não a conhece! ... quer juntar a zombaria à  infâmia?

— Senhor!...

E o Sr. X... deu um passo para ele.

— Alto lá!

O Sr. F... , tirando do bolso uma pistola, continuou:

— Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer como um cão!

— Mas, senhor, disse o Sr. X., a quem a eloqüência do Sr. F... tinha produzido um certo efeito: que motivo tem o senhor...

— Que motivo! É boa! Pois não é um motivo andar o senhor fazendo a corte à minha mulher?

— A corte à sua mulher! não compreendo!

— Não compreende! oh! não me faça perder a estribeira.

— Creio que se engana...

— Enganar-me! É boa! ... mas eu o vi... sair duas vezes de minha
casa...

— Sua casa!

— No Andaraí... por uma porta secreta... Vamos! ou...

— Mas, senhor, há de ser outro, que se pareça comigo...

— Não; não; é o senhor mesmo... como escapar-me este ar de tolo que ressalta de toda a sua cara? Vamos, ou deixar a cidade, ou  morrer... Escolha!

Era um dilema. O Sr. X... compreendeu que estava metido entre um cavalo e uma pistola. Pois toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo.

Surgiu, porém, uma objeção.

— Mas, senhor, disse ele, os meus recursos...

— Os seus recursos! Ah! tudo previ... descanse... eu sou um marido previdente.

E tirando da algibeira da casaca uma linda carteira de couro da  Rússia, diz-lhe:

—  Aqui  tem  dois  contos  de  réis  para  os  gastos  da  viagem;  vamos,  parta! parta imediatamente. Para onde vai?

— Para Minas.

— Oh! a pátria do Tiradentes! Deus o leve a salvamento... Perdôo-lhe,  mas não volte a esta corte... Boa viagem!

Dizendo isto, o Sr. F... desceu precipitadamente a escada, e entrou no  cabriolet, que desapareceu em uma nuvem de poeira.

O Sr. X... ficou por alguns instantes pensativo. Não podia acreditar nos seus olhos e ouvidos; pensava sonhar. Um engano trazia-lhe dois  contos de réis, e a realização de um dos seus mais caros sonhos. Jantou tranqüilamente, e daí a uma hora partia para a terra de  Gonzaga, deixando em sua casa apenas um moleque encarregado de instruir, pelo espaço de oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino.

No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o Sr. F. para a  sua chácara de Andaraí, pois tinha passado a noite fora.

Entrou, penetrou na sala, e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu  ali o seguinte bilhete:

— “ Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia do teu amigo P... Vou para a Europa. Desculpa a má companhia, pois melhor não  podia ser. — Tua E...”.

Desesperado, fora de si, o Sr. F... lança-se a um jornal que perto  estava: o paquete tinha partido às 8 horas.

— Era P... que eu acreditava meu amigo... Ah! maldição! Ao menos não percamos os dois contos! Tornou a meter-se no cabriolet e dirigiu-se à casa do Sr. X..., subiu; apareceu o moleque.

— Teu senhor?

— Partiu para Minas.

O Sr. F... desmaiou.

Quando deu acordo de si estava louco... louco varrido!

Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso:

— Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo  a toda prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas... que bem podiam aquecer-me as algibeiras!...

Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.


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Nota:
Texto Fonte: Páginas Recolhidas de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1938. Publicado originalmente em A Marmota, 1858

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